Após trabalhar pela reaproximação dos
países, o chefe da Igreja Católica visita Cuba e Estados Unidos em setembro.
Nos últimos dois anos, Francisco, primeiro papa não europeu em treze séculos,
descentralizou o olhar da Igreja no mundo. Defensor de uma ecologia “integral”
socialmente responsável, desafia as consciências
por Jean-Michel Dumay
Diante de uma multidão reunida na Praça
do Cristo Redentor, em Santa Cruz, a capital econômica da Bolívia, um homem
vestido de branco repreende “a economia que mata”, o “capital transformado em
ídolo”, “a ambição sem limites do dinheiro que comanda”. No dia 9 de julho, o
chefe da Igreja Católica não se dirigia apenas à América Latina, que o viu
nascer, mas ao mundo todo, que ele procura mobilizar para colocar um fim na
“ditadura sutil” que exala o mau cheiro do “esterco do diabo”.1
“Precisamos de uma mudança”, proclama o
papa Francisco três dias antes de incitar os jovens paraguaios a “desafiar a
ordem”. Em 2013 no Brasil, pediu às pessoas que atuassem como “revolucionárias”
e se posicionassem “contra a corrente”. Em suas viagens, o bispo de Roma
profere um discurso cada vez mais virulento sobre o estado do mundo, sua
degradação ambiental e social, e usa expressões fortes contra o neoliberalismo,
o tecnocentrismo e um sistema econômico de efeitos nefastos: uniformização de
culturas e “globalização da indiferença”.
Em junho, nessa mesma linha, Francisco
dirigiu à comunidade internacional um “convite urgente para um novo diálogo, o
diálogo pelo qual construiremos o futuro do planeta”. Nessa encíclica sobre a
ecologia, chamada Laudato si’ (“Louvado seja”), chama cada um, fiel ou não,
para uma revolução de comportamentos e denuncia um “sistema de relações
comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”.
O pontífice assegura que outro mundo é
possível, não no Juízo Final, mas aqui embaixo e agora. O papa celebridade, na
linha midiática de João Paulo II (1978-2005), fragmenta e divide: por um lado é
canonizado por figuras da ecologia e altermundialistas (Naomi Klein, Nicolas
Hulot, Edgar Morin) por “sacralizar o desafio ecológico” em um “deserto do
pensamento”;2 por outro, demonizado pelos ultraliberais e pelos céticos em
relação à questão climática, capazes de descrevê-lo como “a pessoa mais
perigosa do mundo” – como o caricaturou um polemista do canal ultraconservador
norte-americano Fox News.
As direitas cristãs se inquietam ao ver
um papa de discurso esquerdista e reticente sobre o aborto. E os editorialistas
da esquerda laica se perguntam sobre a profundidade revolucionária desse homem
do Sul, primeiro papa não europeu desde o sírio Gregório III (731-741), que se
escandaliza diante do tráfico de imigrantes, pede apoio aos gregos e rejeita o
plano de austeridade, nomeia um genocídio (dos armênios) de “genocídio”, assina
um quase acordo com o Estado palestino, apoia sua testa em oração no Muro das
Lamentações contra a separação que os israelenses impõem aos palestinos e se
aproxima de Vladimir Putin sobre a questão síria quando a tendência, entre os
ocidentais, é sancionar a Rússia pelo conflito ucraniano.
“Ele colocou a Igreja novamente no
cenário internacional”, analisa Pierre de Charentenay, especialista em Relações
Internacionais na revista jesuíta romana Civiltà Cattolica. “E mudou a
aparência da instituição. Ele é o campeão do altermundialismo e questiona o
conjunto do sistema.”
Precisamente, o que diz o primeiro papa
jesuíta e sul-americano é o seguinte: a humanidade carrega a responsabilidade
pela degradação planetária e deixa o sistema capitalista neoliberal destruir o
planeta, “nossa casa comum”, semeando desigualdade. A humanidade precisa romper
com uma economia – como diz o economista, e também jesuíta, Gaël Giraud – “que
desde Adam Smith e David Ricardo exclui a questão ética, impondo a ficção da
mão invisível” que deveria regular o mercado. Essa mão precisa, atualmente, de uma
“autoridade mundial”, de normas restritivas e, sobretudo, da inteligência dos
povos a serviço de quem é urgente redirecionar a economia. Porque a solução,
política, está em suas mãos, e não nas mãos das elites, acometidas pela “miopia
das lógicas de poder”.
Para o papa, a crise ambiental é, antes,
moral, fruto de uma economia desligada do ser humano, na qual as dívidas se
acumulam: entre ricos e pobres, Norte e Sul, jovens e velhos. E na qual “tudo
está conectado”: pobreza-exclusão e cultura do desperdício, ditadura do curto
prazo e alienação consumista, aquecimento global e congelamento de corações.
Dessa forma, “uma abordagem ecológica verdadeira sempre se transformará em
abordagem social”. Convocada a se repensar, a humanidade precisa buscar uma
“nova ética nas relações internacionais” e uma “solidariedade universal” – é o
que pedirá Francisco na Assembleia Geral da ONU no dia 25 de setembro, no
lançamento dos Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento.
Sem dúvida, nada disso é novo.
“Francisco se insere como uma bonita continuidade na linha do Concílio do
Vaticano II [aquele ocorrido entre 1962 e 1965, cujo objetivo era abrir a
Igreja ao mundo moderno]”, constata Michel Roy, secretário-geral da rede humanitária
Caritas Internacional. Assim, o pontífice revisita a doutrina social da Igreja
elaborada na era industrial e alinha suas convicções às de Paulo VI
(1963-1978), primeiro papa das grandes viagens intercontinentais. Depois da
reforma de João XXIII (1958-1963), foi ele quem fisicamente saiu primeiro do
papado da Itália, internacionalizou o colégio dos cardeais, multiplicou as
nunciaturas (embaixadas da Santa Sé) e as relações bilaterais com os Estados.3
Também foi Paulo VI quem levou a Igreja para além de suas competências
restritas de guardiã das liberdades religiosas e tornou-a “solidária com as
angústias e penas de toda a humanidade”.4 Para ele, desenvolvimento era o novo
nome da paz; uma paz entendida não como um estado, mas como o processo dinâmico
de uma sociedade mais humana pelo compartilhamento da riqueza.
Contudo, se por um lado existe essa
continuidade – para alguns, inclusive, ela representa o ápice da aposta
católica empreendida nos anos 1960 –, por outro é difícil ignorar que o
pontífice argentino vai além de seus predecessores. Apesar de o polonês João
Paulo II e o alemão Bento XVI não economizarem no discurso antiliberal, eles
ficaram marcados pelo rigor doutrinal. O último foi acometido também por alguns
“contratempos” que a administração do Vaticano teve certa dificuldade em
contornar, como o caso VatiLeaks: a difusão de documentos confidenciais que
acusavam a Santa Sé de corrupção e favorecimento ilícito, notadamente em
contratos assinados com empresas italianas.
Há duas opiniões sobre as razões da
renovação atual: uma delas defende que se trata do contexto, e a outra, de que
se devem a características inerentes ao homem. “No plano ético-político,
Francisco preenche um vazio em nível internacional”, constata François Mabille,
professor de Ciência Política na Federação Universitária e Politécnica de Lille
e especialista em diplomacia pontifical. Ele é o papa pós-crise financeira de
2008, como João Paulo II foi o do fim do comunismo. “Ao realizar um
aggiornamento da doutrina social, Francisco introduz o pensamento sistêmico na
Igreja, segundo o qual todos os fatores sociais estão relacionados. Além disso,
ocupa com sucesso o lugar da reivindicação de protesto”, analisa Mabille. E
acrescenta: “Ele tem senso de urgência. O tempo da Igreja já não era o tempo do
mundo. Tudo ia muito rápido para Bento XVI. Francisco sentiu a necessidade de a
Igreja estar no passo da emancipação, e não mais da reação”.
Antes de ganhar o mundo, contudo,
Francisco estremeceu a própria casa. Adepto de uma sobriedade que compartilha
com Francisco de Assis, de quem emprestou o nome, instaurou um papado
preocupado com o exemplo. Renunciou a atributos de vestimentas e hábitos
honoríficos e foi viver em um quarto e sala de 70 m², em vez dos luxuosos
apartamentos pontificais. O papa deseja atingir o campo simbólico e, para isso,
não se restringe à palavra: empreende gestos concretos – o que tem seu peso em
uma sociedade pautada pela imagem.
Dessa forma, como um bom samaritano,
aparece sempre direto, espontâneo, cara a cara. Designado por seus pares para
reformar em profundidade a Cúria, ou seja, o aparelho estatal da Santa Sé,
Francisco fez uma lista de quinze males que acometem a instituição, marcada por
um clientelismo à moda italiana. Entre os itens, o “Alzheimer espiritual” e, em
primeiro lugar, o hábito de “acreditar-se indispensável”.5
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NÃO MARXISTA
Para governar, o papa se cercou de uma
guarda próxima com oito cardeais. Criou comissões para reformar as finanças e a
comunicação, multiplicou as instalações de especialistas laicos para aconselhar
sua administração, criou um tribunal no Vaticano para julgar bispos que
acobertaram padres pedófilos, nomeou um primeiro escalão com quinze novos
cardeais, que serão os futuros eleitores de seu sucessor. O próximo papa será
escolhido com o anterior ainda em vida, como quis Bento XVI para ele mesmo.
Francisco repetiu essa premissa antes de partir em visita a Evo Morales na
Bolívia e a Rafael Correa no Equador: ele é contra “líderes vitalícios”.
Seus novos conselheiros foram escolhidos
entre aqueles que vivem questões sociais na pele, como em Agrigento, diocese de
Lampedusa, a ilha de imigrações clandestinas. Francisco tem procurado seus
prelados na Ásia, na Oceania, na África e na América Latina, estabelecendo
regras sem escrevê-las: chega de arquidioceses que empurram mecanicamente seus
titulares para a alta hierarquia romana, aumentando o peso da Europa no
conclave e, em seu seio, o da Itália.6
“Esse papa enfrenta tabus e dá pontapés
na fórmula estabelecida, sem tomar as devidas precauções”, constata um
diplomata francês, analista da ação pontifical. “Ele entendeu que é um chefe de
Estado. A função o tomou completamente. Ele é pragmático e muito político”,
continua. Tudo isso repercute na Igreja, porque Francisco “é” a Igreja, como
ele mesmo lembrou àqueles que se preocupavam se a instituição o seguiria.
“Ele está sendo muito procurado”,
declara um conselheiro pontifical. Em dois anos, mais de cem chefes de Estado
foram recebidos no Vaticano. Alguns buscavam mediação de conflitos: Estados
Unidos e Cuba, aos quais facilitou a reaproximação; Bolívia e Chile, em função
da reivindicação boliviana de acesso ao mar (ver artigo nas págs. 22 a 24).
Essas abordagens convergem com os desejos do papa, que gostaria de reabrir em
Roma um escritório de mediação pontifical, mesmo sem sucesso garantido: em
junho de 2014, reuniu, de forma midiática, o primeiro-ministro palestino,
Mahmud Abbas, e o presidente israelense, Shimon Peres, nos jardins do Vaticano
– o que não impediu os ataques mortíferos de Israel em Gaza um mês depois.
Nascido na Argentina como Jorge Mario
Bergoglio, Francisco “é o primeiro papa que compreende verdadeiramente as
mudanças Sul-Sul, seja em relação a bens materiais, simbólicos ou religiosos”,
observa Sébastien Fath, membro do Grupo Sociedades, Religiões, Laicidades do
Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS, na sigla em francês).
“Ele sabe que os pregadores africanos estão ligados às Igrejas brasileiras, que
os jesuítas indianos partem em missões na África”, completa Fath. “É um latino
perfeito... que não fala inglês”, completa Roy, da Caritas. Bergoglio foi
garoto nos subúrbios de Buenos Aires e possui sua própria geografia do espaço:
menos a do Sul oposto ao Norte que a de um centro antagonista das “periferias”,
sejam elas espaciais (países pobres, periferias, favelas) ou existenciais
(populações precarizadas, excluídas). Nessa visão, as periferias existem também
no Norte, e olhares colonialistas estão espalhados por circuitos globalizados.
É isso que Francisco quer que a Igreja trabalhe.
Bergoglio escolheu seu campo de batalha:
o da “opção preferencial pelos pobres” e pelos “pequenos”, a quem nomeia
claramente em seus discursos, como em Santa Cruz: “catadores de lixo”,
“vendedores ambulantes”, “camponeses ameaçados”, “trabalhadores excluídos”,
“indígenas oprimidos”, “imigrantes perseguidos”, “pecadores que não resistem às
propagandas das grandes corporações”. Francisco é pastor com vínculos
missionários fortes, poderia se dizer. Não um diplomata. Isso é um problema?
Não, pois para isso existem os diplomatas da Santa Sé, coordenados pelo
experiente secretário de estado do Vaticano, Pietro Parolin, antes responsável
por missões delicadas na Venezuela, Coreia do Norte, Vietnã e Israel.
O SÍNODO SOBRE A FAMÍLIA
“O papa está convencido de que o futuro
repousa sobre aqueles que estão nos territórios, atuando”, reconhece Roy. Ele
desconfia de organizações (a começar pela sua!) cujas distorções levam, segundo
ele, à esterilidade dos discursos autorreferenciais distantes da realidade.
Isso o torna um dirigente de abordagem humana e gerencial em ascendência,
constatam os diplomatas, enquanto seus predecessores atuavam de forma vetorial,
do topo em direção à base, pela transcendência. “Abençoem-me”, disse Francisco
aos fiéis na Praça São Pedro no dia de sua eleição, invertendo os papéis.
Essa proximidade com as populações, que
lhe confere traços populistas (na juventude, esteve próximo a um grupo da
Juventude Peronista), está fundamentada conceitualmente na teologia do povo, um
braço argentino não marxista da teologia da libertação.7 “Uma teologia para o
povo, e não pelo povo”, resume Pierre de Charentenay, para marcar a diferença.
“O papa opera um tipo de retomada popular e cultural da teologia da
libertação.” Trata-se também de uma reabilitação. Oriunda da apropriação
latino-americana do Vaticano II nos anos 1970, a teologia da libertação foi
desprezada por Bento XVI e João Paulo II por sua abordagem marxista. Em
setembro de 2013, Francisco recebeu, em audiência privada em Roma, um de seus
ilustres fundadores, o padre peruano Gustavo Gutierrez. Em maio de 2015,
beatificou Oscar Romero, o arcebispo de San Salvador assassinado em 1980 por
militantes de extrema direita. Seus predecessores nem sequer se deram ao
trabalho de abrir uma investigação. De acordo com Leonardo Boff, um dos líderes
brasileiros do movimento, a visão de Francisco se inscreve “na grande herança
da teologia da libertação”. Seu papado poderia até abrir uma “dinastia de papas
do Terceiro Mundo”.8
Bergoglio encarna também o papa
administrador: o primeiro a exercer concretamente suas responsabilidades
territoriais, extradiocese, em nível regional. De 2005 a 2011, foi presidente
da Conferência Episcopal argentina.9 De repente, “as tropas [no Vaticano] estão
mais bem organizadas, e sua personalidade e seu envolvimento pessoal
dinamizaram a diplomacia da Santa Sé”, constata um observador romano.
Como dirigente, definiu um caminho para
sua multinacional. Habilmente, articula o ataque em função de seu alvo. Mundo afora,
faz seu projeto ser conhecido como “internacionalismo católico”,10 com
objetivos como participar da pacificação das relações entre Estados, promover a
democracia, insistir nas estruturas de diálogo internacional, zelar pela
justiça entre os povos, estimular o desarmamento, o bem comum internacional –
entre outros temas que às vezes conferem à Igreja um ar de ONG. Internamente,
aos seus colegas cardeais, o jesuíta enfatizou o essencial: evangelizar. Mas
também incentivar que a Igreja saia de si mesma, de seu “narcisismo teológico”,
para se dirigir às “periferias”.11
Para evangelizar, porém, Francisco não
levanta a cruz como João Paulo II, que, desde seu primeiro sermão, atuou na
ofensiva: “Não tenham medo! Abram as portas ao Cristo, abram as fronteiras dos
Estados, dos sistemas políticos e econômicos...”.12 O papa argentino tem outro
senso político. Não hesita em fazer a Igreja trabalhar junto aos movimentos
populares, que estão longe de compartilhar de sua fé. Ele compreendeu que se
por um lado a Igreja permanece universal, por outro não é o centro do mundo.
Essas novas inclinações, entretanto, não
escondem as dificuldades. Um exemplo é o caso do Oriente Médio. Em 2013,
Francisco lançou as atenções da diplomacia do Vaticano sobre a Síria, pedindo
paz, enquanto França e Estados Unidos queriam derrubar o regime de Bashar
al-Assad. Um ano depois, a Santa Sé precisou recuar e pediu à ONU que “fizesse
de tudo” para conter as violências da Organização do Estado Islâmico (OEI),
responsável por “uma espécie de genocídio” que obrigava os cristãos ao êxodo.
Da mesma forma, na Ásia, região
entendida como uma fonte de desenvolvimento, a diplomacia do Vaticano patina.
Se as relações com o Vietnã estão esfriando, na China uma corrente católica
controlada pela Associação Patriótica dos Católicos Chineses – cuja estrutura é
estatal – continua a escapar do bispado de Roma. Sem dúvida, Francisco se
desdobrou para apaziguar o presidente Xi Jinping – notadamente evitando um
encontro com o Dalai Lama – e reconheceu um bispado em julho em Anyang
(província de Henan), o que não acontecia havia três anos. Mas a realidade está
longe dos sonhos missionários: desde o início deste ano, de acordo com os
relatórios da agência Igrejas da Ásia, as autoridades chinesas destroem dezenas
de cruzes nas igrejas, consideradas muito ostensivas, principalmente na
província de Zhejiang. Finalmente, na Índia, a ínfima minoria católica (2,3% da
população) é regularmente submetida a atentados.
Para Francisco, contudo, os obstáculos
não estão apenas em terras longínquas não cristianizadas. Nos Estados Unidos,
onde se apresentará no dia 24 de setembro diante do Congresso, sua popularidade
caiu consideravelmente. Em fevereiro, 76% da população tinha opinião favorável
em relação ao papa. Em julho, após a publicação da encíclica e do discurso de
Santa Cruz, o índice caiu para 59%. A queda foi ainda mais acentuada entre os
republicanos (45%).13 O tom é ácido. Francisco é acusado de tropismo
latino-americano, de ter pouca consideração com o que capitalismo trouxe aos
países mais pobres e de proferir discursos que não propõem soluções.14
À esquerda, suspeita-se de uma ofensiva
sedutora para abrir caminhos a pílulas mais amargas – observando, por exemplo,
a manutenção da oposição doutrinal à contracepção e a ausência de estímulo ao
uso do preservativo como forma de combater a transmissão do vírus HIV. Os
conservadores, por sua vez, não aprovam suas atribuições teológicas e morais.
“Não sigo a política econômica dos meus bispos, cardeal ou papa”, declarou Jeb Bush,
candidato republicano à Casa Branca convertido ao catolicismo há 20 anos.15 O
papa não se intimidou: “Não espere deste papa uma receita. A Igreja não tem a
pretensão de substituir a política”.
De forma geral, Francisco concentra
esforços em questões sociais, pelas quais os órgãos do Vaticano trabalham há
dois anos na surdina. Em 2014, abriu uma caixa de Pandora ao pedir aos bispos,
reunidos no sínodo, que se dedicassem a uma pesquisa sobre a família. Os
trabalhos serão finalizados em outubro deste ano. Em diversas ocasiões, ele
mencionou a necessidade de evolução no tema dos divorciados que se casaram
novamente e foram privados da comunhão, ou ainda na questão da
homossexualidade.
Internamente, Francisco quer romper com
o centralismo romano, desenvolver o colegiado, levar às conferências episcopais
sua parte de autoridade doutrinal, promover a enculturação da liturgia. Tais
ações podem abalar a unidade de sua Igreja. Ora, ele já está com 78 anos. E a
Cúria, universo que lhe era desconhecido, opõe grandes resistências. “Ele
enfrenta obstáculos. O arado está preso em uma terra difícil”, observa Pierre
de Charentenay. Em relação à família, Francisco pede “um milagre”. Quanto ao
resto, por enquanto ninguém aposta que esse papa impertinente terá sucesso.
Jean-Michel Dumay
Jean-Michel Dumay é jornalista
Ilustração: Paulo Lobato
1 O papa retoma aqui
uma expressão de um dos pais da Igreja, Basílio de Cesareia, um ascético
precursor do cristianismo social.
2 “Naomi Klein prend
fait et cause pour l’encyclique du pape” [Naomi Klein apoia encíclica do papa],
2 jul. 2015. Disponível em: ; “Nicolas Hulot: ‘Le pape François sacralise
l’enjeu écologique’” [Nicolas Hulot: “O papa Francisco sacraliza o desafio
ecológico”], L’Obs, Paris, 25 jun. 2015; “Edgar Morin: ‘L’encyclique Laudato
Si’ est peut-être l’acte 1 d’un appel pour une nouvelle civilisation’” [Edgard
Morin: “A encíclica Laudato Si’ talvez seja o ato 1 de um chamado a uma nova
civilização], La Croix, Paris, 22 jun. 2015.
3 O número de Estados
com os quais a Santa Sé mantém relações passou de 49 em 1963 para 84 em 1978.
Atualmente, é de 180. Afeganistão, Arábia Saudita, China, Coreia do Norte e
Vietnã estão entre os quinze países com os quais o Vaticano não mantém
relações.
4 Philippe Chenaux, Paul VI,
Éditions du Cerf, Paris, 2015.
5 “Les quinze maux de
la curie selon le pape François” [Os quinze males da Cúria de acordo com o papa
Francisco], Le Monde, 23 dez. 2014.
6 Dos 114 cardeais
eleitores que escolheram Francisco em março de 2013, 55 eram europeus, e 23,
italianos.
7 Juan Carlos Scannone, Le Pape du
peuple. Bergoglio raconté par son confrère théologien, jésuite et
argentin [O papa do povo. Bergoglio contado por seu confrade teólogo, jesuíta e
argentino], entrevistas com Bernadette Sauvaget, Éditions du Cerf, 2015.
8 “Mientras viva
Ratzinger, no es bueno que Francisco me reciba en Roma” [Enquanto Ratzinger
estiver vivo, não é bom que Francisco me receba em Roma], El País, Madri, 23
jul. 2013.
9 Em meio aos
jesuítas, foi – entre 1973 e 1978, sob a ditadura de Jorge Rafael Videla –
jovem provincial (patrono) da Companhia de Jesus em seu país. Uma polêmica, mal
sustentada, acusa-o de falta de firmeza diante do regime.
10 “L’internationalisme catholique”,
Les Grands Dossiers de Diplomatie, n.4, Paris, ago.-set. 2011.
11 Intervenção de Jorge
Mario Bergoglio diante das congregações gerais antes do conclave que o elegeu
papa, no dia 13 de março de 2013. O texto, que deveria permanecer secreto, foi
difundido alguns meses depois com o consentimento do sumo pontífice, pelo
cardeal Jaime Ortega, arcebispo de Havana.
12 Ler Peter Hebblethwaite,
“Le rêve polonais d’une chrétienté restaurée” [O sonho polonês de uma
cristandade restaurada], Le Monde diplomatique, maio 1998.
13 Pesquisa Gallup, 22
jul. 2015.
14 “In fiery speeches,
Pope renews critiques on excesses of global capitalism” [Em discursos ferozes,
papa renova críticas aos excessos do capitalismo global], International New
York Times, Paris, 13 jul. 2015.
15 “Jeb Bush joins
Republican backlash against Pope on climate change” [Jeb Bush se junta à reação
republicana contra o papa na questão da mudança climática], The Guardian,
Londres, 17 jun. 2015.
BOX
Mudança de estratégia no mercado
O cristianismo está sob forte concorrência:
em 2050, de acordo com projeções demográficas, os cristãos, estabilizados em
31% da população mundial, serão praticamente alcançados pelos muçulmanos (quase
30%), cujo número de fiéis terá crescido, em quarenta anos, duas vezes mais
rápido, em particular na Ásia.1 Os católicos, estimados hoje em 1,2 bilhão de
fiéis, também perderão espaço para os evangélicos e pentecostais, atualmente na
proporção de um para quatro, e para os protestantes, estimados hoje em dois
para cada três cristãos.2
Para reunir a família cristã, o
papa Francisco demonstra certo zelo ecumênico. De início, apresentou-se
oportunamente aos ortodoxos como simples “bispo de Roma” e convidou dezenas de
pastores evangélicos e pentecostais para conhecer o Vaticano. Em sua paróquia, inverteu
os objetivos de seus antecessores: valoriza os pontos fortes da Igreja, ou
seja, os lugares onde ela está mais viva e representada, onde detém as “maiores
fatias do mercado” – América Latina, Filipinas, África. E já não concentra
tantos esforços em reanimar as terras que caíram na “noite obscura” do
secularismo. Francisco leva a Igreja aos lugares onde ela tem as portas
abertas.
Na Ásia, foi às Filipinas (81%
católica), mas também à Coreia do Sul, onde os cristãos se instalaram sob a
pressão das Igrejas evangélicas (18% de protestantes, 11% de católicos). Em
novembro, visitará a África pela primeira vez (Uganda, Quênia), onde a
competição no mercado religioso é alta.
“Lá, as Igrejas evangélicas, que
recrutam a mesma clientela, estão em vantagem sobre os católicos”, observa
Sébastien Fath, especialista em protestantismo evangélico no Centro Nacional de
Pesquisa Científica da França (CNRS, na sigla em francês). “Elas não estão
imersas no mundo colonial, sua liturgia é africana e oferecem aos fiéis a promoção
da laicidade e das mulheres, uma relação mais flexível com a sexualidade e
redes reais de solidariedade local.” Para enfrentar essa concorrência,
Francisco aposta na humildade: “O papa não os observa de forma superior; ao
contrário, aproxima-se com muito respeito. Ele é visto como um papa que quer
trazer soluções para a vida cotidiana. Ora, os africanos querem justamente que
a fé cristã ajude aqui e agora, e não um evangelho desconectado de questões
econômicas e sociais”, analisa Fath.
Francisco, que aborda o
catolicismo pelo sofrimento social, está construindo alianças junto a essas
populações. Está fora de questão se manter distante dessas Igrejas vivas. “Ao
internalizar práticas evangélicas, e legitimá-las, sua estratégia visa
recuperar, a longo prazo, os decepcionados que desejam escapar dos desvios
sectários e megalomaníacos de certos pastores”, interpreta Fath. Para ele,
Francisco parece inclinado a valorizar mais o catolicismo de conversão e de
apropriação pessoal que aquele dos “herdeiros” católicos. (J.-M.D.)
1 A proporção de ateus de hoje até a
metade do século recuará de 16% para 13%. “The future of world religions:
population growth projections, 2010-2050” [O futuro das religiões globais:
projeções de crescimento populacional, 2010-2050], Pew Research Center,
Washington, 2 abr. 2015.
2 Estatísticas CNRS, jan. 2014.
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