Os EUA levaram muito a sério a possibilidade de um
golpe de estado ou assassinato de Evo Morales e treinaram manifestantes
anti-chavistas na Venezuela.
Alexander Main & Dan Beeton - Jacobin -
Tradução de Alejandro Garcia para o Diario Liberdade // www.cartamaior.com.br
No início deste Verão, o mundo viu a Grécia a
tentar resistir a um desastroso “diktat” neoliberal e a receber uma sova
dolorosa no processo. Quando o governo de esquerda grego decidiu fazer um
referendo nacional sobre o programa de austeridade imposto pela “troika”, o
Banco Central Europeu retaliou restringindo a liquidez dos bancos gregos. Com
isso acarretou um fechamento prolongado dos bancos e submergiu a Grécia ainda
mais na recessão.
Apesar dos eleitores gregos terem rejeitado em massa
a austeridade, a Alemanha e o cartel de credores europeu foi capaz de subverter
a democracia e obter exatamente o que queria: submissão total à sua agenda
neoliberal. Na última década e meia, uma luta similar contra o neoliberalismo
vem sendo travada em toda a extensão de um continente e maioritariamente fora
do olhar do público. Ainda que Washington inicialmente tenha procurado anular
toda a dissidência e frequentemente utilizando táticas mais violentas que as
utilizadas contra a Grécia, a resistência da América Latina à agenda neoliberal
tem sido parcialmente bem sucedida. É um conto épico que gradualmente vem vindo
a ser conhecido graças à contínua exploração do massivo tesouro de telegramas
diplomáticos dos Estados Unidos e difundidos pela WikiLeaks.
O neoliberalismo foi firmemente implantado na
América Latina bem antes da Alemanha e as autoridades da zona euro terem
imposto ajustes estruturais à Grécia e a outros países periféricos endividados.
Através da coerção (e.g., condições anexadas a empréstimos do FMI) e
endoutrinação (e.g., treinamento de “chicago boys” regionais apoiados pelos
Estados Unidos), os Estados Unidos tiveram êxito, em meados dos anos 80, em
difundir o evangelho da austeridade fiscal, desregulação, “mercados livres”,
privatização e cortes draconianos no setor público por toda a América Latina.
O resultado foi incrivelmente parecido ao que vimos
na Grécia: crescimento estagnado (quase nenhum crescimento per capita durante
vinte anos de 1980-2000), aumento da pobreza, declínio do nível de vida para
milhões e muitas novas oportunidades para os investidores internacionais e
empresas fazendo dinheiro em pouco tempo. Começando nos finais dos anos 80, a
região começou a ter convulsões e a levantar-se contra as políticas
neoliberais. No início a rebelião era maioritariamente espontânea e
desorganizada — como foi no caso venezuelano das revoltas do “Caracazo” no
início de 1989.
Mas depois, candidatos anti-neoliberais começaram a
ganhar eleições e, para choque do establishment da política externa dos EUA, um
número crescente destes manteve as suas promessas de campanha e começou a
implementar medidas anti-pobreza e políticas heterodoxas que reafirmavam o
papel do estado na economia. De 1999 a 2008, candidatos com inclinação de
esquerda ganharam eleições presidenciais em Venezuelana, Brasil, Argentina,
Uruguai, Bolívia, Honduras, Equador, Nicarágua e Paraguai. Muita da história
das tentativas dos governos dos EUA para conter e reverter a onda
anti-neoliberal pode ser encontrada nas dezenas de milhares de telegramas
diplomáticos dos EUA na região, difundidos pela WikiLeaks e datados desde os
primeiros anos de George W. Bush até aos primeiros anos da administração do
Presidente Obama.
Os telegramas — que analisamos no novo livro, The
WikiLeaks Files: The World According to US Empire — revelam os mecanismos do
dia-a-dia da política de intervenção de Washington na América Latina (e fazem
do mantra do Departamento de Estado de que “os EUA não interfere na política
interna de outros países” uma farsa). Apoio material e estratégico é
providenciado aos grupos de oposição de direita, alguns dos quais são violentos
e anti-democráticos. Os telegramas também pintam uma imagem vívida da
mentalidade ideológica de Guerra Fria dos emissários mais velhos e os expõem a
tentar usar medidas coercivas que fazem lembrar o recente estrangulamento
aplicado à democracia grega.
De forma nada surpreendente, os principais meios de
comunicação ignoraram ou falharam em grande medida em expor estas perturbadoras
crônicas de agressão imperial, preferindo focalizar os relatos potencialmente
embaraçosos dos diplomatas ou as ações ilegais de oficiais estrangeiros. Os
poucos especialistas que deram uma análise de fundo aos telegramas afirmaram
que não havia uma disparidade significativa entre a retórica oficial dos EUA e
a realidade descrita nos telegramas. Nas palavras de um analista de relações
internacionais dos Estados Unidos, “não obtemos uma imagem dos Estados Unidos
como sendo esse todo poderoso mestre das marionetas a tentar puxar as cordas
dos vários governos à volta do mundo para servir os seus interesses
corporativos.” No entanto, uma leitura atenta dos telegramas desmente
claramente esta afirmação.
“Isto Não é Chantagem”
No final de 2005, na Bolívia, Evo Morales teve uma
vitória esmagadora nas eleições presidenciais com base em uma reforma
constitucional, direitos indígenas e a promessa de lutar contra a pobreza e o
neoliberalismo. No dia 3 de Janeiro, apenas dois dias após a sua tomada de
posse, Morales recebeu uma visita do embaixador David L. Greenlee. O embaixador
foi direto ao assunto: O visto dos EUA sobre a ajuda multilateral à Bolívia
dependeria do bom comportamento do governo de Morales. Podia ser uma cena do
Poderoso Chefão.
[O embaixador] mostrou a importância crucial das
[instituições] financeiras internacionais, das quais a Bolívia dependia para
assistência, tais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional. “Quando pensar no BID, deve pensar nos
EUA,” disse o embaixador, “isto não é chantagem, é a simples realidade.”
No entanto, Morales aferrou-se à sua agenda.
Durante os dias seguintes forjou planos para regular novamente o mercado de
trabalho, renacionalizar a indústria dos hidrocarbonetos e estreitar a
cooperação com o arqui-inimigo de Washington, Hugo Chavez. Em resposta,
Greenlee sugeriu um menu de opções para forçar Morales a curvar-se perante a
vontade do seu governo. Estas incluíam; vetar empréstimos multilaterais de
vários milhões de dólares, adiar os já agendados alívios multilaterais da
dívida, desencorajar os fundos da Millennium Challenge Corporation (que a
Bolívia nunca recebeu até hoje, apesar de ser um dos países mais pobres do
hemisfério) e cortar o “apoio material” às forças de segurança bolivianas.
Infelizmente para o Departamento de Estado, em
pouco tempo, ficou claro que este tipo de ameaças seriam devidamente ignoradas.
Morales já tinha decidido reduzir drasticamente a dependência da Bolívia nas
linhas de crédito multilaterais que requisitassem uma habilitação do
Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Poucas semanas depois de tomar
posse, Morales anunciou que a Bolívia já não estaria dependente do FMI, e
deixaria o acordo de empréstimos com o Fundo expirar. Anos mais tarde, Morales,
aconselharia a Grécia e outros países endividados da Europa a seguir o exemplo
de Bolívia e a “libertarem-se da ordem do Fundo Monetário Internacional.”
Não conseguindo forçar Morales às suas jogadas, o
Departamento de Estado começou, então, a centrar-se no fortalecimento da
oposição boliviana. A região controlada pela oposição, Media Luna, começou a
receber cada vez mais assistência dos Estados Unidos. Um telegrama de Abril de
2007, discute “um maior esforço da Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional (USAID) para fortalecer os governos regionais
como contrapeso ao governo central.”
Um relatório da USAID de 2007 mencionava que o seu
Office of Transition Initiatives (OTI) tinha aprovado 101 bolsas por
US$4.066.131 para ajudar os governos departamentais a operar mais
estrategicamente.” Também se fez chegar fundos aos grupos indígenas que se
opunham à visão de Morales para as comunidades indígenas.”
Um ano mais tarde os departamentos de Media Luna,
iriam empenhar-se na rebelião contra o governo de Morales, primeiramente com um
referendo sobre a autonomia, apesar destes terem sido considerados ilegais
pelas autoridades judiciais; e posteriormente apoiando os protestos violentos
pró-autonomia que tiveram como consequência pelo menos 20 simpatizantes do
governo mortos.
Muitos acreditavam que se estava a desenvolver uma
tentativa de golpe de estado. A situação apenas se acalmou com a pressão de
todos os outros presidentes da América do Sul, que emitiram uma declaração
conjunta de apoio ao governo constitucional do país. Mas enquanto que a América
do Sul se unia em apoio a Evo, os Estados Unidos seguiam em comunicação regular
com os líderes da oposição do movimento separatista, mesmo quando estes falavam
em “rebentar com as condutas de gás” e usar a “violência como uma probabilidade
de forçar o governo a levar a sério qualquer diálogo.”
Contrariamente à posição oficial durante os eventos
de Agosto e Setembro de 2008, o Departamento de Estado, levou muito a sério a
possibilidade de um golpe de estado ou assassinato do presidente boliviano, Evo
Morales. Um telegrama revela planos da Embaixada dos EUA em La Paz para tal
caso: “[o Emergency Action Committee] irá desenvolver, com [o US Southern
Command Situational Assessment Team], um plano de resposta no caso de uma
urgência repentina, i.e. um golpe de estado ou a morte do Presidente Morales,”
lê-se no telegrama.
Os acontecimentos de 2008 foram o maior desafio até
agora da presidência de Morales e a situação em que ele esteve mais perto de
ser derrubado. As preparações para uma possível saída da presidência de Morales
revelam que os Estados Unidos, pelo menos, acreditaram que a ameaça a Morales
era bastante real. O fato de não ter dito nada publicamente apenas sublinha de
que lado Washington se posicionava durante o conflito e qual desfecho
provavelmente preferiria.
Como Funciona
Alguns dos métodos de intervenção usados na Bolívia
foram emulados de outros países com governos de esquerda ou com movimentos
fortes de esquerda. Por exemplo, após o regresso dos Sandinistas ao poder, em
Nicarágua, no ano 2007, a embaixada dos EUA em Manágua trabalhou “a toda a
velocidade” para reforçar o apoio ao partido de oposição de direita, o Alianza
Liberal Nicaraguense (ALN). Em Fevereiro de 2007, a embaixada reuniu com o
coordenador estratégico do ALN e explicou-lhe que os EUA “não providenciavam
assistência direta a partidos políticos,” mas — de maneira a ultrapassar esta restrição
— sugeriu que o ALN estivesse mais estreitamente coordenado com ONGs amigas que
pudessem receber fundos dos EUA.
A líder do ALN disse que “avançaria com uma lista
extensiva da lista ONGs que, de fato, apoiam os esforços do ALN” e a embaixada
proporcionou-lhe “encontros com os diretores para o país do IRI [Instituto
Republicano Internacional] e NDI [Instituto Internacional Democrata para os
Assuntos Internacionais].” O telegrama também faz notar que a embaixada iria
“dar seguimento ao incremento de angariação de fundos” para o ALN.
Telegramas como este deveriam ser de leitura
obrigatória para estudantes da diplomacia dos EUA e aqueles que querem perceber
como o sistema de “promoção de democracia” realmente funciona. Através do
USAID, Fundação Nacional para a Democracia (NED), NDI, IRI e outras entidades
para-governamentais, o governo dos EUA fornece uma ampla assistência aos
movimentos políticos que apoiem os objetivos econômicos e políticos dos EUA.
Em Março de 2007, o embaixador dos EUA na Nicarágua
pediu ao Departamento de Estado que providenciasse aproximadamente 65 milhões
de dólares acima dos níveis de base recentes nos próximos quatro anos — ao
longo das próximas eleições presidenciais de maneira a financiar o
“fortalecimento dos partidos políticos, ONGs “democráticas” e “pequenas e
flexíveis subvenções de decisão rápida a grupos comprometidos em desenvolver
esforços críticos que defendam a democracia em Nicarágua, que façam avançar os
nossos interesses e se contraponham a aqueles que se mobilizam contra nós.”
No Equador, a embaixada dos EUA opôs-se ao
economista de esquerda, Rafael Correa, vencedor destacado nas eleições de 2006
e o levaram ao cargo presidencial. Dois meses antes dessas eleições, o
conselheiro político da embaixada alertou Washington que “se podia esperar que
Correa se juntasse ao grupo Chavez-Morales-Kirchner de líderes sul americanos
nacionalistas-populistas,” e fazia notar que a embaixada tinha “avisado os
nossos contatos políticos, econômicos e midiáticos da ameaça que Correa
representa para o futuro de Equador e desencorajou as alianças políticas que
podiam equilibrar a percepção de Correa com o radicalismo.” Imediatamente após
a eleição de Correa, a embaixada enviou um telegrama ao Departamento de Estado
com o seu plano de jogo:
Não mantemos ilusões de que as tentativas do
Governo dos Estados Unidos possam influenciar a direção do novo governo ou do
Congresso, mas esperamos maximizar a nossa influência junto com outros
equatorianos e grupos que partilham os nossos pontos de vista. As propostas de
reformas de Correa e atitude perante o Congresso e partidos políticos
tradicionais, se não for controlada, pode prolongar o período atual de
conflitos e instabilidade.
Os maiores medos da embaixada foram confirmados.
Correa anunciou que fecharia a base aérea dos EUA em Manta, aumentaria os
gastos sociais, e avançaria uma assembleia constituinte. Em Abril de 2007, 80
porcento de eleitores equatorianos validaram a proposta de uma assembleia
constituinte e em 2008, 62 porcento aprovaram a nova constituição que
consagrava uma série de princípios progressistas, incluindo a soberania
alimentar, direito à habitação, saúde e emprego e controle governamental sobre
o banco central (um enorme não-não à cartilha neoliberal).
No início de 2009, Correa anunciou que o Equador
cumpriria parcialmente com a sua dívida externa. A embaixada estava furiosa com
esta decisão e outras ações recentes, como a decisão de Correa de alinhar
Equador mais estreitamente com a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa
América (ALBA) de esquerda (que tinha sido iniciada pela Venezuela e Cuba em
2004 como contrapeso à Área de Comércio Livre das Américas (ALCA), naquela
altura promovida pela administração Bush. Mas o embaixador estava também
consciente de que tinha pouca influência sobre ele:
Estamos a transmitir a mensagem em privado de que
as ações de Correa irão ter consequências na sua relação com a nova
administração de Obama, enquanto evitamos comentários públicos que seriam
contraproducentes. Não recomendamos que se termine qualquer programa do Governo
dos Estados Unidos que sirvam os nossos interesses uma vez que essa opção
apenas enfraqueceria os incentivos de Correa de retroceder para uma posição
mais pragmática.
O incumprimento parcial teve sucesso e aforrou ao
governo equatoriano aproximadamente 2 bilhões de dólares. Em 2011, Correa
recomendou o mesmo tratamento para os países europeus endividados,
particularmente Grécia, aconselhando-os a não cumprir os pagamentos da dívida e
'ignorar o conselho do FMI.'
As Ruas Estão Quentes
Durante a Guerra Fria, a suposta ameaça do avanço
soviético e cubano serviu para justificar um sem número de intervenções para
remover governos de inclinação de esquerda e apoiar regimes militares de
direita. De maneira similar, os telegramas do WikiLeaks mostraram como, nos
anos 2000, o espectro do “Bolivarianismo” foi usado para validar intervenções
contra novos governos de esquerda anti-liberais, como o da Bolívia,
representado como tendo “caído sem reservas no abraço venezuelano;” ou do
Equador, visto como um “testa-de-ferro” para Chávez”
As relações com o governo de esquerda de Hugo
Chávez amargaram desde o início. Chávez eleito presidente pela primeira vez em
1998, rejeitando amplamente as políticas econômicas neoliberais, desenvolveu
uma relação estreita com Cuba de Fidel Castro e criticou, bem alto, o assalto
da administração Bush ao Afeganistão após os ataques de 9/11 (os EUA retiraram
o seu embaixador de Caracas após Chavéz ter proclamado: “Não podes lutar contra
o terrorismo com terrorismo”).
Mais tarde fortaleceu o controle governamental do
setor petrolífero, aumentando os valores de royalties pagos pelas empresas
estrangeiras e usou as receitas do petróleo para financiar o sistema público de
saúde, educação e programas alimentares para os pobres.
Em Abril de 2002, a administração Bush validou
publicamente um golpe de estado, de pequena duração, que removeu Chávez do
poder por quarenta e oito horas. Os documentos da Fundação Nacional para a
Democracia, obtidos através da Freedom of Information Act [Lei pela Liberdade
de Informação], mostraram que os EUA forneceram fundos para a “promoção da
democracia” e treinamento a grupos que apoiassem o golpe de estado e que mais
tarde viriam a estar envolvidos em esforços para remover Chávez através de “greves”
administrativas que paralisaram a indústria petrolífera, nos finais de 2002 e
mergulharam o país em recessão. Os telegramas da WikiLeaks mostram que após
essas tentativas falhadas de derrubar o governo eleito venezuelano, os EUA
continuaram a apoiar a oposição venezuelana através da NED e USAID.
Em um telegrama de Novembro de 2006, William
Brownfield, embaixador naquela altura, explicava a estratégia de USAID/OTI para
debilitar a administração de Chávez:
Em Agosto de 2004, o embaixador delineava os 5
pontos estratégicos da sua equipe para o país neste período [2004-2006] que
serviriam de guia para a embaixada... o foco da estratégia é: 1) Fortalecimento
das Instituições Democráticas, 2) Penetrar na Base Política de Chávez, 3)
Dividir o Chavismo, 4) Proteger os negócios vitais dos EUA, e 5) Isolar Chávez
internacionalmente.
Os laços apertados que existem entre a embaixada
dos EUA e os vários grupos de oposição são evidentes em numerosos telegramas.
Um telegrama de Brownfield relaciona a Súmate — uma ONG que teve um papel
central nas campanhas de oposição — aos “nossos interesses na Venezuela.”
Outros telegramas revelam que o Departamento de Estado fez pressão
internacional para que se demonstrasse apoio à Súmate e encorajou apoio
financeiro, político e legal dos EUA a esta organização, muito dele canalizado
através da NED.
Em Agosto de 2009, a Venezuela foi atingida por
protestos violentos de oposição (como tinha ocorrido um variado número de vezes
sob Chávez e depois com o seu sucessor Nicolas Maduro). Um telegrama secreto de
27 de Agosto cita o contratante Development Alternatives Incorporated (DAI)
referindo-se a “todas” as pessoas protestando naquele momento como “nossos
beneficiários”:
[O empregado da DAI] Eduardo Fernandez disse que
“as ruas estão quentes” referindo-se aos cada vez maiores protestos contra as
tentativas de Chávez de consolidar o poder e que “todas estas pessoas
(organizando os protestos) são nossos beneficiários.”
Os telegramas também revelam que o Departamento de
Estado providenciou treinamento e apoio a um líder estudante que
reconhecidamente tinha liderado multidões com a intenção de “linchar” um
governador Chavista: “Durante o golpe de estado de Abril de 2002, [Nixon]
Moreno participou nas manifestações no estado de Merida, liderando multidões
que marcharam na capital do estado para linchar o governador Florencio Porras
do MVR.”
No entanto, uns anos depois disto, outro telegrama
mostra: “Moreno participou no International Visitor Program [do Departamento de
Estado] em 2004.” Moreno viria mais tarde a ser procurado por tentativa de
homicídio e ameaças a uma polícia, além de outras acusações. Também na linha da
estratégia dos cinco pontos, como delineava Brownfield, o Departamento de
Estado priorizava os seus esforços no isolamento internacional do governo
venezuelano e em contrabalançar a sua influência em toda a região. Os
telegramas mostram como os chefes das missões diplomáticas na região
desenvolveram estratégias coordenadas para contrabalançar a “ameaça” regional.
Assim como a WikiLeaks inicialmente revelou em
Dezembro de 2010, os chefes de missão para 5 países sul americanos
encontraram-se no Brasil em Maio de 2007 para desenvolver uma resposta conjunta
aos alegados “planos agressivos” do Presidente Chávez… de criar um movimento
unificado Bolivariano por toda a América Latina.” Entre as áreas de ação que os
chefes de missão havia um plano de “continuar a fortalecer laços com aqueles
líderes militares na região que partilham a nossa preocupação com Chávez.” Um
encontro similar dos chefes de missão dos EUA da América Central — focada na
“ameaça” de “atividades políticas populistas na região” — realizou-se na
embaixada dos EUA em El Salvador em Março de 2006.
Os diplomatas dos EUA fizeram grandes esforços para
tentar prevenir que os governos das Caraíbas e América Central se juntassem à
Petrocaribe, um acordo regional de energia de Venezuela que providencia
petróleo aos seus membros em termos extremamente preferenciais. Telegramas
vindos a público mostram que os oficiais norte-americanos reconheciam, de forma
privada, os benefícios econômicos do acordo para os países membros, assim como
mostravam preocupação que a Petrocaribe fosse aumentar a influência daVenezuela
na região.
No Haiti, a embaixada trabalhou de forma estreita
com grandes empresas de petróleo para tentar prevenir que o governo de René
Préval se juntasse à Petrocaribe, apesar de reconhecerem que “liberaria 100
milhões de dólares por ano,” como foi reportado por Dan Coughlin e Kim Ives na
Nation. Em Abril de 2006 a embaixada “telegrafou” de Porto Príncipe:
“Continuaremos a pressionar [o presidente René do Haiti] Preval contra a sua
adesão à PetroCaribe. O embaixador verá hoje o conselheiro chefe de Preval, Bob
Manuel. Em reuniões anteriores este compreendeu as nossas preocupações e está
consciente que um acordo com Chávez iria provocar problemas conosco.”
O Histórico da Esquerda
Devemos ter em conta que os telegramas do WikiLeaks
não mostram vislumbres das atividades mais secretas das agências de informação
dos EUA e são provavelmente apenas a ponta do icebergue no que toca às
interferências políticas de Washington na região. No entanto os telegramas
fornecem evidências alargadas da persistência e dos esforços determinados dos
diplomatas dos EUA em intervir contra os governos de esquerda na América
Latina, usando a alavancagem financeira e os múltiplos instrumentos disponíveis
na caixa de ferramentas para a “promoção da democracia” — e às vezes até
através de meios violentos e ilegais.
Apesar do restabelecimento das relações
diplomáticas com Cuba por parte da administração Obama, não há indicações de
que as políticas em relação à Venezuela e outros governos de esquerda da
América Latina tenham mudado significativamente. Não há dúvida que a
hostilidade da administração em relação ao governo eleito da Venezuela é
inexorável. Em Junho de 2014, o Vice Presidente Joe Biden deu início à
Caribbean Energy Security Initiative, visto como um “antídoto” à Petrocaribe.
Em Março de 2015, Obama declarou Venezuela como “ameaça extraordinária à
segurança nacional” anunciado sanções contra oficiais venezuelanos, uma atitude
criticada de forma unânime por outros países na região.
Mas, apesar das agressões incessantes dos EUA, a
Esquerda, em grande medida, tem prevalecido na América Latina. Com a excepção
de Honduras e Paraguai, onde golpes de estado de direita derrubaram líderes
eleitos, quase todos os movimentos de esquerda que chegaram ao poder nos
últimos quinze anos mantêm-se ainda hoje no poder.
Principalmente como resultado destes governos, de
2002 a 2013 a taxa de pobreza da região baixou de 44% para 28% após ter, de
fato, piorado nas duas décadas anteriores. Estes sucessos e vontades dos
líderes de esquerda de correr riscos de maneira a se libertarem do diktat
neoliberal, deve hoje ser uma fonte de inspiração para a esquerda
anti-austeridade da Europa. É certo que alguns dos governos estão hoje a passar
por dificuldades significativas, em parte devido à recessão econômica regional
que afetou os governos de direita e de esquerda de igual maneira. Mas visto
através das lentes dos telegramas, há boas razões para questionar se todas
estas dificuldades são fomentadas internamente.
Por exemplo, em Equador — onde o presidente Correa
está sob ataque da Direita e de alguns setores da Esquerda — os protestos
contra as novas propostas de impostos progressivos envolve os mesmos homens de
negócios, alinhados com a oposição, com quem os diplomatas dos EUA são vistos a
definir estratégias nos telegramas.
Em Venezuela, onde um sistema de controlo monetário
disfuncional gerou uma enorme inflação, protestos violentos de estudantes de
direita desestabilizaram seriamente o país. As probabilidades são extremamente
altas de que alguns destas pessoas que protestam tenham recebido financiamentos
e/ou treinamento da USAID ou NED, que viram o seu orçamento para Venezuela
aumentar 80 porcento de 2012 para 2014.
Ainda há muito mais a aprender dos telegramas da
WikiLeaks. Para os capítulos América Latina e as Caraíbas” do “The WikiLeaks
Files”, examinamos atentamente centenas de telegramas e fomos capazes de
identificar distintos padrões de intervenção dos EUA que descrevemos em maior
profundidade no livro (alguns destes já previamente reportados por outros).
Outros autores do livro fizeram o mesmo para outras regiões do mundo. Mas há
mais de 250,000 telegramas (quase 35,000 só da América Latina) e há sem dúvida
muitos outros aspectos referenciáveis da diplomacia dos EUA na atualidade que
estão à espera de ser desmascarados.
Tristemente, após a excitação inicial, na altura
que os telegramas foram inicialmente divulgados, poucos jornalistas e
acadêmicos têm mostrado grande interesse no assunto. Até que isto mude, não
teremos uma discrição completa de como os EUA se vêem a si mesmos no mundo e
como o seu braço diplomático responde aos desafios à sua hegemonia.
Créditos da foto: wikimedia commons
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