Saltar para o vazio ou
reconstruir as bases do desenvolvimento? O divisor de águas é a Petrobras: não
capitalizar a estatal é enterrar a nação com ela.
por: Saul Leblon // www.cartamaior.com.br
Foi preciso um banqueiro, Luiz
Carlos Trabuco, presidente do Bradesco, dizer algumas coisas sonegadas pela
mídia até agora, para, finalmente, a natureza demencial de um diagnóstico
autodestrutivo ser deslocada do centro do debate e emergir aquilo que parte da
esquerda tem ecoado solitariamente há algum tempo.
Não é o ‘lulopopulismo’ que está
levando o Brasil ao desmanche.
O Brasil tem seus problemas - uma
elite predadora e provinciana, um dos principais.
Mas é o mundo capitalista que
tropeça de novo na própria lógica e conduz as nações a uma recidiva da crise
global de 2008.
Os vetores desta vez são a freada
chinesa e o mergulho sem termo das cotações do petróleo.
A embicada do barril –de US$130
para menos de US$30—tem razões de ordem geopolíticas e comerciais.
E escancara a brutal deflação de ativos, isto é, o mergulho
conjunto de todas as bolhas especulativas
--as novas e as suspensas mas não equacionadas desde 2008.
Todas elas agora murcham conjuntamente,
perfuradas pela agulhada do último esteio de demanda agregada (consumo e
investimento produtivo) do planeta: a China.
Segunda maior economia do globo,
a China era responsável por 50% do consumo das principais matérias primas e
alimentos negociados no mercado internacional.
O transatlântico chinês vive a
indigestão de um superciclo de investimentos (por décadas o país investiu mais
de 45% do seu PIB), catalisada pelas restrições que a crise de 2008 impôs às
exportações da nova fábrica do mundo.
O conjunto impõe ao gigante
asiático reordenar sua rota de longo curso.
A opção é a maior ênfase no
consumo interno.
Significa investir menos e
comprar um volume menor de matérias-primas --com exceção de alimentos, cujos
produtores todavia serão atingidos de forma equivalente pela queda das
cotações, agora no menor patamar dos últimos 16 anos, depois de caírem 19% em
2015, a quarta regressão anual sucessiva, segundo a FAO.
Uma cadeia de placas tectônicas
enruga e retrai o assoalho econômico de todo o planeta.
Projetos, governos, empregos,
riquezas estão sendo arrastados para o grande sumidouro de um capitalismo cuja
viabilidade repousa na autodestruição cíclica.
Estamos a bordo de uma delas.
O ralo sistêmico engolfa e
borbulha enquanto o arguto sociólogo FHC, seu poleiro de tucanos adestrados em
truques institucionais, a mídia que lhes dá manchetes e rodelas de banana, e
seu colunismo de linces analíticos, distraem a opinião pública e dispersam a
prontidão nacional, com truques e cortinas de fumaça que subordinam o principal
ao secundário.
A farsa anunciada em manchetes faiscantes é essa que os Marinhos,
os Frias e os Mesquitas repicam diuturnamente
com seus chicotinhos de domadores do discernimento social: ‘Allons
enfants, vamos abriu a janela de oportunidade para destruir o PT e restaurar a
monarquia plutocrática neoliberal; aqui e quiçá em toda a América Latina
bolivariana –Macri, mostre-lhes como se fazia nos anos 90’.
O planeta avança em rota de
colisão histórica com geleiras recessivas, uma subsequente à outra. E eles
distraindo a plateia, enquanto hienas dos mercados fazem o serviço final:
devorar o fígado, o coração, a mente, desta geração e da próxima.
Não há luz no fim desse túnel,
advertiu o banqueiro Trabuco, em Davos, uma voz sistêmica solitária a sacudir
os jornalistas de banco pelos ombros.
O circo pode pegar fogo, avisa o
presidente do Bradesco.
Em economês: ‘A estabilização (desta vez) será no fundo do
poço’, sinaliza de forma educada para dizer aos petizes da mídia que a
tergiversação sobre as determinações globais da crise pode ter consequências
arrasadoras.
Gente como Trabuco quer preservar a riqueza financeira
–antes de mais nada; mas sabe que até para isso será preciso enxergar além do
‘lulopopulismo’
Enquanto o colunismo fantasia
bolivarianismos & outras tucanolices (tolices tucanas), massas de forças
descomunais semeiam a desordem neoliberal.
O vórtice da incerteza escapou da
jaula
Ao acionar o retraimento do
crédito bancário às empresas, ligou um poderoso difusor sistêmico de retração
em cadeia.
Apertem os cintos –avisou Trabuco
sobretudo aos seus pares, mas também à elite cega.
Como se temia, uma recidiva da
crise mundial encontra Estados e bancos públicos exauridos, ainda não
recuperados do esforço unilateral para mitigar os gargalos dos últimos anos.
É o caso do Brasil.
Em 2008 o país foi um dos que
melhor respondeu à retração do crédito privado, estimulando o consumo e o
investimento, com a expansão acelerada dos bancos estatais.
O crédito imobiliário crescia a
45% ao ano.
Além de expandir o volume, o
sistema financeiro público passou a oferecer taxas de juros e spreads menores.
Enquanto o setor público avançou
na oferta de liquidez, o setor privado recuou.
Hoje ainda os bancos públicos
lideram a oferta de crédito (em mais de 50% até 2014), enquanto o BNDES – um
dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo, maior que o Banco Mundial--
mantém-se solitário na oferta de recursos indispensáveis aos grandes projetos
de longa maturação.
A recidiva da crise, em meio à
mais frágil convalescença de uma recessão capitalista desde 1929, pega esse
aparato anticíclico duplamente vulnerável.
De um lado, pelo esgotamento da
receita fiscal, precipitada por uma recessão ingenuamente oferecida pelo
governo, em troca da indulgência do mercado --que nunca veio e nem virá.
O flanco mais deletério, porém,
vem do cerco político demencial das milícias
neoliberaloides, acantonadas na mídia e nas fileiras rentistas.
Ante a tempestade que se
aproxima, requisitam todos os botes à salvação da riqueza financeira e à
destruição do que denominam de ‘voluntarismo intervencionista’ .
‘Mais juros e mais recessão; à
purga pelo mercado, --custe o que custar!’
O correlato político disso
emergiu na República do Paraná.
Autonomeados senhores da vida e
da morte da nação, procuradores ecoam hinos purificadores, ao pé da fogueira
onde pretendem imolar os alicerces do petróleo brasileiro, da construção
pesada, do presente e do futuro...
Cada elite tem o Rasputin que
merece.
Essa é a borda do costão.
Pedriscos escorregam sob os pés do país.
E os meninos do colunismo
econômico dão duro para esgotar a capacidade de resistência do Estado ,
visualizando no despinhadeiro o ensejo de um repto demolidor.
A desforra do fracasso de 2002,
2005, 2006, 2010 e 2014 , quando tudo parecia apontar
para o fim do ‘lulopopulismo’.
A correlação de forças desta vez
tem tudo para esgarçar o fiapo de soberania diante do novo arranque da crise.
O PT é esse fiapo no Brasil.
‘Era’ -- ouvimos diuturnamente das gargantas
sôfregas à direita e das boas intenções trôpegas, à esquerda, nas vozes que
acham indiferente um governo Dilma/Lula ou Aécio/FH; Cristina/ ‘La Cámpora’, ou
Macri/fascistas.
A primeira atribui à heresia
intervencionista a raiz da crise ‘endógena’ brasileira.
A segunda considera a denúncia do
lulomercadismo –ou de Haddad, o barrabás do passe livre-- a chave mestra para resolver pendências com o
capitalismo global, que tem no Brasil a unha encravada mais incômoda da AL.
O que o banqueiro Luiz Carlos
Trabuco veio dizer em linguagem mais ou menos explícita é que essa crosta
ideológica –da qual é personagem---
corre o risco de acuar a capacidade de reação do país, pondo a perder
mais que o ‘lulopopulismo’.
Está em jogo a própria capacidade
de o capitalismo brasileiro honrar a promessa de riqueza contida nas montanhas
de ‘ativos’ financeiros em mãos do mercado nesse momento.
Esse é o ponto do desmonte em que
nos encontramos.
O que se discute é se vamos para
a terra arrasada, como pedem as narinas borboletantes do mercado-golpismo; ou
se a nação resistirá ao botim em marcha, recusando-se a sacrificar o que se
construiu nos últimos 12 anos, à revelia do mercado.
Inclua-se nessa transgressão:
- 60 milhões de novos
consumidores,a cobrar cidadania plena;
- 20 milhões de novos empregados
formais;
- um salário mínimo 70% maior em
termos reais;
- um sistema de habitação popular
ressuscitado;
- bancos públicos a se impor à
banca privada;
- uma Petrobras e um BNDES
fechando as lacunas da ausência de instrumentos estatais destruídos no ciclo
tucano;
- políticas de conteúdo nacional
a devolver um impulso industrializante ao desenvolvimento brasileiro;
Etc.
É nessa hora que um pedaço da
crítica progressista ao ciclo de governo do PT pode resvalar para a mesma
avaliação conservadora do período.
O risco, repita-se, é subordinar
a ação de governo a soluções de mercado para desequilíbrios macroeconômicos que
só a luta política pode escrutinar.
De certa forma foi isso que Dilma
tentou nos últimos 12 meses com as consequências devidamente estampadas em
manchetes não propriamente indulgentes.
O mundo capitalista se contorce;
um arrastão de energia devastadora afastou o mar da praia onde flutuava a
embarcação do crescimento global.
O cenário internacional desandou
para um novo tsunami.
A China resolveu cuidar da
própria encruzilhada; a Europa que fingia respirar voltou ao balão de oxigênio;
a deflação de ativos vai rebater na velocidade da retomada norte-americana.
Tudo a desaconselhar o arrocho
pró-cíclico evocado pelos magos da peregrinação redentora às catacumbas e às
bancarrotas.
Desde 2008 eles advertem: a
resistência do Brasil à crise é um crime contra o mercado.
Nenhuma voz dentro ou fora de
Brasília soube até agora salgar esse diagnóstico da crise ‘endógena’ com a
salmoura pedagógica das evidências opostas.
É para isso que existe governo.
Para esclarecer a opinião pública
quando o futuro da nação balança perigosamente no despenhadeiro das ameaças e
das manipulações.
Não significa mistificar a cota
doméstica de erros e responsabilidades.
Mas, sim, separa-la de interesses
que não são os da nação.
Sim, escolhas estratégicas são
mediadas pela correlação de forças.
Mas um pedaço importante da
correlação de forças se define no diálogo com a sociedade.
Disputar as expectativas, em
certos momentos, é tão decisivo quanto ajustar as linhas de passagem de um
ciclo para outro.
Um governo que toma decisões
ancorado em diálogo direto com suas bases, apoiado por elas, irradia uma
capacidade de comando que desencoraja o assalto conservador.
Hugo Chávez? Não, Roosevelt, da
‘Conversa ao Pé da Lareira’, de 1933, o programa radiofônico com o qual o
presidente venceu a Depressão de 29 disputando o imaginário social com o
mercado e seus abutres.
Cada vez que falava à Nação, a
voz de Roosevelt dizia coisas inteligíveis à angústia do pai de família que
acordara empregado e fora dormir temendo ser demitido. Suas mensagens e
políticas pavimentavam o futuro sem negligenciar a emergência. Traziam
respostas para o presente.
O quadro hoje é outro, comparado
à capacidade fiscal do Estado em 1929 ou 2008?
Sempre é outro.
De novo: é para isso que existe
governo.
Se a história fosse estável e
previsível, bastariam burocracias administrativas.
Há duas formas de descascar o
abacaxi.
A escolha conservadora dispensa o
penoso trabalho de coordenação defensiva da economia pelo Estado, ademais de
elidir a intrincada mediação dos conflitos do desenvolvimento em um hiato de
crescimento.
O que o jogral conservador
reclama é um arrocho neoliberal com desmonte do que sobrou de ferramenta
pública para o desenvolvimento –‘o entulho intervencionista que possibilitou
Lula’.
Por isso o desmonte da Petrobras
é um divisor de águas –econômico, político e simbólico.
Até quando o governo vai adiar a
capitalização da empresa?
Será necessário oferecer-lhe o
argumento do Proer – o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema
Financeiro, criado por FHC, em 1995, que custou ao país cerca de R$ 200 bi em
dinheiro de hoje?
Salvar a banca era importante
– fortalecer a Petrobrás não é? Por quê?
Não estamos falando apenas de um
negócio de sucção de óleo a US$ 25/barril (ainda assim competitivo a um custo
do pre-sal a 1/3 disso, desde que capitalizada a Petrobras).
Estamos falando justamente do
oposto martelado pela fuzilaria conservadora nos dias que correm.
Qual seja, a natureza decisiva da
presença do Estado na luta pelo desenvolvimento.
Transformar a história de sucesso
da Petrobras em um desastre de
proporções ferroviárias é um requisito para desautorizar essa evidência
histórica que o pre-sal veio ratificar
Não por acaso, o martelete
contra o ‘anacronismo intervencionista
do PT’ interliga a ação dos procuradores
de Moro à matilha dos coveiros da estatal.
.
Ao propiciar não apenas a
autossuficiência, mas o potencial de um salto tecnológico, capaz de contribuir
para o impulso industrializante de que
carece o país, a Petrobrás reafirma a relevância insubstituível da presença
estatal na ordenação do desenvolvimento econômico.
Há problemas?
Sim; a empresa arcou com
sacrifícios equivalentes ao seu peso no país, vendendo combustível abaixo do
custo de importação por quatro anos seguidos.
Ainda assim, até 2013 foi a
petroleira que mais investiu no mundo: mais de US$ 40 bilhões/ano, o dobro da
média mundial do setor.
E se tornou campeã mundial no
decisivo quesito da prospecção de novas
reservas. Com resultados que retrucam o jogral do ‘Brasil que não deu certo’.
O pré-sal já produz cerca de 1,1
milhão de barris de óleo equivalente por dia.
A equação posta pelo novo
estirão da crise mundial não admite meio
termo.
Capitalizar a Petrobras é dar um
sinal de que a democracia brasileira não abdicou de reordenar seu
desenvolvimento.
Não fazê-lo emitirá um bônus de
reforço à prostração.
A mãe de todas as batalhas gira
em torno dessa questão.
Há pouco tempo para escolhas.
Mas há muito a perder se elas não
forem feitas em defesa do Brasil.
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