A
esperança no Brasil é alvo de um cerco impiedoso. A revanche dos interesses
derrotados, associada aos erros do governo, mantêm a sociedade prostrada.
por:
Saul Leblon // www.cartamaior.com.br
A
esperança no Brasil é alvo de um cerco impiedoso que completa um ano nesta 2ª
feira, desde que Dilma Rousseff foi reeleita, em 26 de outubro de 2014.
A
revanche dos interesses derrotados, associada aos erros do governo na transição
econômica em curso, mantém a sociedade em permanente prostração.
Onde
quer que a esperança no Brasil respire, ressoe ou murmure, golpes de tacape
cuidam de esmaga-la, salgando o campo pisado ao seu redor.
Ato
contínuo, o exército das carpideiras midiáticas se encarrega de martelar e
esganiçar as razões pelas quais é imperativo manter o descrédito em uma nação
de 200 milhões de habitantes; autossuficiente em água, energia e alimentos;
detentora de uma base industrial completa e resgatável; marmorizada de forças
políticas que que há 12 anos afrontam o conservadorismo na luta pela construção
de uma democracia social tardia, em pleno coração da América Latina.
Diuturna,
a narrativa de um Brasil aos cacos dói mais que pancada.
‘O
ano que vem será pior. O outro decepcionante. Não espere muito de 2018...’
O
senador José Serra fala em um arrocho de década e meia.
Para
reduzir a dívida bruta, o tucano advoga a renúncia à autonomia governamental na
condução do investimento público e privado. Pelos próximos 15 anos, estima singelo.
Em um horizonte internacional marcado pela mais adverso e volátil cenário
capitalista desde 1929.
Um
colosso estratégico.
A
rudimentar concepção de responsabilidade fiscal do delfim das elites paulistas,
na verdade um temerário burocrata do engessamento do Estado, tem sua
consequência histórica flagrada pelo economista Fernando Ferrari (leia a
entrevista nesta pág.): ‘Se prevalecesse o projeto de Serra em 2008, o mundo
não teria tido uma recessão, mas uma depressão’, fuzila o professor da UFRGS.
Esse,
o calibre das propostas conservadoras oferecidas a uma sociedade em transe.
Servido
no café da manhã, até o boa noite do último telejornal, o napalm escava a
carne, já furou ossos, aproxima-se da alma.
Não
cessa de queimar.
Idosos
contemplam o futuro dos netos e bisnetos em silëncio, após a escalada do JN.
O
horizonte largo que o pre-sal descortinou é derretido nos altos-fornos das
goelas da desolação.
A
corrupção inaceitável alimenta savonarolas incandescentes. Mas é sobretudo o
soterramento deliberado da autoconfiança na capacidade brasileira que liquefaz
o sentimento de autoestima.
Se
uma recaída se instala, a prontidão aciona a descarga tóxica para devolver o
doente ao estado terminal.
O
espetáculo midiático tem meta e método.
Não
se visa o arcabouço causal incrustrado no financiamento do sistema político,
por exemplo.
Esqueça;
relações de causa e efeito foram banidas o jornalismo isento.
O
que importa é sedimentar o calendário subliminar: ‘...tudo começou em 2003’.
Só
terminará quando ‘tudo o que começou em 2003 for erradicado’.
A
legitimidade atribuída ao caricato operador do dinheiro grosso e dos interesses
finos resume o alvo da faxina.
Trata-se
de entorpecer o discernimento coletivo sobre o essencial.
O
essencial cabe em uma interrogação.
Quem
vai reordenar o país dos próximos 15 anos-- os mercados ou a esperança
mobilizada em nós mesmos?
A
lógica autônoma da ganância rentista, como quer o ‘desenvolvimentista’
Serra? Ou as escolhas do discernimento
democrático, inteiradas das possibilidades e limites da nação?
A
repactuação do desenvolvimento em meio ao esgotamento de ciclo histórico, encontra-se
entre as provas cruciais na vida de um povo.
A
corrosão da autoestima é a arma letal dos conquistadores.
E
o redil ardiloso dos interesses que rejeitam a infiltração da soberania popular
no Estado, para reafirmar a rigidez econômica e institucional prevalecente.
Na
captura do imaginário de uma nação há palavras que devem ser banidas.
Intelectuais
reunidos há dias no lendário marco da resistência à ditadura, o prédio da
antiga faculdade de filosofia da USP, na rua Maria Antonia, em São Paulo,
resgataram a mais subversiva delas.
‘Não
se trata (apenas) de barrar um processo de impeachment’, advertiram em um
manifesto, ‘mas de reinventar a esperança.'
Não
qualquer esperança, a política, indissociável da credibilidade histórica.
E
da ética --calçadas ambas na coerência
pregressa, ou na autocrítica que recapacita para o futuro.
O
PT tem um encontro inadiável com esse tira-teima, cuja protelação é um dos
fatores agravantes da crise brasileira.
A
subestimação da luta ideológica pela esquerda, ao dar um tratamento
convencional à crise, reforça os interditos da narrativa conservadora.
Um
e outro agravam o entorpecimento popular ao ocultar determinações que mascaram
os verdadeiros obstáculos a serem superados e, sobretudo, ao desobrigar a
sociedade do esforço requerido diante de um desafio extraordinário.
Na
síntese iluminadora de István Mészáros, o extraordinário é a atual etapa de uma
acumulação do capital que ‘não consegue
mais funcionar adequadamente no âmbito da economia produtiva’.
O
cassino financeiro global é o locus
sistêmico da engrenagem estéril.
Não
é uma tertúlia marxista.
Estamos
falando da lógica que não saciará enquanto não abater, eviscerar e desossar o
espaço do desenvolvimento e da soberania democrática no século XXI.
As
implicações para a rotina das nações são avassaladoras.
Elas
condicionam as escolhas que o Brasil terá que fazer, comprometem o destino dos
nossos filhos, a sorte dos filhos e
netos que um dia eles terão.
Tratados
econômicos (a exemplo do transpacífico e transatlântico) munidos de tribunais
internacionais de exceção contra a soberania jurídica e legislativa das nações,
constituem a face mais nova desse assalto.
A
exacerbação evidencia a doença autoimune do capital que sabota, espreme e
estreita o alicerce social do emprego e do trabalho, do qual depende,
paradoxalmente, a sua valorização.
Compreende-se
assim a espiral de crises sistêmicas, sendo a de 2008 a quinta delas desde 1980
e a mais abrangente e profunda, de convalescença mais longa e incerta, desde
1929.
Estamos
no aclive de um desmanche histórico.
Sobra
capital especulativo de um lado; a sociedade carece de investimento produtivo
de outro.
A
retração da atividade compromete adicionalmente a margem de ação fiscal dos
governos.
A
anemia do investimento público e da demanda afugenta o capital produtivo.
Parece
uma descrição do Brasil.
E
não é só coincidência.
Os
erros cometidos pelo governo --.juros siderais, a prorrogação dos incentivos
contracílicos etc —não devem obscurecer o peso das determinações mais gerais
que o discurso conservador oculta, e cuja desconsideração aleija a ação
política e econômica.
Grandes
empresas mundiais estão sentadas em trilhões de dólares de liquidez apartados
da produção.
O
paradoxo do capital celibatário é a anemia da demanda efetiva, numa época em
que a riqueza financeira queima nas mãos do mercado.
O
Wall Street Journal (19/10/2015) informa que os bancos dos EUA adotaram uma
nova precaução para sua saúde diante do alongamento da crise: evitar os grandes
depósitos de megaempresas.
O J.P. Morgan Chase & Co., maior banco do país em ativos,
segundo o Wall Street, reduziu essas operações
em mais de US$ 150 bilhões este ano.
O
motivo é o mesmo que faz companhias recomprarem as próprias ações inflando
bônus e dividendos: as oportunidades de aplicação lucrativa definham.
Depósitos
domésticos nos bancos americanos, diz o Federal Deposit Insurance Corp,
atingiram US$ 10,59 trilhões no segundo trimestre.
Um
salto de 38% em relação a 2010.
Os
empréstimos, em contrapartida, despencaram do equivalente a 92% dos depósitos,
em 2007, para 78% deles em 2010.
Hoje
estão em 71% .
Taxas
reais baixíssimas, ou negativas, trancam as opções especulativas em quase todo
o planeta.
Para
arrematar, mesmo tímidas, regras regulatórias passaram a onerar operações especulativas depois de 2008.
Reservas
de até 40% sobre depósitos corporativos são exigidas das instituições bancárias
nos EUA. A contrapartida salta para 100%
no caso de depósitos de fundos assanhados na arte da alavancagem.
O
vapor na caldeira rentista sopra, bufa e urra.
‘Abram
essa porta!’, vociferam rentistas de todas as latitudes em espasmos de
abstêmio.
O
conjunto explica a pressão sobre a presidente do BC norte-americano, a
parcimoniosa Janet Yellen, que segura a tranca de referência do planeta.
Uma
precipitação sua poderá desencadear a recidiva em forma de depressão, num
momento em que o investimento fixo (bens de produção) nos países ricos está 17% abaixo do patamar de 2008; 200
milhões de pessoas continuam desempregadas
e a diferença de renda entre os 10% mais ricos e os 10% mis pobres é de
quase dez vezes --contra sete há uma
geração.
Resumindo:
a desordem financeira mundial não cederá tão cedo, nem tão facilmente.
A
gravidade das mutações em curso desaconselha ilusões em panaceias de ajustes
perfeitos, como evocam Levy, Serra, FMI etc.
A
ideia de que um bom arrocho –aqui e
alhures— devolverá o capitalismo ao mundo pré-2008 enseja, ademais, uma
protelação corrosiva em relação às questões determinantes em jogo.
Sem
freios e contrapesos de repactuação política, que viabilizem a ação
coordenadora do Estado, será impossível, hoje mais que nunca, atender
requisitos e prioridades do desenvolvimento de uma nação.
O
resgate da credibilidade política requer que se conscientize a sociedade brasileira
da encruzilhada que a envolve, mas que não se encerra nem se resolve nela
mesma.
Panaceias
conservadoras, do tipo ‘cortar na carne’, ou a ilusão à esquerda na
autossuficiência da taxação dos ricos,
transpiram notória limitação diante do chão mole que circunda a construção da
democracia social em nosso tempo.
Cortando
o que for possível, taxando o que for capaz, ainda assim a sociedade
defrontar-se-á com dilemas superlativos diante de urgências sobrepostas que
enfrentam interditos inéditos.
Entre
eles o fato de que em regime de livre mobilidade de captais todo capital é
capital estrangeiro e na crise se move contra a nação.
O
desassombro para negociar uma travessia crível implica a honestidade de
compartilhar flancos e riscos, dividir ônus, definir salvaguardas –como a
garantia do emprego, o poder de compra das famílias assalariadas, os serviços
públicos e os programas sociais; mas também alongar o calendário das conquistas
e dos sacrifícios.
Ampliar
a margem de manobra das políticas de desenvolvimento inclui, ademais, um
esforço hercúleo para romper a unidade entre a classe média e o capital.
Interesses
não antagônicos à expansão do investimento, da justiça social e do gigantesco
mercado de massa brasileiro devem ser cooptados.
Qualquer
coisa menos que isso jogará a nação num moedor interminável de crises e ajustes, que os números atuais do
desemprego, da receita, dos juros, do investimento público e privado
prefiguram.
O
PT subestimou as evidências da mutação sistêmica que ora se reafirmam com a
força de uma avalanche capaz de soterra-lo.
A
crise de 2008 era um traço metabólico, não um soluço passageiro do capitalismo.
A
travessia para um novo ciclo de desenvolvimento ficou mais longa,
estrategicamente mais conflitante, quiçá impossível sem a força e o
consentimento de uma ampla frente de forças democráticas que se interponha,
claramente, como referência crível de esperança entre a regressão que nos
assalta e a prostração que nos inoculam os derrotados de 26 de outubro de 2014.
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