Há quem ache Jéssica arrogante e
há quem ache maravilhosa. Dependendo do que você acha da Jéssica fica claro em
quem você vota.
Léa Maria Aarão Reis* / www.cartamaior.com.br
O filme de Anna Muylaert mobiliza
e provoca furor. Até a semana passada, 250 mil espectadores assistiram a saga
da doméstica Val e da sua filha Jéssica.
Oitenta mil deles apenas num fim de semana. Isto faz Que Horas Ela
Volta? aprumar-se para chegar perto da
bilheteria dos blockbusters americanos feitos de boçalidade e de músculos.
Escolhido para representar o Brasil na competição de Oscar de melhor filme
estrangeiro da edição de 2016, sua carreira reafirma o trabalho da cineasta
paulista como autora de bons filmes: o premiado Durval Discos, É proibido
fumar, Chamada a cobrar e, sobretudo, como corroteirista do excelente O ano em
que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburguer.
Qual a explicação para o sucesso,
para a explosão do filme da Anna – nos festivais estrangeiros e nas principais
cidades do país -, além da narrativa relatada com talento, e de contar com a
experiente atriz Regina Casé fazendo com brilho e garra a empregada doméstica
nordestina que trabalha para a alta classe média paulistana? Uma personagem
emblemática, mas tão ‘banal’ e pouco original?
Simples: com habilidade, Anna
toca num nervo infeccionado, até então camuflado, da classe média brasileira.
Seu filme expõe e escancara a hierarquização feroz das classes no Brasil dentro
da intimidade dos grupos familiares. Uma situação inspirada na sua própria
experiência, quando, em certa época, ela precisou contratar uma babá para
ajudá-la a cuidar dos filhos então pequenos. Sem esse suporte não poderia
continuar trabalhando por um bom tempo. Esta é a origem do roteiro que criou.
Da figura da babá, resquício da
escravatura, à empregada doméstica modelo nacional, um outro entulho largado no
caminho pela escravidão no país, foi um pequeno passo para expandir o
argumento. Sem o trabalho das outras milhares
de Vals existentes neste país,
sejam elas babás, diaristas ou moradoras em um quarto infecto, na casa dos
patrões, a família burguesa brasileira emperra e não funciona. A dependência
dos patrões é absoluta - até para o mínimo gesto de levantar da cadeira e ir à
geladeira para se servir de um copo de água. É isto que Anna mostra
serenamente, com simplicidade. E a dependência estampada no espelho que é a
telona deixa a plateia burguesa nervosa.
Não surpreende que algumas
mulheres, nas sessões de cinemas de zonas ditas nobres das grandes cidades,
cheguem a se levantar, revoltadas, para ir embora, como já ocorreu, no meio da
exibição.
Mas Muylaert vai além e introduz
outro elemento definitivamente perturbador na história: a filha Jéssica, que,
pequena, foi deixada pela mãe no Nordeste quando Val parte para trabalhar e
sobreviver como doméstica em São Paulo. Agora, já mocinha, Jéssica chega para
prestar vestibular para a faculdade de Arquitetura (escândalo!) na capital
paulista e é hospedada na opulenta casa dos patrões, no quartinho minúsculo e
abafado onde vive sua mãe. “Uma casa meio modernista!”, se deslumbra a futura
arquiteta quando percorre a mansão. Ao chegar, a menina “subverte todas as
regras”, como observa a cineasta.
Acaba instalada no confortável
quarto de hóspedes para desespero da patroa, mergulha na piscina na companhia
do filho da casa, também ele um vestibulando, e, a transgressão mais grave:
come o sorvete da marca fina e cara, mas destinada aos patrões. O sorvete
barato é reservado aos empregados.
Camila Márdila, de 26 anos, vinda
de Taquatinga, na periferia de Brasília, é a jovem atriz que defende bem o
personagem da filha de Val neste que é o seu segundo filme.
Com a a introdução – ou
intromissão – no universo burguês, Jéssica desequilibra a ‘harmonia’ da casa,
expõe o nervo podre disfarçado e estabelece uma nova equação familiar como
ocorre no célebre filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini. “Na cabeça dela,” acrescenta
Muylaert, “aquelas regras não significam nada. Mas há quem ache Jéssica
arrogante e há quem ache maravilhosa. Dependendo do que você acha da Jéssica
fica claro em quem você vota.”
Bingo para Muylaert. Jéssica
representa o Brasil novo que começou a ser parido há 12 anos por um governo
progressista. Jéssica é a mudança, é o país em que porteiro embarca no avião e
senta ao lado da madama no aeroporto. E madama agora é obrigada a cumprir a PEC
72 em vias de entrar em vigor na sua integralidade, e pagar direitos
trabalhistas às mulheres que nunca mais serão semiescravas.
Jéssica é o Brasil que,
obsessivamente, mesmo sem ainda plena consciência do fato, procura dirimir as
diferenças de classe para se tornar um lugar mais igualitário, menos injusto e
hipócrita. Mais do que raiva, ódio e menosprezo, os que se encontram instalados
no topo da pirâmide sentem é medo de Jéssica. Ela é o ‘anjo’ do Teorema, de
Pasolini, que vem anunciar os tempos e os arranjos novos. Um alerta para o
início do fim da era da submissão.
O recado do Que Horas ela Volta?
é singelo e firme apesar do seu final entreaberto: para a frente nada será como
antes. Aconteça o que tiver que suceder, convém lembrar-se do clichê que, no
caso, aqui cai como uma luva. A pasta de dentes que saiu do tubo nunca mais
caberá dentro dele.
*Jornalista
Créditos da foto: reprodução
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