por Wagner Iglecias, especial para o Viomundo // http://www.viomundo.com.br/
Cristina Kirchner deixa a presidência da Argentina
com cerca de 50% de aprovação a seu governo. No entanto, isso não foi
suficiente para que conseguisse fazer com que seu correligionário Daniel
Scioli, ex-governador da província de Buenos Aires, alcançasse a Casa Rosada.
O kirchnerismo, iniciado com a presidência de
Néstor Kirchner, em 2003, e encerrado com a derrota apertada para o direitista
Maurício Macri, neste domingo, acumulou muitos êxitos: conseguiu reestruturar a
dívida externa do país, após a quebra completa da economia argentina entre 2000
e 2002; criou políticas sociais destinadas à diminuição da pobreza; recuperou o
poder de compra dos setores médios e ampliou o mercado doméstico; reestatizou
empresas públicas privatizadas a preços módicos como a petroleira YPF, a
Aerolíneas Argentinas, o sistema de transporte ferroviário e o setor de
previdência social; promoveu uma política externa mais ativa e altiva que seus
antecessores, apostando na integração latino-americana, na diminuição da
dependência em relação aos EUA, no impulso à Unasul e nas relações Sul-Sul;
reviu a lei que anistiava os crimes contra os Direitos Humanos praticados
durante a última ditadura militar (1976-1982); propôs, para financiar políticas
sociais aos mais pobres, uma maior tributação dos mais ricos e dos setores que
ganharam muito dinheiro com a exportação de commodities; e aprovou legislação
visando desconcentrar a propriedade dos meios de comunicação até então nas mãos
de dois ou três grupos econômicos.
O kirchnerismo disputou a sua sucessão com Scioli,
um candidato oficialmente kirchnerista, mas na prática um tanto distante do
projeto político representado por Néstor e depois Cristina.
Pacato, pouco carismático, defendendo sem grande
entusiasmo bandeiras importantes, mas consideradas já insuficientes por parte
do eleitorado argentino, em especial os mais jovens, Scioli viu um repaginado
Maurício Macri quase superá-lo no 1º turno e finalmente derrotá-lo na rodada
final. E isso mesmo com uma união de última hora de diversas correntes
peronistas em torno de seu nome.
Com o fracasso de Scioli e também de Cristina podem
ganhar força nos próximos anos as correntes não-kirchneristas do peronismo,
como a representada por Sergio Massa, terceiro colocado na eleição presidencial
com pouco mais de 20% dos votos no 1º turno.
Ao que tudo indica o eleitorado de Massa dividiu-se
no pleito final entre Macri e Scioli, e agora cabe a ele, Massa, avaliar se
vale a pena compor com o novo presidente no Congresso, onde Macri terá maioria
apertada na Câmara e minoria no Senado, ou se o melhor é esperar por eventual
fracasso do novo governo e reapresentar-se ao eleitorado dentro de quatro anos
como uma terceira via entre o kirchnerismo e o neoliberalismo puro apresentado
em nova embalagem nesta eleição na figura de Macri.
E por falar em Macri, o que poderá ser o governo
dele? É importante notar que com ele a direita argentina chega ao poder após
muito tempo pelas urnas, e não por meio de um golpe militar. Tudo bem que
Carlos Ménem, presidente do país na década de 1990 fez um governo neoliberal,
mas ao menos era do Partido Justicialista (peronista) e em sua campanha
eleitoral no longínquo 1989 apresentou uma plataforma política progressista.
Com Macri não é assim. Seu partido, o Cambiemos,
que faz parte da coligação Proposta Republicana (PRO), buscou apresentar-se
nesta eleição como uma novidade, mas defendeu uma plataforma política de
direita e teve como aliado a União Cívica Radical, mais antigo partido político
argentino em atividade, fundado em 1891.
Macri, cuja família enriqueceu durante o último
ciclo militar (1976-1982), esteve inclusive próximo a Ménem nos anos 1990,
presidiu o Boca Juniors e foi prefeito de Buenos Aires. Não é um novato,
portanto. E por mais que tenha um discurso modernizado, é um político
tradicional da direita argentina, e deverá implementar um clássico pacote de
medidas cujas consequências mais duras deverão cair sobre os setores populares
e a classe média.
A Argentina deverá encarar no curto e médio prazos
um duro ajuste das contas públicas, a desvalorização cambial, cortes nos gastos
e investimentos estatais, nova rodada de abertura comercial, alívio tributário
para os setores exportadores e um reordenamento da política externa do país.
Não se pode dizer que esteja totalmente descartada uma nova rodada de
privatizações de empresas estatais. Provavelmente muito disso vai depender da
capacidade de resistência dos segmentos populares e dos setores progressistas
do país.
Em termos de política externa é importante lembrar
que o Brasil, principal parceiro comercial de Buenos Aires, é um vizinho do
qual a Argentina não pode abrir mão.
Macri já anunciou inclusive que sua primeira visita
oficial já como presidente será a Brasília. Assim como a Argentina é hoje muito
dependente das exportações para a China e dos investimentos chineses para se
dar ao luxo de esfriar as relações com Beijing. Mas muito provavelmente o país
não cerrará mais fileiras, como ocorreu durante os anos Kirchner, com vizinhos
governados por forças de esquerda como Bolívia, Equador, Cuba e Venezuela nas
iniciativas de integração regional latino-americana e no fortalecimento da
Unasul.
Pelo contrário, não será surpresa se Buenos Aires
aproximar-se, a partir do próximo ano, dos países da região mais restritos à órbita
de Washington, como Chile, Peru, Colômbia e México, e caminhar em direção à
Aliança do Pacífico.
Em relação especificamente ao Mercosul, o novo
governo argentino deverá defender que a Argentina possa estabelecer acordos
bilaterais com outros países ou outros blocos econômicos sem que pra isso
precise estar acompanhado dos demais países-membros (Brasil, Paraguai, Uruguai
e Venezuela). E deverá inclusive trabalhar para que a Venezuela seja suspensa
ou mesmo expulsa do bloco, por conta da Cláusula Democrática do Mercosul e a
questão dos presos políticos mantidos pelo governo de Caracas.
No plano da política doméstica, ainda que não
conte, por ora, com maioria no Congresso, Macri terá consigo os governadores
das quatro maiores províncias do país. Não é algo de menor importância um
presidente argentino ter sob controle de aliados o governo da província de
Buenos Aires e também a prefeitura da capital do país, como vai ocorrer a
Macri.
A movimentação das diversas correntes peronistas de
aproximação ou de afastamento em relação a seu governo nas próximas semanas e
meses dirá se ele terá maior ou menor dificuldade em governar.
A Cristina Kirchner, que parece nunca ter abraçado
com o entusiasmo necessário a candidatura do derrotado Scioli, caberá observar
o que se passará na Argentina nos próximos quatro anos. No caso de eventual
fracasso de Macri, poderá ressurgir candidata como ressurgiu sua colega chilena
Michelle Bachelet, que teve seu candidato Eduardo Frei derrotado em 2010 por um
direitista como Macri, Sebastian Piñera e quatro anos depois, diante do
fracasso das medidas neoliberais deste, foi reconduzida ao poder pela vitória
nas urnas.
Sobre a vitória de Macri, um último ponto a
ressaltar: trata-se da vitória de um marketing eleitoral inovador, cada vez
mais presente em toda a América Latina e inventado e crescido nas brechas dos
erros dos governos progressistas.
Embora não seja tão jovem, Maurício Macri é da
lavra de líderes de direita jovens como o Enrique Peña Nieto (México), Aécio
Neves (Brasil), Capriles Radonski (Venezuela), Mauricio Rodas (Equador), Carlos
Calleja (El Salvador) etc. Vende para a sociedade uma conjugação de sinais
favoráveis à mudança (não à toa seu partido se chama Cambiemos), valorizando
inclusive algumas conquistas sociais ocorridas sob os governos de esquerda, com
valores típicos da direita liberal, como o individualismo, a meritocracia, o
dinamismo, a jovialidade e o sucesso na vida pessoal e no mundo empresarial.
Levando-se em conta a provável derrota eleitoral de
Nicolás Maduro na eleição parlamentar da Venezuela, dentro de alguns dias, e as
imensas dificuldades que está enfrentando o governo Dilma, no Brasil, a
Argentina de Macri poderá estar inaugurando um novo período histórico na
região, com o pêndulo político que levou o país e alguns de seus vizinhos para
a esquerda nos últimos quinze anos voltando-se agora para a direita e
caminhando novamente em direção a Washington. A conferir.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação em
Integração da América Latina da USP.
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