Servus Mariae (Raimundo Caramuru Barros) // www.cartamaior.com.br
RELAÇÕES ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL:
COOPERADORES PARA O DESENVOLVIMENTO E NÃO LACAIOS DO FISIOLOGISMO PARTIDÁRIO
Durante a novena que prepara a festa de Nossa
Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, parece-nos consentâneo e relevante
parar para refletir sobre as verdadeiras e legítimas relações entre Igreja e
Estado na tradição deste país.
No período do Brasil Colônia e do Brasil Império
(1500 a 1889) o catolicismo era a religião oficial do Estado Brasileiro em
decorrência da herança recebida de Portugal que firmara com a Sé da Igreja
Católica em Roma a Lei do Padroado. Por esta Lei eram reguladas as relações
entre Lisboa e o Pontificado Romano.
Na década de 1870, o Conselho do Império brasileiro
mandou encarcerar e endossou a condenação dos Bispos Dom Frei Vital Maria
Gonçalves de Oliveira (Olinda – Recife) e Dom Antonio de Macedo Costa (Belém do
Pará) por uma questão de consciência sustentada por esses prelados sobre os
direitos da Igreja em uma questão de natureza nitidamente religiosa. Ficou
então patente que a Igreja no Brasil Imperial tornara-se tão somente uma
Repartição Pública do Estado Brasileiro. Por isso, a primeira Constituição
Republicana de fevereiro de 1891, com pleno assentimento da Igreja Católica,
estabeleceu a separação entre Igreja e Estado. Durante toda a primeira
República (1891 a 1930) e do primeiro período da era Vargas (1930 a 1945), as
relações entre Igreja e Estado foram pautadas pelo respeito mútuo e pela
cooperação em assuntos de interesse comum.
Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, na qualidade
de arcebispo de Olinda - Recife de 1916 a 1921, de arcebispo do Rio de Janeiro
de 1922 a 1930 e de Cardeal de 1930 a 1942 liderou as relações entre Igreja e
Estado durante todo esse período. Sua iniciativa em persuadir o Presidente
Washington Luís em 1930 a renunciar espontaneamente à Presidência da Republica,
salvou o Brasil de uma iminente guerra civil que, além de sanguinolenta,
arriscava provocar a fragmentação da unidade nacional. Desta maneira prestou um
serviço inestimável a toda a nação.
Dom Leme sempre resistiu com determinação a todas
as iniciativas visando à criação de um Partido Católico. Criou, porém, a Liga
Eleitoral Católica com a missão exclusiva de traçar critérios para orientar os
fiéis na escolha de candidatos. Dizia-se que a Igreja situava-se “fora e acima
dos partidos”. Em coerência com sua missão pastoral, este Cardeal conseguiu de
Getúlio o compromisso de sempre escutar a Igreja em decisões relativas a
assuntos que envolvessem a fé e a moral.
Neste período a Igreja dedicou-se à sólida formação
de seus futuros presbíteros (sacerdotes) em instituições denominadas de
seminários, muitos dos quais se tornaram verdadeiros centros de cultura
humanista.
Nestas instituições os candidatos ao sacerdócio
eram amplamente informados sobre a “questão religiosa” que acirrara as relações
entre a Igreja e o Estado brasileiro na década de 1870 e a partir desse fato
eram vacinados contra qualquer envolvimento com partidos políticos. Ao longo do
tempo houve exceções. Mas, considerando o conjunto do clero é possível afirmar
que esses casos foram percentualmente raros.
A ocorrência desse tipo de engajamento político -
partidário limitou-se em grande parte a sacerdotes que se candidataram a cargos
eletivos e/ou militaram em partidos políticos com as melhores das intenções,
tais como evitar o triunfo do partido comunista em território brasileiro.
Alguns deles apoiaram ostensivamente partidos políticos que se apresentavam
como instrumentos eficazes para combater o comunismo ateu. Os bispos os
afastaram de suas funções pastorais e buscaram paternalmente dissuadi-los desse
tipo de engajamento mais próprio para ser exercido por fiéis leigos. Ao mesmo
tempo os bispos criaram condições para que esses presbíteros retornassem às
suas funções pastorais. Em todo caso esses sacerdotes foram sistematicamente
barrados de acesso ao episcopado até que ao longo de muitos anos comprovassem
estarem curados deste desvio de função.
Do ponto de vista do episcopado desenvolveu-se e
consolidou-se ao longo de todo esse período até a intervenção militar de 1964
uma relação de cooperação para o desenvolvimento entre a Igreja hierárquica e o
Estado Brasileiro. Esta relação se traduziu primeiramente nos programas de
desenvolvimento regional, tais como Bacia São Francisco, Semi – árido Nordestino,
Vales Úmidos, Bacia do Rio Doce, Vale do Paraíba, Amazônia, etc. Este tipo de
relação foi assumido igualmente no tocante a programas setoriais específicos,
tais como: na criação e operacionalização do Movimento de Educação de Base –
MEB, e no esforço concentrado de sindicalização rural na primeira metade da
década de 1960 com a criação pela Igreja das diversas Frentes Agrárias
Regionais engajadas nesta sindicalização.
A partir da década de 1960 o panorama modificou-se
radicalmente em decorrência de dois acontecimentos que conduziram as relações
entre a Igreja e o Estado brasileiro a situar-se em um novo contexto: o
Concílio Vaticano II e a intervenção militar de 1964. O Concílio Vaticano II de
1962 a 1965 desencadeou um processo de profunda renovação da Igreja Católica,
coroando um movimento iniciado em meados do século XIX que visava a uma
retomada e aprofundamento das fontes bíblicas e da tradição dos Padres da
Igreja que nos primeiros séculos da era cristã receberam a revelação divina
mais diretamente do Colégio dos Apóstolos.
Entre outras dimensões este Concílio destacou o
Desígnio Divino de Salvação; o mistério da Igreja como um mistério de comunhão
com a Trindade e entre seus membros; a natureza peregrina da Igreja como sinal
sensível e eficaz do Reino de Deus presente na caminhada da humanidade através
da história; as relações de serviço recíproco entre a Igreja e a Sociedade
humana, em que a Igreja em coerência com sua missão divina procura promover a
dignidade da pessoa humana, da comunidade humana e da atividade humana; e ao
mesmo tempo esta mesma Igreja reconhece que os progressos da comunidade humana
no plano da família, da cultura, da atividade econômica e social, bem como da
política nacional e internacional contribuem de maneira relevante para que ela
possa desenvolver em maior amplitude a sua missão de acordo com o Desígnio
divino. As encíclicas “Mater et Magistra” e “Pacenm in Terris” do Papa João
XXIII; “Populorom Progressio” de Paulo VI, bem como a Exortação Apostólica
“Evangelii Nuntiandi” desse último Pontífice, detalham, ilustram e fazem
avançar as diretrizes fundamentais emanadas do Vaticano II.
A Igreja no Brasil notabilizou-se como a Igreja que
melhor absorveu o esforço renovador deste Concílio, bem como aquela que mais
rápida e profundamente implantou suas diretrizes em todo o território nacional.
Dentro da amplitude desta renovação, no tocante às
relações entre Igreja e Sociedade, duas dimensões merecem destaque: a promoção
dos direitos fundamentais da pessoa humana e a solidariedade indispensável e
prioritária para com as camadas menos favorecidas da sociedade brasileira,
marcada ao longo dos últimos cinco séculos de sua história por gritantes
desigualdades sociais.
Com respeito à intervenção militar de 1964 dois
fatores merecem realce. O primeiro foi extremamente benéfico para a Igreja, na
medida em que os vinte anos de Governos militares (1964 a 1985) erradicaram o
fisiologismo partidário que enxovalhava setores específicos de presbíteros que
na sua atuação recorriam a essas práticas inaceitáveis.
O segundo destaque diz respeito à atuação da Igreja
renovada pelo Concílio Vaticanos II , quando a partir de julho de 1968, a linha
dura dentro das Forças Armadas conseguiu assumir uma influência dominante e ao
longo do Governo do Presidente Médici institucionalizou a prática da tortura de
maneira arbitrária e indiscriminada. Neste mesmo período a política econômica
sob a liderança de Delfim Neto promoveu um modelo de acentuada concentração de
renda, deixando as camadas de menor poder aquisitivo totalmente desprotegida na
Rua da Amargura. À luz do Vaticano II, a Igreja no Brasil liderada por insignes
prelados e com o suporte da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil enfrentou
o Estado Brasileiro nas duas frentes: Defesa e promoção dos direitos
fundamentais da pessoa humana em face da arbitrariedade do sistema de torturas;
Promoção da causa da população de menor poder aquisitivo, ameaçada pelo modelo
avassalador de concentração de renda. Nesta oportunidade, a Igreja era a única
Voz que assumia posição em nome daqueles e daquelas que tinham sido cassados do
seu direito de expressão. Com o fim do período de intervenção militar e da
inauguração da volta do país a um regime de democracia civil, a Igreja continua
dentro de um novo contexto com a missão que lhe foi confiada pelo Concílio
Vaticano II e pelos documentos Pontifícios que retomaram, desenvolveram e
ampliaram as diretrizes deste Concílio.
Em primeiro lugar é inconcebível que em pleno
século XXI, presbíteros da Igreja Católica que congrega mais de três quartos da
população brasileira voltem a práticas vergonhosas, que deviam constar apenas
de uma história passada e lamentável, quando desempenhavam o papel de cabos
eleitorais e lacaios do vil fisiologismo partidário. Algo deve estar errado na
formação básica desses presbíteros bem como na sua formação continuada ao longo
do exercício de seu ministério pastoral. Mais recentemente esses presbíteros na
sua ingenuidade política estão servindo de inocentes úteis nas mãos daqueles
que se opõem frontalmente às mudanças estruturais que visam abrir novos canais
para a ascensão social da maioria da população de menor poder aquisitivo. Esses
presbíteros não perceberam a chantagem armada pelos paladinos do “status quo”,
que se camuflaram em defensores da vida, e em seguida num golpe falacioso
acusaram caluniosamente de inimigos da promoção da vida todos aqueles dedicados
à elevação social das classes menos favorecidas. Desta maneira foi subtraída do
debate a prioridade a ser outorgada aos pobres.
É de capital importância que essa chantagem seja
publicamente desmascarada e que as boas intenções desses presbíteros sejam
orientadas não para sustentar as forças que desejam a manutenção atual das
estruturas injustas e discriminatórias, mas em benefício da maioria da
população de menor poder aquisitivo. Cura-se assim uma chaga multissecular que
corrói a estrutura social da nação. Promove-se ao mesmo tempo o exercício
universal da cidadania e confere-se maior consistência ao tecido da verdadeira
e legítima democracia no País.
À luz do Magistério da Igreja, as relações entre
Igreja e Estado Brasileiro devem ser antes de tudo a de cooperadores para o
desenvolvimento como sobejamente apontado pelos Documentos conciliares e
Pontifícios, e mais particularmente explicitado pela Exortação Apostólica de
Paulo VI “Evangelii Nuntiandi” de 8 de dezembro de 1976. O tema da Campanha da
Fraternidade de 2011 sobre “Fraternidade e a Vida no Planeta Terra” é uma
oportunidade ímpar para definir de maneira mais atualizada esta cooperação em
função das novas exigências de um desenvolvimento denominado como sustentável,
na medida em que confere prioridade à vida e não à matéria inorgânica que deve
ficar sujeita à preciosidade inestimável do fenômeno sublime da vida e da
solidariedade que deve existir entre todos os seres vivos que povoam o Planeta,
dos mais ínfimos organismos até a dignidade ímpar do ser humano, chamado a
participar como filho da comunhão de vida das três Pessoas divinas.
É preciso levar em conta que o conceito de vida à
luz da Revelação divina é um conceito de natureza analógica, como soe acontecer
com tantos outros conceitos da verdade revelada. Por isso, ele engloba um vasto
leque de diversos níveis de vida em toda a obra da criação, bem como na obra da
Redenção, ambas protagonizadas pela segunda Pessoa da Trindade, a Palavra que
se fez carne e habitou entre nós (Evangelho de João, capítulo primeiro).
Esta Palavra encarnada tornou-se o Primogênito de
todos os seres criados, pois aprouve a Deus fazer Nele habitar toda a plenitude
da divindade e reconciliar por Ele e para Ele todos os seres tanto terrestres
como celestes, estabelecendo a paz pelo sangue de sua cruz (Carta aos cristãos
de Colossos, capítulos 1 e 2).
(*) Raimundo
Caramuru Barros é mestre em economia pelo Boston College, EUA. Foi consultor do
Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID e atuou como especialista nas
áreas de transportes, trânsito e meio ambiente, dedicando-se em seguida à
assessoria de diversas organizações não-governamentais. É autor de
Desenvolvimento da Amazônia – como construir uma civilização da vida e a
serviço dos seres vivos nessa região (Editora Paulus, 2009). Publicou livros e
artigos sobre a Igreja no Brasil, entre eles, Dom Helder: Artesão da Paz, uma
publicação do Senado Federal, volume 120.
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