Maria Costa* // http://blogconvergencia.org/
Há algumas semanas, a mídia brasileira foi tomada
pela polêmica em torno de uma substância designada fosfoetanolamina, que
estaria sendo distribuída por funcionários da USP (Universidade de São Paulo)
de São Carlos como cura para o câncer. Mais recentemente o tema foi editorial
da revista Nature, uma renomada revista científica.[1] O objetivo deste texto
não é entrar na polêmica sobre a eficácia desta substância no combate ao
câncer, mas partir do exemplo concreto da investigação em torno da
fosfoetanolamina para discutir quem controla a investigação científica,
especificamente na área da medicina e farmacêutica e a serviço de quê está esse
controle.
A fosfoetanolamina foi sintetizada e estudada
durante cerca de 20 anos por Gilberto Orivaldo Chierice, um professor de
química, agora aposentado. Durante as suas investigações chegou à conclusão de
que essa substância tinha potencial para curar o câncer. Foram feitos vários
estudos em ratos que demonstraram a eficácia da substância contra vários tipos
de câncer, entre eles alguns tipos de câncer de mama, melanoma e pulmão, e
também, nesses estudos, a substância não causou dano às células saudáveis. O
professor explicou que após esses estudos não teria conseguido autorização para
avançar na investigação da eficácia da substância, acabou por começar a
distribuir a fosfoetanolamina a pacientes com câncer que o procuravam em número
cada vez maior. Este ano, a direção da USP suspendeu a distribuição das
cápsulas à população, justificando que: “Essa substância não é remédio. Ela foi
estudada na USP como um produto químico e não existe demonstração cabal de que
tenha ação efetiva contra a doença: a USP não desenvolveu estudos sobre a ação
do produto nos seres vivos, muito menos estudos clínicos controlados em
humanos.”[2]
Posteriormente, vários pacientes conseguiram
decisões judiciais que obrigavam a USP a manter o fornecimento da substância e,
após toda a polêmica na mídia, acabou por ser aprovado o início dos ensaios
clínicos na Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde do Rio Grande do
Sul (uma entidade pública).
Como funciona a fosfoetanolamina?
O mecanismo exato de funcionamento da
fosfoetanolamina ainda não foi completamente compreendido. Segundo os
investigadores, esta substância, ao ser absorvida e processada pelas células
cancerígenas, leva a que estas produzam marcadores que são expressos na sua
superfície e ativam o sistema imunológico. Este, ao ser ativado, ataca e
destrói as células cancerígenas.
Primeiramente, uma explicação da forma de atuação
do sistema imunológico. Todas as nossas células têm na sua superfície proteínas
que funcionam como impressões digitais, pois são diferentes de pessoa para
pessoa. O nosso sistema imunológico reconhece essas impressões digitais e não
ataca as células que as possuem e destrói as que não as possuem. Distúrbios no
funcionamento deste sistema estão na origem, por exemplo, de doenças autoimunes
e também do surgimento do câncer.
As células tumorais, pelas mutações que vão
acumulando, acabam por apresentar “impressões digitais” diferentes.
Inicialmente, o sistema imunológico destrói essas células. Neste processo,
inúmeras células cancerígenas são destruídas regularmente no nosso organismo.
No entanto, algumas células cancerígenas desenvolvem mutações que lhes permitem
escapar a este controle. Alguns dos mecanismos de escape já são conhecidos e
envolvem, por exemplo, o bloqueio da produção de marcadores cancerígenos na
superfície celular, de modo a mimetizar as células normais; ou mesmo a produção
de substâncias que inibem ou suprimem a atividade do sistema imunológico.
Desenvolver drogas que reativem o sistema
imunológico para combater o câncer não é algo novo, é um ramo da investigação
científica com algumas décadas, baseada na hipótese formulada pelo cirurgião
William Coley no final do século 19, após ter observado que uma injeção de
bactérias mortas em um tumor maligno levou à redução do tumor.
A partir da compreensão de como as células tumorais
escapam ao controle do sistema imunológico, a maioria dos estudos nesta área
centra-se em anular os mecanismos de escape dos tumores ou na criação de
mecanismo que reativem o sistema imunológico contra as células tumorais. Este
último seria a forma de ação da fosfoetanolamina, a ativação de uma via celular
que ativaria o sistema imunológico contra as próprias células cancerígenas.
O governo deveria distribuir já a fosfoetanolamina
gratuitamente?
Os relatos de cura de pessoas que tomaram a
fosfoetanolamina são indícios favoráveis de que a substância pode ser eficaz no
tratamento do câncer, mas para que isso seja comprovado são necessários ensaios
clínicos que primeiro comprovem que de fato funciona, em que dosagem deve ser
administrada e quais são os efeitos secundários ou contraindicações. Sem isso,
não se pode afirmar que a fosfoetanolamina é eficaz e muito menos se deve distribuí-la
ao público como medicamento. Os pacientes com câncer em situações em que não
haja nenhum medicamento comprovadamente eficaz e que ainda assim quiserem ter
acesso à fosfoetanolamina devem ter essa possibilidade. No entanto, devem ter
consciência de que esta substância ainda não foi testada, e inclusive que
apenas foram conhecidos na mídia os casos em que fez efeito. Há que estudar
também os casos em que falhou.
O fato de só após muita polêmica e pressão social
ter sido decidido que a substância seja estudada por laboratórios e hospitais
estatais mostra o quanto os sucessivos governos colocam a ciência e a saúde da
classe trabalhadora em último plano! É um absurdo que uma substância que é
considerada promissora pela comunidade científica em nível internacional tenha
estado anos sem conseguir passar aos estudos clínicos. Ainda que não se venha a
comprovar a sua eficácia, terá sido com certeza um avanço na compreensão
científica do câncer. Como orçamento inicial, R$10 milhões pode ser suficiente,
mas deve ser garantido que, caso os resultados sejam positivos, esta pesquisa,
e outras, não fiquem paradas por causa de financiamento. Para isso, é
fundamental que o orçamento para o SUS e Ministério da Ciência aumente, e
terminem de vez os cortes que desviam dinheiro para pagar a dívida aos
banqueiros. Também consideramos que o seguimento desta investigação deve ser
público, controlado pelos trabalhadores. Caso se comprove que a substância é
eficaz, ela deve ser sim disponibilizada gratuitamente para toda a população
que necessite.
O que são os ensaios clínicos?
São um método da investigação científica que
estudam o desenvolvimento de fármacos desde o início da sua síntese até a sua
administração em humanos, de modo a comprovar que são eficazes e não provocam efeitos
colaterais letais ou de grande morbidade e em que dosagem devem ser
administrados. Os ensaios clínicos possuem várias fases:
A etapa pré-clínica, em que as substâncias são
testadas em células animais cultivadas em laboratório. Se os resultados forem
positivos, passa-se para os testes em animais. Nesta fase avalia-se a eficácia,
os efeitos secundários e a dosagem ideal e só então se passa para os testes em
humanos.
A etapa clínica começa quando o fármaco é testado
em seres humanos. Essa etapa é dividida em várias fases. Na primeira fase, o
fármaco é testado em um número pequeno de voluntários saudáveis (entre 20 e
100) para avaliar sua toxicidade. Se os efeitos secundários forem irrelevantes
em comparação ao potencial benefício do seu uso, passa-se para a fase 2, em que
a substância é testada em pacientes (entre 100 e 200) que têm a doença, para
determinar se de fato é eficaz no tratamento. A partir desta fase, todos os
fármacos devem ser testados em comparação com outros que já existem e são
rotineiramente usados, para que se comprove que o novo fármaco é mais eficaz.
Ou seja, dentro do grupo em estudo, metade toma a nova medicação e metade toma
o melhor medicamento já disponível para a doença em estudo. Se neste momento o
fármaco mostra vantagens em relação aos já existentes, passa-se para a fase 3,
em que o número de participantes é muito maior (normalmente alguns milhares) e
se confirma se o novo fármaco é de fato mais eficaz e se procuram efeitos
secundários não registrados nas fases anteriores. Uma boa parte das substâncias
que iniciam a primeira fase da etapa clínica não a conclui muitas vezes porque
não apresentam resultados superiores aos fármacos já existentes.
Em nossa opinião, o método dos ensaios clínicos é
correto e fundamental para que a população tenha acesso aos melhores
medicamentos com segurança. O problema da medicina e farmacologia hoje não está
aí, mas sim em quem controla os ensaios clínicos, como veremos próximo ponto.
Estatização da indústria farmacêutica e ensaios
clínicos sob controle dos trabalhadores
Acerca da polêmica sobre a fosfoetanolamina, o
médico Evanius Garcia Wiermann, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia
Clínica, comentou, revoltado, que muitas pessoas acreditam que exista um complô
da indústria farmacêutica para esconder a descoberta da cura do câncer: “Isso
não existe, é uma loucura, uma teoria da conspiração para pegar pessoas
desavisadas e desesperadas e justificar que tomem uma medicação que foi testada
em ratos, e não em pessoas.”[3]
É possível que não exista tal complô, no entanto, a
desconfiança da população, ainda que empírica, tem razão de ser. A indústria
farmacêutica hoje é majoritariamente privada e um dos negócios mais lucrativos
do mundo. As três maiores farmacêuticas do mundo, Pfizer, Johnson & Johnson
e Roche, tiveram um lucro líquido em 2013 entre 12 e 22 bilhões de dólares e
margens de lucro equiparáveis às dos grandes bancos.[4]
Os ensaios clínicos são majoritariamente
financiados por multinacionais deste ramo. Obviamente, os estudos que recebem
mais financiamento são os que podem ser mais lucrativos. A própria OMS
(Organização Mundial da Saúde), organização imperialista, admitiu isso quando
criticou a indústria farmacêutica por não desenvolver uma vacina para o ebola
ao longo dos últimos 40 anos[5] apenas porque os países da África Central não
terão dinheiro para comprar a vacina.
As acusações à indústria farmacêutica vêm também
dos investigadores. Thomas Steitz (EUA), Nobel de Química em 2009, denunciou
que as empresas farmacêuticas não investem em pesquisa sobre antibióticos, que
curam as pessoas, e preferem se concentrar no negócio de medicamentos que é
necessário tomar por “toda a vida”[6]. O Prêmio Nobel de Medicina (1993)
Richard J. Roberts denunciou publicamente as mesmas empresas: “é habitual que
as farmacêuticas estejam interessadas em linhas de investigação não para curar,
mas sim para tornar crônicas as doenças com medicamentos cronificadores muito
mais rentáveis que os que curam de uma vez por todas.”[7]
A pesquisa farmacêutica e a indústria não podem
estar subordinadas ao lucro, devem estar a serviço do bem-estar e da vida da
classe trabalhadora. Por isso, todas as empresas farmacêuticas devem ser
estatizadas e colocadas sob controle da classe trabalhadora de conjunto. As
patentes devem ser abolidas e a investigação científica deve ser feita por
universidades e hospitais públicos e controlada pela classe trabalhadora. Para
isso, toda a informação sobre pesquisas deve ser pública e de fácil acesso ao
conjunto da população, até porque a partilha de informação científica ajuda que
se aprofunde mais rapidamente o conhecimento sobre as doenças e os seus
tratamentos.
Notas:
*Este texto foi publicado originalmente na página
da LIT-QI (www.litci.org).
[1]
http://www.nature.com/news/drugs-on-demand-1.18873
[2]
http://www5.usp.br/99485/usp-divulga-comunicado-sobre-a-substancia-fosfoetanolamina/
[3]
http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/10/relatos-de-cura-nao-provam-eficacia-da-fosfoetanolamina-alertam-medicos.html
[4] http://www.bbc.com/news/business-28212223
[5]
http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/oms-critica-industria-farmaceutica-guiada-por-lucros-que-nao-elaborou-vacina-para-ebola-14455652#ixzz3socRzhx2
[6]
http://www.lavanguardia.com/salud/20110826/54205577068/thomas-steitz-premio-nobel-muchas-farmaceuticas-cierran-sus-investigaciones-sobre-antibiotictveos.html
[7]
http://hemeroteca.lavanguardia.com/preview/2007/07/27/pagina-64/60624346/pdf.html
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