O querido Mestre continua a ter
razão: somos incapazes de impedir a nossa incorporação dependente, desta vez em
uma Sociedade e Economia do Conhecimento
Zacarias Gama* // www.cartamaior.com.br
A Presidente da República Dilma
Rousseff acaba de sancionar a Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016, que
dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, pesquisa, capacitação
científica e tecnológica e à inovação. O autor do Projeto de Lei foi o deputado
federal Bruno Araújo (PSDB-PE) que presidiu a Comissão de Ciência e Tecnologia
da Câmara dos Deputados em 2011. Um Marco Legal da Ciência, Tecnologia e
Inovação era esperado há muito tempo pela comunidade de cientistas brasileiros,
ansiosa por “medidas de incentivo no ambiente produtivo, com vistas à
capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao
desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional do País”.
Os princípios em que se baseia o
Marco Legal não apenas visam a promoção das atividades científicas e
tecnológicas estratégicas, mas também a continuidade dos processos de
desenvolvimento científico; redução das desigualdades regionais; espraiamento
das atividades científicas pelo território nacional; promoção da cooperação
entre os setores público e privado e entre empresas; estímulo à atividade de
inovação nas instituições científicas e nas empresas; promoção da
competitividade empresarial interna e externamente; incremento da capacidade
operacional, científica, tecnológica e administrativa das instituições
científicas, tecnológicas e de Inovação (ICTs); desburocratização e
simplificação de procedimentos para a gestão de projetos de ciência, tecnologia
e inovação; e apoio, incentivo e integração dos inventores independentes às
atividades das ICTs e ao sistema produtivo.
Nas bases em que foi sancionado,
sua justificativa é a necessidade de incrementar o desenvolvimento científico,
tecnológico e de inovação do País e à crise de financiamento vivida pelas
agências governamentais de fomento. A
abertura à iniciativa privada na área de ciências, tecnologia e inovação,
conforme os cânones privatistas do PSDB, deverá se traduzir em substantivos
aportes de recursos financeiros e tecnológicos, permitindo que o País
nominalmente se insira no que está sendo chamado de Sociedade e Economia do
Conhecimento. Mas, como era de esperar há perversidades e entreguismos
aparentes, aliás bem característicos do modus operandi deste partido político.
A primeira e mais visível tem a
ver com a exclusiva prioridade à ciência, tecnologia e inovação e o consequente
alheamento das demais áreas do conhecimento, condenando-as a estados de
incerteza e indefinição. Em sua redação ficou parecendo que a ciência,
tecnologia e inovação prescindem de qualquer humanidade. A história,
entretanto, nos mostra que a desumanização da ciência pode gerar exclamações
trágicas como as do físico Julius Robert Oppenheimer (1904 –1967) após o
sucesso de sua bomba termonuclear: “Agora eu me torno a morte, o destruidor de
mundos”. Mahatma Ghandi, em sua sabedoria, também já nos dizia que a ciência
sem humanismo é um pecado capital produtor de injustiças sociais.
No Brasil, lamentavelmente a
tendência de desumanização da ciência anda a passos largos. As Estratégias
Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação para o período 2012 – 2015,
divulgadas pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT, 2012) e aqui tomadas
como exemplo, consideram o ser humano apenas como capital social destinado a
engrossar os recursos compassivos para o desenvolvimento nacional. O foco que
coloca na sociedade visa diminuir as desigualdades e elevar bem-estar social e
faz parecer que o objetivo é a construção de um “Admirável Mundo Novo”, que à
semelhança daquele pensado por Aldous Huxley também se edificaria
essencialmente científico e harmonizado com as leis e regras sociais, pouco se
importando com o distanciamento de vários princípios éticos e de valores
morais. Como no mundo de Huxley, o soma,
ou outra droga alucinógena qualquer, é que diminuiria o sofrimento e a
infelicidade; Shakespeare, ao que tudo indica, ao mesmo tempo tenderia a ser
uma coisa exótica e própria de alguns selvagens.
Outro problema certamente mais
grave é a privatização da produção científica, tecnológica e inovadora. A
abertura das nossas instituições ICTs, parques e polos tecnológicos à entrada
de empresas privadas ávidas de lucro, se de um lado garante os recursos
financeiros e materiais para o desenvolvimento científico e tecnológico do
País, de outro facilita que tais empresas se utilizem do capital intelectual
das ICTS brasileiras e retenham para si a propriedade e a titularidade
intelectual sobre os resultados ainda que na forma da legislação corrente. Não
é insensato pensar o risco de vivermos um ciclo de colonização da nossa
produção de conhecimentos pelos centros orgânicos do capitalismo mundial.
Ajuizar que tais empresas investirão no desenvolvimento de ciência, tecnologia
e inovação de modo a contribuir para o desenvolvimento independente e
sustentável do Brasil é de uma ingenuidade pueril. As inversões estrangeiras
servirão antes à acumulação de riquezas nos centros orgânicos do capital e à
manutenção da nossa dependência.
O Marco Legal poderia ter mais
cores nacionais. Por que não ser prioritariamente indutor do desenvolvimento
científico, tecnológico e inovador do Brasil contando com a cooperação das
forças sociais existentes? Por que não comprometer a área com a modernização,
desenvolvimento e fortalecimento País, levando-o a se mover independente pelo
conhecimento?
Ora, sabidamente as nossas ICTs,
parques e polos tecnológicos têm múltiplos objetivos e fins, nem todos, porém,
podem ser redutíveis às estreitas percepções do mundo capitalista. Assim, vale
então perguntar: por que não se insurgir contra a apropriação dos conhecimentos
científicos, tecnológicos e de inovação pela propriedade privada, na qual se
funda o capital? Por que se tornar basicamente um facilitador do vigoroso
processo de privatização dos recursos humanos e do patrimônio científico
público? O Sindicato Andes-SN, ao criticá-lo, observa inclusive que em médio
prazo é possível que o conhecimento produzido nas ICTs brasileiras sequer possa
ser publicado por seus desenvolvedores, visto que serão patenteados e
controlados por financiadores privados.
A análise desse Marco Legal nos
remete inexoravelmente a Florestan Fernandes e aos padrões que enunciou para
explicar a dominação externa na América Latina. O querido e saudoso Mestre
continua a ter razão, na medida em que permanecemos incapazes de impedir a
nossa incorporação dependente, desta vez em uma Sociedade e Economia do
Conhecimento. Por incrível que possa parecer a institucionalização de nossa
produção científica prossegue sendo realizada com a exclusão permanente dos
interesses nacionais e sacrifício de um estilo democrático de vida.
Ainda insistimos em estabelecer
“uma conexão estrutural interna para as piores manipulações do exterior” (FF,
2008).
*Professor Associado da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do corpo docente do Programa
de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) e do Comitê
Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP).
Créditos da foto: reprodução
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