O Brasil deve recuperar a natureza pública de seus
recursos naturais e romper com a lógica mesquinha da mercantilização desse
potencial estratégico.
Paulo Kliass* // www.cartamaior.com.br
A catástrofe de Mariana e a ação criminosa
desenvolvida pelas empresas Samarco e Vale trazem ao centro da cena o debate a
respeito do processo de mercantilização crescente da ação do ser humano sobre o
meio ambiente. O aprofundamento da tendência de acumulação de capital em escala
planetária tem transformado, de forma crescente e alarmante, a exploração dos
recursos naturais em mais um espaço de multiplicação dos ganhos econômicos e
financeiros.
Na perspectiva da reprodução ampliada da acumulação
do capitalismo, tudo se transfigura. Água não é mais apenas água. Mar deixa de
ser simplesmente mar. Atmosfera passa a significar muito mais do que a mera
atmosfera. A definição de subsolo extrapola o limitado sentido de tudo que está
baixo do solo. Alguém aí mencionou preocupação com equilíbrio ecológico
sistêmico ou com os riscos para o futuro do planeta? Bobagem! Don’t worry, my
dear! A eficiência racional do empreendimento privado nos assegura que tudo o
que for feito será para o bem de todos.
Mercantilização: dos serviços públicos ao meio
ambiente.
No caso brasileiro, a onda neoliberal dos anos 1990
conseguiu avançar na privatização de importantes setores que, tradicionalmente,
eram encarados como sendo de fornecimento de bens e serviços públicos. Dessa forma,
os horizontes de investimento capitalista se ampliaram para além da energia,
das comunicações, dos transportes, da segurança, da previdência, da educação e
da saúde – só para citar apenas alguns exemplos. Passaram todos a se constituir
em ramos de possível acumulação de capital.
Esse movimento se combina à ampliação também do
potencial de exploração “empreendedora” sobre o meio ambiente. A opção por
definir políticas públicas prioritárias para o novo modelo de exploração
pós-colonial (re) transformou nosso País em explorador e exportador de produtos
primários. Sejam eles associados às atividades do complexo do agronegócio
concentrador e espoliador, sejam aqueles associados à extensa rede da extração
de produtos minerais.
O desastre de Mariana revela justamente toda a
maldade e a crueldade envolvidas na gestão de um grande empreendimento
econômico cujo único foco seja a maximização de resultados para os ganhos
exclusivos de seus proprietários e acionistas.
Ao contrário do que tentou divulgar uma parte dos meios de comunicação,
não existiu nada de “natural” nem de “inevitável” naquele terrível acidente. Ou
que a empresa teria sido, ela também, “vítima” do imponderável, como chegou a
declarar um secretário do governo de Minas Gerais.
Eficiência (sic) privada leva à catástrofe.
Muito pelo contrário, todos os indícios apontam
para a negligência da Samarco e de órgãos públicos municipais, estaduais e
federais envolvidos no tema. As licenças e autorizações de funcionamento da
mina e da barragem haviam vencido meses antes do ocorrido e nada foi feito para
corrigir essa falha. Outras minas e barragens semelhantes apresentam riscos
parecidos e a população da região próxima vive, há tempos, um clima de tensão
permanente a respeito da possibilidade de novas rupturas.
No entanto, como a dinâmica empresarial se move
apenas pela lógica da maximização de resultados, as corporações solenemente
ignoram a necessidade de realizar despesas para minimização de riscos ou mesmo
interromper as atividades para evitar eventos indesejados. Não! Em busca do
lucro, aceleram-se os padrões de exploração dos minérios, custe o que custar.
Frente ao desastre acontecido, desnudam-se os
interesses envolvidos. Governo federal e governo estadual calam-se, evitando
dar os nomes aos bois. Afinal, a Samarco é uma empresa cuja composição
acionária é 50% da Vale e 50% da BHP Billiton, um poderoso grupo
anglo-australiano do ramo. As relações incestuosas entre setor público e setor
privado são de tal ordem, que as ações pós-acidente continuaram a ser
coordenadas pela própria empresa e não pelos órgãos do poder público
responsáveis pela gestão desse tipo de crise .
Doações eleitorais e rabo preso.
Pouco a pouco, à medida que as informações
relativas a doações para campanhas eleitorais começam a ser reveladas,
percebe-se de forma mais cristalina o impressionante poder que a Samarco e a
Vale exercem sobre os agentes públicos. Quase todo mundo - em todos os níveis
da administração pública e em todos os grandes partidos políticos - estava de rabo
preso. Haviam recebido recursos milionários para custear as despesas do pleito
e não ousavam aplicar à Samarco as regras da lei e as punições cabíveis.
Pessoas que morreram ou se feriram por conta do
acidente? Comunidades próximas que sofreram e sofrerão consequências de toda a
ordem por conta do impacto ocorrido? Cidades e populações que estão sentindo os
efeitos secundários da passagem do mar de lama e o envenenamento do Doce e
demais rios da região? Os efeitos danosos para as atividades econômicas ao
longo de toda a faixa de extensão continental de Minas Gerais e Espírito Santo?
Os impactos da chegada da lama sobre o delta do rio e a faixa litorânea do
Oceano Atlântico? Tudo isso parece não fazer o menor sentido face à necessidade
de preservar os interesses da empresa.
Os valores
de multas inicialmente aventados revelam-se insuficientes face à dimensão dos
malefícios causados e tornam-se irrelevantes frente a casos comparáveis em
outros locais e países. Por outro lado, os valores tornados públicos para
promover as indenizações relativas à reparação de danos e perdas humanas,
materiais e ambientais tampouco são suficientes para dar conta das necessidades
contabilizadas.
O que é mais bilionária: indenização ou sonegação?
A British Petroleum, por exemplo, fez um acordo
para pagar US$ 21 bilhões ao governo norte-americano, como indenização das
consequências do acidente provocado por vazamento de óleo no Golfo do México em
2010. Ora, esse montante equivalente a R$ 75 bi é muito superior aos
levantamentos iniciais de R$ 10 a 14 bi para o que ocorreu com a mina da
Samarco. E a maioria dos especialistas avalia que os impactos do caso
brasileiro são muito mais custosos do que o da BP. Mas os espaços dedicados na
imprensa ao tema costumam chamar a atenção para as dificuldades da empresa -
coitadinha! - em dar conta de tal responsabilidade.
Pouco se fala a respeito de possibilidade de
cobertura do sinistro recorrendo ao expediente do resseguro. Esse procedimento
é obrigatório em empreendimentos desse porte e a sociedade brasileira gostaria
de saber a quantas anda esse dossiê. E mesmo, no limite, nada se debate sobre
alternativa da União se valer do expediente da estatização do patrimônio da
empresa concessionária e de sua controladora para fazer face a tal obrigação.
Esses são casos típicos em que se pode aplicar o recurso à desapropriação de
ativos privados. Inclusive pelo fato de que a Vale encabeça a lista dos maiores
grupos devedores à União, com quase R$ 42 bilhões de dívidas tributárias não
quitadas. Em português claro: crime de sonegação.
Afinal, nunca é demais recordar que a Cia Vale do
Rio Doce foi privatizada a preço de banana em maio de 1997, tendo sido sua
propriedade entregue ao capital privado por apenas R$ 3,3 bilhões. A título de
comparação, para se ter uma noção de quão irrisório foi o valor da negociata,
naquele mesmo ano, o lucro líquido da Vale foi quase 4 vezes superior ao valor
da venda de seu patrimônio: R$ 13 bi. E na sequência, os lucros anuais foram
sempre bilionários, atingindo o recorde histórico em 2011, quando chegou à
cifra de R$ 37 bi.
É claro que não se pode assegurar que, fosse a Vale
ainda uma empresa estatal do governo federal, um acidente desse porte jamais
teria acontecido. No entanto, o fato de ela estar na esfera pública, de forma mais
transparente e direta, certamente poderia contribuir para um sistema mais
adequado de controle de seu desempenho operacional. Isso porque a situação
atual - por mais contraditório que possa parecer - da trama de poder da Vale
envolve uma participação acionária majoritária do BNDES e de fundos de pensão
vinculadas a empresas estatais. Isso significa dizer que a União teria 60,5% do
poder na assembleia de acionistas. Ou seja, a velha estória de recursos
públicos sendo apropriados e comandados pelo capital privado.
Enfim, seja a Vale um empresa estatal ou privada, o
fato relevante é que as orientações de sua exploração sobre o solo e subsolo de
nosso País devem passar por uma profunda reavaliação. Isso significa recuperar
a natureza pública de nossos recursos naturais e romper com a lógica mesquinha
da mercantilização desse potencial estratégico. Afinal, exportar minério de
ferro extraído do Brasil a preços aviltantes para uma empresa do grupo na China
e importar os trilhos lá manufaturados para construir as suas ferrovias em
território brasileiro não é a melhor solução.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal.
Créditos da foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil
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