No caso de um militar que tenha
uma filha em 2016, por exemplo, o Brasil pode ter de pagar a ela uma pensão até
2091, caso ela viva 75 anos
Ruth Costas - BBC Brasil / www.cartamaior.com.br
Se você trabalhar em uma empresa
privada, ao se aposentar receberá, no máximo, R$ 4.663 pelo INSS. Já se for
funcionário público, dependendo da data em que foi contratado e da carreira que
seguiu, ainda pode receber aposentadoria integral até um teto de cerca de R$ 33
mil (o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal).
Caso também seja viúvo ou viúva
de outro servidor bem remunerado, é possível que receba, somando a
aposentadoria a pensão por morte a que tem direito, um total de mais de R$ 40
mil todo mês, bancados pelos cofres públicos.
"Não há justificativa para
essa diferença entre as condições de aposentadoria do setor privado e do setor
público. Trata-se de um exemplo dos privilégios que precisam ser revistos para
que o país consiga controlar suas contas públicas", defende, em entrevista
à BBC Brasil, o jornalista e economista britânico Brian Nicholson, autor de A
Previdência Injusta: Como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil (Geração
Editorial).
Nicholson diz considerar
"privilégio" um "benefício subsidiado pelo dinheiro
público" e concedido a classes relativamente abastadas. Outros exemplos,
na sua opinião, seriam as aposentadorias precoces do INSS - na faixa dos 40 ou
50 anos –, também os proventos de políticos, juízes e militares e os benefícios
de alguns anistiados políticos e ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial e
seus dependentes.
"É claro que em cada um
desses grupos há casos e casos, mas há muitos exemplos de pensões e
aposentadorias altas, que uma sociedade como a brasileira não tem condição nem
interesse em bancar."
Em um momento em que o Brasil
debate como promover um ajuste fiscal, Nicholson não é o único a defender
mudanças no sistema previdenciário, embora nem sempre haja convergência nas
propostas.
As aposentadorias, pensões e
benefícios pagos pela Previdência representam ao redor de 20% dos gastos do
governo.
Trata-se não só do maior peso
não-financeiro no orçamento (os gastos com juros e amortizações da dívida
pública representam mais de 40%), como uma das rubricas que mais cresce.
Peso no orçamento
Para se ter uma ideia, em 2007,
os gastos da Previdência eram da ordem de R$ 185 bilhões. Hoje, passam de R$
400 bilhões – mais do que o orçamento dos ministérios de Saúde, Educação,
Desenvolvimento Social e Ciência, Tecnologia e Inovação juntos.
Além disso, se as novas regras
para o cálculo da aposentadoria do INSS, vetadas pela presidente Dilma
Rousseff, forem mantidas no Congresso nesta semana, o Ministério da Previdência
prevê um custo adicional da ordem de R$ 1,1 trilhão até 2050.
Outro encargo extra que o governo
quer evitar é a aplicação do reajuste do salário mínimo a todos os
beneficiários do INSS, o que teria um impacto estimado de R$ 11 bilhões até
2019.
Para Nicholson, que vive no
Brasil desde 1976, o ajuste fiscal é uma oportunidade para fazer reformas que
tornem o sistema mais justo.
"Não adianta ficar revisando
o reajuste de quem recebe o mínimo, como parece que o governo está querendo
fazer, ou cortar em programas sociais para a população mais pobre porque isso
pode fazer com que o Brasil retroceda em termos de ganhos sociais. O ideal
seria limitar esses subsídios para os ricos", opina.
Privilégios
O economista do Insper Otto
Nogami concorda que uma reforma eficiente para equilibrar e racionalizar as
contas públicas teria que lidar com a questão dos privilégios e benefícios
concedidos a grupos específicos - mas diz que o problema está longe de estar
apenas nas aposentadorias.
Salários mais altos e
estabilidade no emprego são outros benefícios de quem segue a carreira pública
que, segundo ele, poderiam ser revistos – embora haja quem argumente que isso
poderia provocar uma fuga de talentos do setor.
"Não é à toa que esses
cursinhos preparatórios para concurso público estão abarrotados e, ao mesmo
tempo, as contas não fecham", diz ele. "É claro que os salários podem
ser um pouco maiores, mas em alguns casos há exagero."
O fato de, em meio aos esforços
para se promover um ajuste fiscal, os servidores do Judiciário terem conseguido
a aprovação de um aumento de quase 60% em seu salário para os próximos quatro
anos – outra medida vetada por Dilma, que poderia custar R$ 6,4 bilhões aos
cofres públicos – seria um exemplo do problema.
"O próprio diferencial de
salários e aposentadorias entre diferentes tipos de servidores parece indicar uma
lógica de que, no Brasil, quanto mais próximo do poder mais benefícios você
tem. No Japão, entre os funcionários públicos que possuem melhor remuneração
estão os professores, por exemplo", diz Nogami.
"Por aqui, os super-salários
e aposentadorias altas estão em cargos administrativos, no Legislativo ou
Judiciário. Há um tempo atrás foi notícia até a existência do cargo de ‘diretor
de garagem’ no Senado. No Congresso, também haveria a figura do copeiro, cujo
salário-base seria de mais de R$ 7 mil."
Benefícios
No caso das aposentadorias,
Nogami acredita que um dos fatores que oneram os cofres públicos é o acumulo de
diversos benefícios por políticos e outros servidores que ocuparam cargos em
diversos níveis de governo.
Já Nicholson cita como um dos
exemplos emblemáticos de privilégios o das filhas de militares que ingressaram
no serviço antes de 2001 e têm direito a pensão vitalícia se não se casarem.
No caso de um militar que tenha
uma filha em 2016, por exemplo, o país pode ter de pagar a ela esse benefício
até 2091, caso ela viva 75 anos (a expectativa de vida média dos brasileiros).
"No extremo, podemos
imaginar essa (pensão) relíquia da era colonial sobrevivendo até o século
22", explica o economista em seu livro. "Podemos dizer que o país
decidiu garantir o ‘direito adquirido’ de brasileiras que ainda não nasceram de
receber milhares de reais por mês, até o fim da vida, ao mesmo tempo que (em
função de deficiências no sistema de saúde público) não consegue garantir o
direito de sobreviver de dezenas de milhares de bebês por ano."
Segundo um relatório do Tribunal
de Contas da União divulgado em dezembro, o déficit da Previdência relativo a 1
milhão de servidores públicos e militares aposentados somaria R$ 61 bilhões –
quase duas vezes o que o governo pretende arrecadar relançando a CPMF, o
imposto sobre transações financeiras.
No INSS, que atende mais de 20
milhões de beneficiários, o rombo seria menor, ainda que expressivo: R$ 50
bilhões.
Direito adquirido
No que diz respeito à equalização
das condições de aposentadoria entre o setor público e o privado, há um grupo
importante de economistas que acredita que o que podia ser feito em termos de
reformas, já foi feito.
O teto das aposentadorias de quem
foi contratado depois de 2013, por exemplo, é igual ao do setor privado. Quem
quiser receber mais precisa aderir a um sistema de previdência complementar.
Também foram estipulados limites
de idade para a aposentadoria de servidores em alguns casos. "No longo prazo,
a tendência já parece ser a de um maior equilíbrio", diz Almeida.
A questão é que, como essas
regras só valem para novos funcionários, seu impacto sobre o orçamento não é
imediato, como explica Marcelo Caetano, especialista em previdência do Ipea. "As
mudanças nessa área tendem a ser não só politicamente complicadas, mas também
lentas."
Para que as novas regras valessem
de imediato teria de haver uma revisão do princípio conhecido como
"direito adquirido", previsto na Constituição e que impede que uma
nova lei limite ou anule benefícios e direitos concedidos por lei anterior.
O argumento contrário é que se o
poder público puder mudar suas obrigações a qualquer momento, cria-se um clima
de grande insegurança jurídica no país, como ressalta o economista Francisco
Lopreato, professor da Unicamp.
"Juridicamente não se pode
eliminar um direto que já foi dado. Mesmo que isso seja feito pelo Legislativo,
os beneficiários tenderiam a conseguir apoio da Justiça", diz ele.
Caetano, do Ipea, concorda:
"Não dá para simplesmente voltar atrás no que já foi estipulado. Quando
você negocia essas mudanças precisa de regras de transição."
Já Nicholson defende que uma
reforma constitucional para permitir a flexibilização do "direito
adquirido" beneficiaria toda a sociedade.
"No sistema feudal, muitos
pobres eram servos - e parte de seu tempo pertencia a um nobre local",
exemplifica em seu livro. "Era um 'direito adquirido' do nobre."
Setor privado
No que diz respeito ao setor
privado, o principal problema identificado por economistas é a questão da
aposentadoria precoce.
"Hoje há pessoas que se
aposentam com 48 anos – e em muitos casos ainda continuam a trabalhar, então a
pensão vira um complemento da renda", diz Lopreato.
A média da idade para a
aposentadoria no Brasil é de 54 anos. Entre países da OCDE, organização que
reúne países ricos, o mais comum é a adoção de uma a idade mínima de 65 anos.
"A regra que permite a
aposentadoria por tempo de contribuição faz com que muitos brasileiros recebam
benefícios por um período muito maior de tempo que quem trabalha em países mais
ricos", diz Nicholson.
O próprio governo tem discutido o
tema com sindicalistas em uma tentativa de encontrar uma alternativa para
cobrir o déficit da Previdência.
Lopreato, porém, acha complicado
falar em "privilégios".
"Porque aí temos um juízo de
valor importante. Quando falamos em previdência é importante lembrar que 80%
dos beneficiários recebem um salário mínimo e o sistema beneficia milhões de
pessoas", diz.
"Por outro lado, um número
muito menor de famílias lucra significativamente com os altos juros pagos pelo
governo sobre sua dívida pública e que também representam despesas bilionárias
para os cofres do país. A meu ver, é aí que estão os verdadeiros
privilégios", opina o economista.
Créditos da foto: Agência Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12