Para o autor do livro 'O império da vigilância', os
governos não conseguem garantir a segurança total mesmo colocando todas as
pessoas sob vigilância
Durante 18 anos, Ignacio Ramonet dirigiu o
prestigioso Le Monde Diplomatique, um dos jornais mais conhecidos do mundo e
principal tribuna do movimento pela via alternativa. Este jornalista espanhol,
que vive na França, e que atualmente dirige o LeMondeDiplo, a versão espanhola
da publicação, falou sobre como o governo de François Hollande aprova um ataque
às liberdades e uma prorrogação de três meses do estado de emergência decretado
após os atentados do último dia 13, tentando fortalecer as capacidades de suas
forças de segurança.
Para o autor do livro “O império da vigilância”, os
governos “não podem garantir a segurança total”. Porém, “o estado de emergência
supõe um abandono das liberdades democráticas e republicanas”. Também afirmou
que “hoje em dia, existem instrumentos capazes de vigiar a todos”. Uma
vigilância que ele garante que “é ineficaz”, segundo seu novo livro, convertido
quase numa premonição, já que foi publicado no dia 12 de novembro, véspera dos
atentados jihadistas que empurraram a intimidada sociedade francesa a aceitar
as medidas propostas por Hollande.
A sociedade francesa, que tradicionalmente defende
seus direitos de forma férrea, aceitará essa troca de menos liberdade por mais
segurança?
Ignácio Ramonet: estamos num momento mais emocional.
Os atentados aconteceram há pouco mais de uma semana, e desde então estamos
conhecendo os detalhes do acontecido, com os testemunhos de pessoas que viveram
um inferno. Neste momento o Estado pode pedir praticamente o que quiser à
sociedade, que está em condições emocionais de aceitá-lo.
Acabamos de ver como o presidente conseguiu uma
união nacional em plena campanha eleitoral para o dia 6 de dezembro – eleições
regionais. Conseguiu aprovar uma série de medidas, algumas delas propostas pela
direita, em meio a um clima de unanimidade geral. Quando ocorrem
monstruosidades como essa, as sociedades se intimidam, somente houve críticas à
prorrogação do estado de emergência, que significa um abandono das liberdades
democráticas e republicanas. Em meu livro, eu falo do que aconteceu após o 11
de setembro de 2001, quando os Estados Unidos promulgou a Patriot Act, com essa
mesma ideia, um contrato com os cidadãos: aceite perder um pouco da sua
liberdade e eu garanto mais segurança. O problema é que a Patriot Act está
vigente ainda hoje.
Mais vigilância é garantia a de mais segurança?
Ramonet: não, a vigilância massiva já demonstrou
que não é eficaz. A segurança total não existe, ainda que os governantes,
obviamente, não possam dizer isso, sobretudo neste momento. O que a sociedade
pede ao governante é segurança absoluta, e a resposta dele é essa. Mas a
segurança absoluta não existe, menos ainda quando se enfrenta a grupos
terroristas.
Entretanto, a vigilância massiva sim existe. Nós
sabemos disso desde as revelações de Edward Snowden. Hoje em dia, existem
instrumentos para vigiar a todos. É uma espécie de coação: eu te dou máxima
segurança, mas você permite que eu te vigie totalmente. Só que enquanto eles
vigiam você, não vão e nem podem garantir essa segurança máxima.
As sociedades devem aceitar essa troca?
Ramonet: claro que não! Esse é todo o sentido do
livro que acabo de publicar. O problema é que neste momento é muito difícil
emitir críticas, porque quem o faz aparece como um aliado dos terroristas.
Qual é a alternativa à vigilância?
Ramonet: a vigilância é legítima. É perfeitamente
legítimo que um governo vigie, na medida em que o faça de forma democrática,
através de uma ordem judicial, com controle democrático. Se um juiz determina
que uma pessoa deve ser vigiada, deve haver um motivo. A questão não está em se
opor a todo tipo de vigilância, e sim na vigilância massiva, que é o que se
pratica atualmente. Massiva e clandestina. O princípio é “vigiar todo mundo
para poder, no dia de amanhã, identificar aqueles que podem cometer um
atentado”. Estamos perdendo liberdades sem que isso seja suficientemente
debatido ou discutido, num momento emocional determinado, favorável a que se
aceite qualquer coisa.
A França promulgou uma lei, em maio, que permite
aos serviços secretos grampear conversas sem necessidade de controle judicial.
A lei se impôs com a emoção dos atentados de janeiro contra o Charlie Hebdo.
Basta que o primeiro-ministro Manuel Valls autorize. Mas, o primeiro-ministro
não é um juiz! Não é o Poder Judiciário, é um político, é o Poder Executivo.
A ferramenta para a vigilância massiva é a
Internet, que permite um registro exaustivo de todos os nossos movimentos e
conversações. Pode-se dizer que já perdemos a liberdade na rede?
Ramonet: quando a Internet surgiu, era um ambiente
de liberdade, porque democratizava o acesso à informação. Porém, isso foi sendo
centralizado, e hoje, cerca de 99% das pessoas que navegam pela Internet
utilizam quase inevitavelmente uma das grandes cinco empresas digitais: Google,
Apple, Facebook, Amazon ou Microsoft.
Hoje, quando você utiliza a Internet está entrando
por essa peneira que permite às autoridades ter acesso a todos os seus dados.
Primeiro, porque essas empresas entregam os dados ao governo dos Estados Unidos
por lei. Segundo, porque os estados colocaram em marcha seus próprios sistemas
de vigilância. Hoje, é muito mais seguro enviar uma carta pelo correio que
enviar um email. A carta não é vigiada por ninguém, mas qualquer comunicação digital
deixa um rastro, os metadados. De onde você a envia, para quem a envia, quanto
tempo durou essa comunicação, quando aconteceu… uma série de dados com os que
se pode fazer uma espécie de galáxia de todos os seus contatos e conhecimentos,
um verdadeiro atlas da sua vida, sem que você saiba que informações estão sendo
guardadas e analisadas sobre você mesmo.
Tudo é gravado, embora escutar todas essas
conversas seja algo muito mais complicado, porque supomos que é impossível
haver gente suficiente para escutar tudo. Mas essa informação existe e está
guardada. São dados coletados automaticamente, de forma massiva, de todos nós.
Os Estados Unidos têm acesso direto a esses dados,
graças às empresas que você citou. Você acredita que existe um neocolonialismo
na Internet? Que a rede que aparenta ser aberta e supranacional é um território
controlado pelos Estados Unidos?
Ramonet: está controlado por estas empresas
americanas. No livro, por exemplo, eu publico um informe da CIA sobre isso: “o
mundo em 2030”. Lá se diz que até o ano de 2030, um dos perigos para os Estados
Unidos é precisamente que essas cinco empresas consigam ter um poderio em
termos de informação maior que o do próprio governo estadunidense. Não falamos
mais de imperialismo norte-americano, mas do domínio das empresas, que
efetivamente são estadunidenses.
Nós dominamos a tecnologia ou a tecnologia é que
nos domina?
Ramonet: o problema é que hoje já não podemos viver
sem a tecnologia. Seria muito difícil fazer tudo o que fazemos sem a Internet.
A pergunta é legítima. No dia de hoje, creio que a resposta é que a tecnologia
nos domina, não podemos nos desconectar.
Você, em seu livro, defende os “lançadores de
alertas”, os classifica como heróis, pessoas como Julian Assange e Edward
Snowden. Porém, os alertas que eles lançaram não parecem ter comovido tanto a
sociedade, poucos tomaram consciência e modificaram seus costumes.
Ramonet: exato. Isso é uma realidade. A maioria das
pessoas não se molesta com o estado de vigilância. A prova disso é que o
Facebook vive de dados que nós subimos voluntariamente, não são arrancados de
nós.
O que a sociedade diz com esse comportamento é que
aquele que se molesta porque está sendo vigiado deve ter algo que esconder. E
se quer esconder algo é porque, como diz Assange, é potencialmente um dos
quatro cavaleiros do infocalipse: um traficante de drogas, ou um pedófilo, ou
um sonegador fiscal, ou um terrorista. Se eu não sou nada disso, não me importa
se me vigiam, não tenho nada que ocultar.
O problema é quando os governos começam a fazer uso
dessa informação contra as pessoas. Estamos todos nus diante disso. É a
distopia de 1984. Os europeus acham que isso algo muito distante, mas já está
acontecendo no Irã e na Arábia Saudita, com governos que perseguem suas
dissidências.
Os jornalistas estão fracassando ao comunicar esse
perigo?
Ramonet: eu acho que não, porque embora os
jornalistas tenham maior sensibilidade, é a sociedade que termina não tomando
consciência. A sociedade não valora suficientemente o heroísmo de pessoas como
Assange. Quem são as pessoas mais perseguidas do mundo? Assange, Snowden,
Chelsea Manning, condenada a 30 anos de prisão por ter revelado crimes que não
deveria ocultar. Assange está há três anos preso na Embaixada do Equador em Londres,
e Snowden está exilado na Rússia. E o que fizeram que merece tanta perseguição?
Demonstraram que estamos sendo vigiados. Denunciaram um atentado contra as
nossas liberdades.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: reprodução
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