A sociedade brasileira assiste os mais abusivos
ataques às suas mais sagradas instituições, num grau de ousadia nunca
imaginado.
Geniberto Paiva Campos // www.cartamaior.com.br
“Estranhem o
que não for estranho. Sintam-se perplexos ante o cotidiano. Tratem de achar um
remédio para o abuso, mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.
(Bertolt Brecht – “A exceção e a regra”)
1. De
forma lenta, segura e gradual o Brasil vai se afastando dos cânones da Lei, da
Democracia e do Estado de Direito. E o mais grave, com a adesão cúmplice de
juízes das mais diversas instâncias. Resolvidos a promover “mudanças” no país a
qualquer custo, com o apoio automático e algo apressado da chamada grande
imprensa e de setores articulados do Congresso Nacional.
A sociedade brasileira assiste, perplexa, às vezes
lamentavelmente passiva, aos mais abusivos ataques às suas mais sagradas
instituições, num grau de ousadia nunca imaginado, colocando em grave risco
conquistas recentes no campo da Democracia, que se imaginava se não perenes, ao menos duradouras.
Inocula-se de forma insidiosa na Sociedade o germe
da desconfiança com a classe política e com os dirigentes do poder executivo.
Ao mesmo tempo em que se criam heróis togados, com a nobre missão de “salvar” o
país, passando por cima da Lei e dos Direitos dos Cidadãos. Tal como no século
passado, decretou-se a morte - por
asfixia - do processo democrático, com o nobre pretexto de salvar a própria
Democracia.
A sequência cronológica dos fatos não permite
dúvidas quanto a esse processo, ingênuo em sua aparência, destinado a fazer o
país caminhar a passos firmes em direção à barbárie. Criando, dessa forma, as
condições para a aceitação plena do capitalismo rentista, fazendo do Brasil tão
somente uma colônia - genuflexa - deste “admirável mundo novo “neoliberal que
se constrói, inexoravelmente. A ferro e fogo. No qual o “abuso é sempre a
regra”.
A tensão dialética entre o Novo e o Arcaico, evolui
agora no leito suave de um estranho entendimento: é impossível atingir o
Nirvana neoliberal dentro da Lei e do Estado de Direito. Como dizia aquele
velho e calejado senador nordestino na vã tentativa de justificar os abusos:
-“Ora, a Lei. Se preciso, contorna-se a Lei. Mas, se necessário, quebra-se a
Lei. “ Parece que esses inflexíveis argumentos permeiam e anestesiam a
consciência dos novos donos do poder. E celebra-se entre as elites um pacto
pelo atraso. Pela resistência à Modernidade. Afastando a Democracia, com
Justiça e a Igualdade, dos nossos horizontes, mesmo os mais distantes.
2.Os torniquetes e o garrote vil passaram a ser
utilizados mais intensamente na vida política e eleitoral brasileira, a partir
de 2002, numa sequência irreversível. Primeiramente a Lei que proibiu e passou
a punir a compra de votos. No varejo. No atacado continuou permitida, através
das doações privadas às campanhas eleitorais. Depois a Lei da Ficha Limpa.
Normas legais obtidas junto ao Congresso Nacional por mobilização popular,
cheias de boas intenções em sua origem, mas que lamentavelmente serviram até
agora, apenas para estigmatizar a atividade política e alargar caminhos para os
abusos legais cometidos em sequência cronológica. Um exemplo, a AP 470,
codinome ”Mensalão”, quando juízes da Suprema Corte se permitiram usar dos mais
estapafúrdios e incoerentes critérios legais na tomada de duras decisões
condenatórias.
(Exemplo da “coerência” de um juiz do STF: 1. ao
condenar um líder petista na AP 470: “não existem provas contra o réu, mas a
literatura jurídica me permite condenar”;
2. ao absolver um ex-presidente da república: “não vejo provas no
processo, portanto não tenho como condenar sem ao menos uma única prova”).
Dando seguimento à campanha de criminalização das
atividades partidárias e empresariais entra em cena a “Operação Lava Jato”, que
no esforço de provar a todo custo suas estranhas teses jurídicas, e prender e
punir mesmo sem provas consistentes, introduz na mente dos brasileiros que leem
os periódicos e acompanham as notícias por rádio e TV, a “delação premiada”. O
novo achado do judiciário brasileiro, o qual veio substituir o bizarro e
surpreendente “domínio do fato”, amplamente utilizado na AP 470. Parece que o judiciário, a exemplo da mídia,
passou a “testar hipóteses”. E aferir a aceitação dos seus fiéis
leitores/seguidores à sua incrível capacidade criadora. Afinal, tudo é
permitido, pois é preciso pegar os bandidos e exorcizar os demônios da política.
Sutilmente, no século 21, reedita-se o Estado Novo, o golpe dentro do golpe em
1937, na ditadura Vargas, implantando-se uma Nova Ordem Jurídica visando
impedir a evolução do país em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.
Pouco importando se essa nova ordem poderá levar o país a um brutal regime
ditatorial. O conhecido “samba de uma nota só” da política brasileira. Sempre a
caminho do habitat dos primatas.
2. Agora
foi a hora e a vez de um senador da república. (Claro, apenas por mera coincidência,
do Partido dos Trabalhadores). Preso em flagrante delito. Qual o grave delito
que o senador Delcídio do Amaral teria cometido, sabendo-se que a Constituição
da República - ainda vigente - só
permitiria a sua prisão em flagrante caso houvesse cometido crimes
inafiançáveis? Quais seriam esses crimes?
Para responder a essas questões, ouçamos os
operadores do Direito.(*)
De acordo com autoridades do Direito Penal,
“aprende-se nos primeiros anos da Faculdade de Direito, por mais medíocre que
seja o professor de Processo Penal,
serem eles o racismo (não a injúria racial), a tortura, o tráfico ilícito de
drogas, o terrorismo, os definidos como
crimes hediondos, o genocídio e os praticados por grupos armados, civis
ou militares, , contra a ordem
constitucional e o Estado Democrático, nos termos do artigo 5º, XL.II e XL.III da Constituição
Federal” Difícil, senão impossível, enquadrar o senador nestes tipos de delitos
para respaldar sua prisão em flagrante. Devendo-se, portanto, aguardar a denúncia.
Ainda de acordo com os autores citados, a
Constituição estabelece: a) “senadores devem ser investigados e punidos caso
cometam crimes; b) não é permitida a prisão preventiva de senadores.” Exceto
nas condições acima citadas (crimes inafiançáveis). Concluem os autores:
“estariam criadas condições para a suspensão de dispositivos constitucionais,
instaurando-se a exceção? Abrimos espaço para em nome da finalidade justificar
o que não se autoriza”? Eis a questão.
Adicionalmente, mas não menos importante, o senador
teria sido vítima de uma grotesca armação, ao participar de uma conversa
privada, cujos diálogos foram gravados sem autorização prévia dos
participantes. (Coincidentemente com quatro pessoas presentes, número que
caracteriza a formação de quadrilha...)
Qual o valor legal probatório de uma gravação
obtida em tais condições? Teria havido autorização legal, prévia? Este é um
ponto que necessita esclarecimento.
Supondo ter sido a gravação obtida ilegalmente,
qual o valor dessa prova?
Eis o que disse um ministro do STF no julgamento da
AP 307-DF, citado pelos mesmos autores:
“ A gravação de conversa com terceiros, feita através de fita magnética,
sem o conhecimento de um dos sujeitos da relação dialógica, não pode ser
utilizada pelo Estado em juízo(...) sendo, em consequência, nula a eficácia
jurídica da prova obtida por esse meio...”
4.
Situadas além da argumentação jurídica relacionada à legalidade de atos
e decisões de juízes e tribunais, colocam-se questões fundamentais, conectadas à
plena vigência do Estado de Direito no Brasil. Afinal, com tantas e tão
repetidas transgressões à Ordem Jurídica não estaria o pais caminhando para um
estado de exceção? Podem ser citadas: - a perigosa “naturalidade” com que
medidas escancaradamente ilegais são assimiladas; - a politização e até a
partidarização explícita de setores do judiciário (vide a surpreendente
justificativa do voto de um ministro do STF ao declarar - se favorável à
“prisão em flagrante” de um senador da República, medida claramente contrária
ao que determina a norma constitucional, e mais grave, contendo assertivas descabidas, que caberiam
melhor num palanque, constituindo uma espécie de ameaça à legalidade e à ordem
vigentes); - o uso abusivo e repetido de prisões como forma de coação de réus,
sem qualquer chance de terem respeitado o sagrado direito à presunção de
inocência e o direito de defesa, com mínimas possibilidades de um julgamento
justo; - e, finalmente, o uso da “delação premiada” como moeda de troca para
possível atenuação de suas penas, desde
que direcionadas para determinadas pessoas e partidos políticos.
Todos estes fatos, incontestáveis, colocam o Estado
de Direito reconquistado a duras penas pela sociedade brasileira há pouco mais
de 30 anos, à beira do precipício, de profundidade impossível de calcular e
cujo retorno à normalidade democrática torna-se impossível prever. Até quando
iremos conviver com o abuso?
(*) “Para (não) entender a prisão de um senador
pelo STF ”/ Moreira, R.A e Rosa, A.M . inwww.empóriododireito.com.br / 2015
Créditos da foto: reprodução
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