Francisco afirma que o mundo vive
uma terceira guerra mundial, e resume o que entende por paz: 'nenhuma família
sem teto, nenhum ser humano sem pão'.
por: Saul Leblon / www.cartamaior.com.br
Uma das características que
impressionam no Papa, pelo ineditismo em relação à norma dominante, é a
sensação de que ele está sempre chegando.
Francisco é o dado novo na mesa
rasa, previsível, da policrise do nosso tempo, ao mesmo tempo uma crise do
capitalismo e da civilização, cujo vórtice ambiental ameaça a própria
sobrevivência da humanidade.
É disso que ele trata em sua
primeira encíclica ‘Laudato si’.
E o faz de forma desabrida, como
nas suas primeiras declarações ao chegar em Cuba, neste sábado (leia a
cobertura de Carta Maior nesta pág; direto de Havana).
Poucos minutos depois de seu
desembarque, como o terceiro papa a pisar em solo cubano, mas o primeiro a
abraçar a luta pelo fim do embargo norte-americano, disparou: ‘O mundo vive uma
terceira guerra mundial por etapas. Precisamos de conciliação’.
A conciliação que ele tem
pleiteado é aquela baseada na maior igualdade, na menor obsessão consumista, no
fim do fetiche do dinheiro, no resgate dos excluídos, na repartição da riqueza,
na reconciliação entre as formas de viver e de produzir e a natureza.
O nome da crise é capitalismo
turbinado, diz o idioma religioso de Francisco.
Em outubro de 2014, ele promoveu
um Encontro Mundial de Movimentos Populares nas dependências do Vaticano.
O desassombro não ficou na forma.
Ao falar aos participantes, entre
eles o líder do MST, João Pedro Stédile, que saiu convencido de que o Papa
estava à esquerda dos presentes, resumiu o que entende por conciliação e
reconciliação: ‘Nenhuma família sem teto; nenhum agricultor sem terra; nenhum
ser humano sem pão’.
Mas foi além.
Como se fora uma espécie de
Polanyi de batina, criticou o comércio dos recursos essenciais: o solo e a
água, por exemplo,
O filósofo e economista húngaro
Karl Polanyi (1886/1964) autor de ‘A grande transformação’, advertiu
pioneiramente para esse risco.
Elementos essenciais ao
equilíbrio da vida e à construção do bem comum, como o trabalho, a terra --e
também o dinheiro, disse Polanyi, filho de húngaros, nascido em Viena, não
deveriam ser submetidos a um liberalismo subordinado à cobiça do interesse
privado.
As evidências do nosso tempo
mostram que ele tinha razão.
Nesse mundo onde tudo o que é
rentável deve ser desregulado, para a livre mastigação dos mercados, os
recursos que formam as bases da vida na terra, e o ‘recurso’ humano,
encontram-se ameaçados pela inconciliável relação entre o capitalismo, a
temperança e o equilíbrio ambiental.
Há dois anos e meio do seu Papado,
iniciado em março de 2013, Francisco parece que acabou de entrar na sala.
É a visita que a qualquer momento
pode trazer novidades.
Não é truque, nem miragem.
Ao contrário daquilo que se ouve
da maioria dos líderes convencionais, seu discurso escapa à circularidade dos
interesses e reiterações paralisantes.
A renovação que expressa ganha
interesse ecumênico, para além das fronteiras dos vaticanistas, na medida em
que envolveu uma superação dos limites e ambiguidades do próprio Cardeal Jorge
Mario Bergoglio.
Longe de ser retórica, reflete a
circunstância histórica de quem soube captar toda a extensão da suas
responsabilidades e a emergência dos dias que correm.
Um ciclo está se fechando na
sociedade capitalista como a conhecemos no século XXI.
A supremacia insaciável da lógica
financeira perdeu a capacidade de girar a roda da história na direção das
necessidades objetivas e psicológicas da humanidade.
O dinheiro celibatário, que se
reproduz à margem da produção e do bem comum, coroou esse esgotamento em uma
crise capitalista de superprodução de capital fictício.
O impasse coloca uma disjuntiva
extremada: ou uma desvalorização épica da riqueza financeira predadora, ou a
imposição, ao seu redor, de uma desigualdade exacerbada, vendida como o novo normal da humanidade.
Diante do dilúvio, Bento VI, seu antecessor, resignou-se ao encolhimento
da fronteira cristã, atrás de um muro alto de expurgo e purificação
doutrinária.
Renunciou.
Francisco entendeu a dimensão
terminal da encruzilhada entre a entropia da finança desregulada e a ‘salvação’
que não prescinde do chão firme na terra.
Foi à luta. Que é ao mesmo tempo,
por igualdade e libertação do garrote ideológico.
Por isso dá às coisas protegidas
pela dissimulação midiática e plutocrática o seu nome.
O problema não é apenas que
instituições internacionais, partidos e
lideranças passaram a incorporar políticas inadequadas, como a
desregulamentação indiscriminada e a
abertura das contas de capitais a qualquer custo em vidas humanas e dilapidação
ambiental.
O problema principal é a falta de
capacidade política par refletir sobre o colapso correspondente fora da
‘caixinha’, isto é, fora do consenso conservador ancorado em arrocho e
desemprego ante qualquer ameaça à remuneração do capital a juro.
Em 2011, em plena curva
ascendente da crise, o Escritório de Avaliação Independente (IEO, na sigla e
inglês) analisou 6.500 trabalhos escritos produzidos ou contratados pelo FMI
nos últimos dez anos, portanto na chocadeira da crise mundial.
Praticamente todos afiançavam as
boas condições do comboio capitalista que rumava em alta velocidade para
espatifar a ordem neoliberal.
Pior: 62% dos economistas do
Fundo afirmaram que se sentiam pressionados a alinhar as conclusões de suas
pesquisas econômicas ao pensamento dominante no órgão.
Dados de então mostravam que 60%
dos cargos de chefia no FMI eram ocupados por profissionais de países
anglo-saxões. Nada menos que 63% dos economistas haviam obtido seu doutorado em
universidades americanas.
Não por acaso, representantes das
economias em desenvolvimento consideravam que esses trabalhos e seus autores
apenas reiteram um conjunto prevalecente de ideias e receitas, sem espaço para
visões alternativas.
A indiferenciação entre direita e
a esquerda no manejo da crise é parte constitutiva da encruzilhada atual.
Por isso Francisco estremece o
chão como um touro selvagem quando dá às coisas o seu nome. Por isso também
políticos e governantes lhanos afundam na areia movediça quando recitam a bula
do veneno para tratar dos seus efeitos.
O que chamamos de crise, hoje, é
a fotografia de corpo inteiro da longa captura da esquerda mundial, e sobretudo
da social-democracia europeia, pelo cânone neoliberal.
Como isso se transforma no
interdito político que faz do pensamento livre do Papa Francisco uma usina transgressora carregada de frescor?
O economista Robert Kuttner
explica assim a asfixia do esclarecimento e da razão diante de uma crise que
empurra a humanidade para o impasse: ‘É uma questão do poder. Os proprietários
da riqueza financeira se tornaram cada vez mais poderosos politicamente; os
movimentos que lhes são contrários se tornaram drasticamente
enfraquecidos".
A trinca aberta entre a base da
sociedade e aqueles que deveriam vocalizar o conflito, mas, sobretudo, a
negligência deliberada com a organização dessa bases, redundou no paradoxo de
uma crise sistêmica do capitalismo que não gera forças de ruptura capaz de
supera-la.
O fosso é proporcional à
virulência do que se busca despejar nos ombros da sociedade.
Ou não é essa transferência
leonina que se assiste hoje no Brasil, mas também na Grécia, Espanha, Itália,
Portugal, França etc etc
O déficit de democracia emerge,
assim, como o mais importante desequilíbrio revelado pela crise, em
contraposição à hegemonia capilar, estrutural, midiática e institucional
acumulada pelo capital financeiro.
É nesse ambiente de ar quase
irrespirável que ganha singularidade faiscante a figura de um Papa que não
desvia o olhar diante do que vê e manifesta a sua repulsa diante do espetáculo.
Apenas um governo parece ter
assumido coerência equivalente.
Ao devolver ao poder
plebiscitário da sociedade a decisão quanto ao passo seguinte da crise que
levara a Islândia à bancarrota, em 2009, seu presidente, Ólafur Grímsson,
declarou, à moda Francisco: ‘Somos uma democracia, não um sistema financeiro’.
Ser uma democracia, não um anexo
do sistema financeiro é o que pode ainda devolver aos cidadãos a
responsabilidade compartilhada pelas escolhas do seu destino e o comando do
desenvolvimento em nosso tempo.
A blindagem ideológica do
neoliberalismo –e o evidente esgotamento do seu arranjo-- ainda não foram
suficientes para alterar a condução da
crise justamente pela tímida delegação das decisões ao povo e a falta de uma
contrapartida de coordenação internacional desse enfrentamento.
O que se assiste por enquanto é a
degradante marcha em sentido contrário.
O fatalismo construído ao longo
de décadas de recuos, e o correspondente desarmamento organizativo que se
seguiu, explicam a sobrevida de uma
hegemonia cuja base objetiva esfarelou.
O esgotamento da margem de
manobra na economia não dispõe de um contrapeso à altura no ambiente político.
O desenlace permanece em aberto
em todo o mundo, a evidenciar uma mudança de época que não encontrou ainda o
protagonista capaz de virar a página do calendário.
O Brasil faz parte desse salto
parado no ar.
E é pelo menos arriscado apostar
que o terceiro turno em curso, marcado pelo passo de ganso golpista, cederá a
uma negociação branda entre concessão e indulgência.
A busca do impossível – arrochar
para crescer, a contração expansionista—
faz água em todas as latitudes.
Oximoros -- contradições em seus
próprios termos-- refletem o esgotamento
de uma agenda, que só tem a oferecer a estabilidade inspirada na paz dos
cemitérios.
Nesse novo normal –para sempre ou por um prazo sem
fim-- nada se move, exceto as curvas da
desigualdade, o empoçamento do capital
fictício e a incerteza diuturna sobre tudo em todos os lugares.
Mais que isso.
Um conjunto bíblico de
sobras humanas passa a ser expelido pelo
sistema cujo êxito gera a própria danação.
Trata-se de uma entropia
estrutural à engrenagem capitalista, cada vez mais clara na crise iniciada em
2008.
A eficiência acumulativa deprecia
o valor adicionado ao promover o descarte do componente humano que impulsiona a
riqueza e gera a sua própria obsolescência, ao mesmo tempo e com igual
intensidade.
Sobra o ponto de fuga do capital
fictício que se empanturra de bolhas à margem da produção e às expensas das
dívidas públicas e dos direitos sociais, decepados para deslocar recursos ao
rentismo.
Não há escolha fácil nesse
ambiente difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.
Mas a história não é fatalidade.
O que importa perguntar aqui é o
que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade do seu cardinalato
na Argentina?
Certamente seria uma figura de
baixo relevo na desordem mundial; um pequeno conservador na cena de um mundo
extremado, que busca de uma nova identidade para o desenvolvimento, a vida e a
espiritualidade.
Seriam, enfim, tudo o que o
cristão que agora reza missa em Cuba de olho no fim do embargo americano,
decidiu não ser e não é.
A mutação processada na travessia
de Bergoglio para Francisco oferece uma lição da inexcedível pertinência à
encruzilhada brasileira nos dias que correm.
Só a determinação política de
superar as amarras das circunstâncias pode alterar a circularidade de um
processo em que a rendição da vítima é o lubrificante dopoder opressor.
O espaço estreito e perigoso das
escolhas na história é a variável autônoma que restou nesse redil paralisante.
Parece pouco?
Francisco, o Papa que parece que
acabou de chegar, mostra o quanto existe de potência nessa condição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12