Penetrando no teatro de operações sírio, o Exército
russo pretende mostrar que tem capacidade para honrar suas alianças regionais e
defender seus interesses estratégicos. Reafirmando uma cooperação antiga com o
regime Al-Assad, Putin espera influir mais na reconfiguração do Oriente Médio.
por Alexei Malachenko // http://www.diplomatique.org.br/
Ao menos por enquanto, a irrupção nos céus do
Oriente Médio dos Sukhoi SU-34 e dos mísseis de longo alcance Kalibr, lançados
do Mar Cáspio, alterou o equilíbrio de forças no campo de batalha sírio. A
intensidade dos bombardeios permitiu às tropas governamentais retomar a
ofensiva. Esse apoio tático dado a Bashar al-Assad por Vladimir Putin não é de
forma alguma uma surpresa: a Síria representava o último vestígio da presença
russa no Oriente Médio, o símbolo de uma grandeza passada. Seu apoio constante
ao regime vigente levou o Kremlin, por exemplo, a desempenhar um papel
decisivo, em meados de 2013, na organização do desmantelamento de seu arsenal
químico, a fim de evitar uma intervenção ocidental.1 Isso confundiu aqueles
que, julgando não haver mais para a Rússia nenhum interesse fora do espaço
pós-soviético, pretendiam colocá-la entre as simples “potências regionais”.
Desde os primeiros contratos de armamentos
assinados em 1956, a Síria e a União Soviética mantinham relações muito
estreitas, que se fortaleceram ainda mais no momento da união da República
Árabe com o Egito (1958-1961) e, depois, quando o Partido Baas, que preceituava
um “socialismo árabe”, chegou ao poder em 1963. Pouco antes de morrer, em 2000,
o presidente Hafez al-Assad aconselhou seu filho Bashar a preservar esse
vínculo essencial para que seu clã continuasse à frente do Estado.
De resto, após o fim da aliança com o Egito e a
perda das instalações de Alexandria e Marsa-Matruh, em 1977, o porto sírio de
Tartus ficou sendo o único atracadouro dos navios russos que cruzavam o
Mediterrâneo. Nos últimos meses, sua presença se intensificou ao largo das
costas sírias; viu-se mesmo, em setembro, o Dmitri Donskoi, submarino nuclear
da classe Typhoon,2 o maior lançador de mísseis até então construído,
percorrendo aquelas águas.
A ajuda da Rússia à Síria aumentou desde o começo
da Primavera Árabe. O desmoronamento dos regimes tunisiano, egípcio e líbio,
seguido da desordem no Iraque e do advento da Organização do Estado Islâmico
(OEI), em 2014, convenceram Moscou de que era necessário manter a ajuda a
Al-Assad e reforçar posições na região. A instabilidade geral e a postura pouco
clara da política do Ocidente, em primeiro lugar a dos Estados Unidos,
induziram também alguns governos a diversificar suas parcerias. A França vendeu
consideráveis estoques de armas aos países do Golfo; a Rússia acaba de assinar
contratos econômicos, militares e técnicos com o Egito, o Iraque e a Jordânia.
A Arábia Saudita se apressa em financiar compras de armas russas pelos egípcios
e seu banco de investimentos decidiu, em julho, aplicar 10 bilhões de euros na
Rússia.3
Vários dirigentes políticos e funcionários árabes
nos confidenciaram sua nostalgia dos tempos do presidente egípcio Gamal Abdel
Nasser,4 isto é, os anos 1950 e 1960, quando a disputa ideológica entre a União
Soviética e o Ocidente deixava aos árabes uma margem de manobra. Não foi por
acaso, aliás, que o atual presidente do Egito, Abdel Fatah al-Sissi, evocou em
termos elogiosos seu ilustre predecessor quando fazia campanha eleitoral em
2014. Investindo sem tergiversações no novo homem forte do Cairo – recebido em
Moscou no fim de agosto de 2015 –, Putin renovou os antigos laços, o que lhe
permitiu assinar um contrato de venda de armamentos de 3 bilhões de euros.
A Rússia espera consolidar sua influência
abrigando-se por trás do direito internacional, como salientou Putin no
discurso de 28 de setembro à Assembleia Geral da ONU. Ele se ofereceu para
coordenar, nos termos de uma resolução do órgão, “as medidas de todas as
entidades que enfrentam o Estado Islâmico”.5
Sem tentar recuperar o posto que a União Soviética
ocupava nas relações internacionais, a Rússia se volta para o Oriente Médio.
Mas precisa lidar com um paradoxo. De um lado, Al-Assad não é muito popular na
maioria dos países árabes, e essa aliança coloca a Rússia, de facto, ao lado do
Irã, do Hezbollah libanês e das milícias xiitas iraquianas, num confronto
regional que seus adversários sunitas apresentam cada vez mais como religioso.
Por outro, se Putin deseja mostrar tanto para a opinião russa quanto para seus
parceiros regionais o poder e a capacidade que tem de ajudar os amigos, não
pode dar prova de fraqueza “entregando” Al-Assad.
Em busca de uma solução negociada
Haverá solução para o conflito mediante acordo? Do
ponto de vista de Moscou, isso seria possível se os países ocidentais
aceitassem que Al-Assad permaneça no poder durante um período a ser definido.
Foi o que Putin deu a entender durante a conferência da Organização do Tratado
de Segurança Coletiva (OTSC)6 em Duchambé, Tadjiquistão, em 15 de setembro: “É
também indispensável pensar seriamente em reformas políticas nesse país. E nós
sabemos que o presidente Al-Assad está pronto a partilhar a gestão do Estado
com as forças sadias da oposição”.7 Essa etapa permitiria a montagem de uma
coalizão síria que integraria os oposicionistas dispostos a romper com os
movimentos inspirados no jihad. Em seguida, o presidente cederia lugar, “de bom
grado”, a uma personalidade aceita tanto pelas principais forças políticas do
país quanto pelos agentes externos.
Esse cenário parece, no momento, altamente
improvável, mas já foi discutido – com ranger de dentes – nas chancelarias. Se
se realizasse, a Rússia apareceria como a força de paz que baixou as cartas no momento
certo. Uma intervenção “a pedido do governo sírio” lhe permitiria reassumir não
só o papel de contrapeso geopolítico reivindicado pela União Soviética durante
a Guerra Fria, mas também o de protetora das minorias da região – papel que a
Rússia czarista alegava desempenhar para os cristãos do Oriente.
No entanto, o problema vai muito além da região.
Discute-se secretamente a hipótese de uma “troca” da Síria pelo Donbass, a
parte da Ucrânia dilacerada entre os partidários da integração à Rússia e os fiéis
ao governo de Kiev. Em outras palavras, se os Estados Unidos e seus aliados
levassem mais em conta os interesses russos na Síria, Moscou poderia se mostrar
mais compreensiva com relação à Ucrânia. No fim de setembro, por intermédio da
União Europeia, já se chegou a um acordo sobre o gás a um preço conveniente
tanto para Kiev como para a estatal Gazprom, em dificuldade para obter novos
contratos.8 A aplicação plena dos acordos de Minsk I e II, assinados
respectivamente em setembro de 2014 e fevereiro de 2015, continua incerta;
entretanto, o último encontro de Paris, no início de outubro, permitiu antever
uma trégua sustentável no Donbass, com a retirada efetiva das armas pesadas e
com as duas partes aceitando a realização de eleições locais para chegar a uma
solução institucional.
Contudo, essa lógica do toma-lá-dá-cá não dissimula
bem o impasse em que se meteram os russos. Em seu discurso de setembro perante
a Assembleia Geral da ONU, Putin criticou alguns membros da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan) por terem “provocado de fora uma revolução
armada que acabou se transformando em guerra civil”. No entanto, defendeu os
acordos: “Não garantiremos a integridade da Ucrânia com ameaças e pela força
das armas. Cumpre levar em conta, realmente, os interesses e direitos das
populações do Donbass, respeitar sua escolha, dialogar com elas”.
Na Síria, persiste por enquanto uma incerteza total
quanto ao pós-Al-Assad e ao tipo de coalizão possível. Cada agente do conflito
vê a solução do problema à sua maneira. Moscou continua intensificando a ajuda
militar e técnica. O fluxo de armas aumenta, assim como crescem as tropas. A
intervenção direta dos aviões russos exige uma logística de peso. Como os
grupos hostis estão a apenas algumas dezenas de quilômetros, a base aérea de
Lattaquié precisa ser protegida por helicópteros de ataque Mi-24 e tanques. As
fontes oficiais falam numa mobilização de 2 mil homens, número que os militares
acham “suficiente”.9 Mas tudo isso pode ser mera cortina de fumaça, pois já se
constatou na Crimeia a dificuldade de saber o número exato de soldados russos
envolvidos. Em contrapartida, nada de novo quanto à presença de consultores:
especialistas militares russos enxameiam todo o Oriente Médio desde os anos
1950.
O papel desses soldados poderia se limitar à
proteção das principais bases do Exército sírio e às operações especiais. A
sociedade russa não esqueceu o “pequeno contingente” enviado de início ao
Afeganistão nem o recrutamento que se seguiu (1979-1989) – provocando, segundo
dados oficiais, 14 mil mortos e 50 mil feridos do lado soviético, e cerca de
1,5 milhão de mortos do lado afegão. Os ideólogos da OEI não deixam de insinuar
que essa guerra desastrosa contribuiu para a queda da União Soviética. Um
quarto de século depois, a popularidade de Putin sem dúvida não subirá às
nuvens por conta de uma intervenção em solo sírio.
Segundo as autoridades ocidentais, o objetivo
principal do Kremlin não seria esmagar a OEI, e sim manter Al-Assad no poder.
De fato, os bombardeios têm em mira diversas correntes da oposição síria, entre
as quais a Frente Al-Nosra, nascida da Al-Qaeda. Entrementes, em Moscou,
espera-se que o confronto com a OEI encoraje outros países envolvidos a
redobrar esforços e juntar-se à Rússia em sua “guerra contra o extremismo”. Uma
coalizão mundial, porém, é coisa que com toda certeza nunca se verá; no máximo,
assistiremos a uma coordenação técnica para evitar acidentes de percurso. Pouco
provável, igualmente, será a coalizão paralela à encabeçada pelos Estados Unidos,
de que tanto fala a mídia russa e que reuniria a Rússia, o Irã e a China.
Pequim se recusa a intervir além de suas fronteiras e Teerã persegue seus
próprios desígnios – ainda que tenhamos visto em Moscou o poderoso general
Khassem Suleimani, comandante da força Al-Qods, unidade de guardiães da
revolução que combate no Iraque e na Síria. Inquieto com tais aproximações e
temendo sobretudo que o Hezbollah acumule armas graças a um eixo xiita aliado
dos russos, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, pediu e obteve
garantias de Putin.
Ameaça jihadista no Cáucaso
Em certo sentido, a OEI serviu aos interesses da
Rússia, permitindo-lhe mostrar a seus amigos na região que ela ainda era capaz
de desempenhar um papel decisivo. O Kremlin pôde, assim, se afirmar como
protetor dos países muçulmanos da Ásia central por intermédio da “Otan russa”,
a OTSC. Mais que nunca, após o fim da União Soviética, Moscou se mostra
firmemente decidida a preservar a estabilidade no coração da “Eurásia”10 e a
defender seus aliados do perigo externo. Por muito tempo, esse perigo foram os
talibãs afegãos, aos quais agora se junta a OEI, que, aos poucos, vai se
instalando ao longo das fronteiras meridionais da Ásia central e
atravessando-as.
Desde sua criação, a OEI designou a Rússia como um
de seus adversários. Em 2014, publicou um documento pondo em guarda seu
presidente: “Teu trono já balança e será derrubado quando chegarmos [...]
Vladimir Putin, os aviões que enviaste a Bashar, nós os devolveremos com a
ajuda de Alá!”. A OEI prometeu até “libertar a Chechênia e o Cáucaso”.
Semelhante projeto parece bem ambicioso, mas os jihadistas podem realmente
ampliar sua influência no norte do Cáucaso, sempre às voltas com uma
contestação do poder central e com dificuldades econômicas ou sociais. Não
bastasse isso, são possíveis atentados, como os que sofreu a embaixada russa em
Damasco em 19 de maio, 20 de setembro e 13 de outubro – ataques que podem se
estender ao solo russo.
Em 1979, a decisão de intervir no Afeganistão foi
tomada por unanimidade, em reunião do Politburo, órgão do Comitê Central do
Partido Comunista (PCUS). Leonid Brejnev deixou-se convencer pelos colegas. O
chefe da KGB na época, Yuri Andropov, futuro secretário-geral do PCUS, se opôs
num primeiro momento, mas acabou cedendo.
Hoje, sabemos quem toma as decisões e de que
maneira: embora os senadores, em 30 de setembro, tenham avalizado o envio de
tropas ao estrangeiro por voto unânime, Putin é quem tem a palavra final,
segundo sua maneira de ver as coisas. Às vezes, suas decisões parecem
carregadas de forte conteúdo emocional, sem análise suficiente das possíveis
consequências.
Todos se lembram, na Rússia, da crise dos mísseis
de Cuba, em 1962. O dirigente russo, Nikita Kruschev, decidira
intempestivamente enviar para Cuba mísseis soviéticos – o que ele chamava de
“enfiar um ouriço dentro das calças americanas”. Posteriormente, alegou ter
ouvido os colegas; mas sabemos que tomou a decisão sozinho e que seu círculo
apenas foi informado.11 A reação violenta de Washington, decretando o bloqueio
da ilha e ameaçando invadi-la,12 obrigou Moscou a dar marcha a ré. O caso
abalou seriamente o prestígio de Kruschev junto a seus colegas.
Aos olhos de muitos, Putin parece mais decidido e
mais eficiente que seu homólogo americano, Barack Obama. Teria mostrado isso
mais uma vez com sua gestão do problema sírio, que o pôs um passo à frente de
seus parceiros-rivais. Mas sabe-se o que acontece com vitórias militares
caídas, aparentemente, do céu: acabam por afundar na lama, quando não são
seguidas de uma retirada em campo raso. Decorrido um ano, os bombardeios,
embora numerosos, não fizeram a OEI recuar. A Rússia só terá êxito em sua volta
ao Oriente Médio se conseguir criar as condições para uma solução política
internacional.
Alexei Malachenko
Alexei Malachenko é cientista político e diretor do
Programa Religião, Sociedade e Segurança, do escritório moscovita da Fundação
Carnegie para a Paz Internacional. Obra mais recente publicada: The Fight for
Influence: Russia in Central Asia [A luta por influência: a Rússia na Ásia
central], Carnegie, Moscou, 2014.
Ilustração: Reuters/Bassam Khabieh
1 Ver Jacques
Lévesque, “La Russie est de retour sur la scène internationale” [A Rússia está
de volta ao cenário internacional], Le Monde Diplomatique, nov. 2013.
2
Maxpark.com, 9 set. 2015.
3 “Face aux
sanctions occidentales, la Russie se rapproche de l’Arabie Saudite” [Diante das
sanções ocidentais, a Rússia se aproxima da Arábia Saudita], 7 jul. 2015.
Disponível em: .
4 Ver Roger
Martelli, “Le rire de Nasser, les larmes de Budapest” [O riso de Nasser, o
choro de Budapeste], Le Monde Diplomatique, out. 2006.
5 Transcrição
integral do site da ONU. Disponível em: .
6 A OTSC
agrupa, além da Rússia, a Armênia, a Bielorrússia, o Cazaquistão, o Quirguistão
e o Tadjiquistão.
7 “OTSC:
Vladimir Putin appelle à faire front commun contre la menace terroriste”
[Vladimir Putin prega uma frente comum contra a ameaça terrorista], 16 set.
2015. Disponível em: .
8 Ver
Catherine Locatelli, “Gazprom, le Kremlin et le marché” [Gazprom, o Kremlin e o
mercado], Le Monde Diplomatique, maio 2015.
9
Informing.ru, 1º out. 2015.
10 Ver
Jean-Marie Chauvier, “Eurasie, le ‘choc des civilisations’ version russe”
[Eurásia, o “choque de civilizações” ao estilo russo], Le Monde Diplomatique,
maio 2014.
11 William Taubman, Khrushchev: The
Man and His Era [Kruschev: o homem e sua época], Norton, Nova York, 2003.
12 Ver
Danielle Ganser, “Retour sur la crise des missiles à Cuba” [De volta à crise
dos mísseis de Cuba], Le Monde Diplomatique, nov. 2002.
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