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MELVILLE, Hermann [1819-1981], Bartleby, o Escrevente - Uma história de Wall Street e Outras Histórias, pp. 7-53, trad. Cassia Zanon, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d in https://leidsoncvsenac.files.wordpress.com/2009/12/miololivro.pdf *
Nesse mundo, supõe-se que as coisas funcionem do seguinte modo: nos EUA, as estruturas do poder (públicas e privadas) decidem o que querem que o resto do mundo faça. Comunicam seus desejos por canais oficiais e não oficiais, contando com cooperação automática. Se a cooperação não acontece imediatamente, aplicam pressões políticas, financeiras e econômicas. Se ainda assim não se produz o efeito desejado, tentam mudança de regime mediante revolução colorida ou golpe militar, ou organizam uma insurgência que leve a ataques terroristas e guerra civil na nação recalcitrante. Se nem isso funciona, bombardeiam o país até mandá-lo de volta à idade da pedra. Foi assim que sempre funcionou nos anos 1990s e 2000s. Recentemente porém, uma nova dinâmica emergiu.
De início era centrada na Rússia, mas o fenômeno em seguida espalhou-se pelo mundo e, agora, acaba de engolir os próprios EUA. Funciona do seguinte modo: os EUA decidem o que querem que a Rússia faça e comunicam seus desejos, contando com automática cooperação. A Rússia responde "Nyet." Os EUA imediatamente recorrem aos passos acima relacionados, mas sem a campanha de bombardeamento, antes de cujo início são contidos pela ferramenta de contenção nuclear da Rússia. A resposta continua: "Nyet." Poder-se-ia imaginar talvez que alguém inteligente dentro da estrutura de poder dos EUA refletiria e diria: "Consideradas as evidências que temos à vista, dar ordens à Rússia não funciona; tentemos negociar de boa-fé, em termos de igualdade, quem sabe?" E todos os demais batem na testa e dizem "Uau! Brilhante! Por que não pensamos nisso?!" Mas, não. A pessoa que pensou antes dos demais será demitida no mesmo dia, porque, sacomé, a hegemonia norte-americana global não é negociável. Assim sendo, o que acontece é que os norte-americanos se irritam, reagrupam-se e tentam outra vez, com o que oferecem ao mundo espetáculo engraçadíssimo.
Todo o imbróglio Edward Snowden foi especialmente engraçado de ver. Os EUA exigiram a extradição. Os russos disseram "Nyet, nossa Constituição russa nos impede." E então, hilárias, algumas vozes no ocidente puseram-se a exigir (sic) que a Rússia alterasse a própria Constituição! A resposta, que dispensa tradução, foi "Quá-quá-rá-quá-quá".
Menos engraçado é o impasse em torno da Síria: os norte-americanos só fazem exigir, sem parar, que a Rússia vá adiante com o plano dos EUA para derrubar Bashar Assad. A imutável resposta russa é: "Nyet, os sírios decidirão quem os governará, não Rússia e não EUA." Cada vez que ouvem essa resposta, os norte-americanos fazem cara de quem não consegue entender, coçam a cabeça e... fazem tudo outra vez.
Recentemente, John Kerry esteve em Moscou, numa "sessão de negociação" maratona com Putin e Lavrov. Acima, na abertura, há uma foto de Kerry em conversa com Putin e Lavrov em Moscou, há uma semana mais ou menos, e é impossível não ler o que dizem as respectivas expressões faciais. Lá está Kerry, de costas para a câmera, dizendo aquelas bobagens de sempre. O rosto de Lavrov diz claramente "Não acredito que eu tenha de ficar aqui sentado e ouvir todo esse bobajol outra vez..." O rosto de Putin diz: "Oh, coitado desse idiota. Não é capaz de compreender que vamos dizer 'nyet' outra vez." Kerry voou para casa com mais um "nyet."
Pior ainda, outros países estão agora começando também a entrar na mesma ação. Os norte-americanos disseram aos britânicos exatamente como queriam que votassem; os britânicos disseram "nyet" e votaram pelo Brexit. Os norte-americanos disseram aos europeus que eram obrigados a aceitar a horrenda dominação pelo poder das grandes empresas chamada hoje de Parceria Trans-Atlântico de Comércio e Investimento [ing. Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP)], e os franceses disseram "nyet, não será aprovada." Os EUA organizaram mais um golpe militar na Turquia para substituir Erdoǧan por alguém que não daria mole à Rússia, e os turcos disseram também "nyet" a mais essa ideia.
E agora, horror dos horrores, lá está Donald Trump dizendo "nyet" ao diabo vezes quatro - à OTAN, à deslocalização dos empregos dos norte-americanos, a deixar entrar uma inundação de migrantes, à globalização, às armas para nazistas ucranianos, ao livre comércio...
O efeito psicológico corrosivo de tantos "nyet" na psique hegemonista norte-americana não pode ser subestimado. Se todos esperam que você pense e aja como hegemon, mas só consegue manter em operação o setor "pense", o resultado é o que se chama dissonância cognitiva. Se o seu negócio é abusar de nações e pessoas pelo mundo, mas as nações e pessoas não mais se deixam abusar, o seu negócio vira piada. E você, doido varrido, doido de amarrar.
A doideira resultante produziu recentemente um interessante sintoma: vários office-boys servidores do Departamento de Estado (diplomatas e outros) assinaram uma carta - imediatamente vazada - exigindo imediata campanha de bombardeio contra a Síria, para derrubar Bashar Assad. Di-plo-ma-tas. Diplomacia é a arte de falar e, pelas palavras, evitar guerras. Diplomatas que 'exigem' guerra não agem lá muito... diplomaticamente. Pode-se argumentar que são diplomatas incompetentes, mas não basta, porque não são só incompetentes (incontáveis diplomatas competentes deixaram o serviço diplomático durante o segundo governo Bush, quase todos desgostosos por ter de mentir incansavelmente sobre os motivos para a invasão dos EUA ao Iraque e aquela guerra). Os que assinaram a tal carta são belicistas doentios, pervertidos nada diplomáticos. É tamanho o poder daquela palavrinha russa, que aqueles supostos diplomatas enlouqueceram completamente.
Mas seria injusto destacar só o Departamento de Estado. É como se todo o corpo político norte-americano estivesse infectado por emanações pútridas. O miasma tudo permeia e torna a vida uma desgraça, uma miséria. Apesar dos crescentes problemas, muitas outras coisas nos EUA permanecem ainda administráveis, de certo modo, mas essa tal coisa - o esgotamento da capacidade para abusar de todos em todo o mundo - arruína o resto.
É verão, meados do verão, e o país está na praia. A toalha de praia está comida de traças e esfarrapada; o guarda-sol tem buracos e varetas quebradas, os refrigerantes no isopor são envenenados com químicas imundas e a leitura de verão é só tédio... e logo ali, além do mais, há uma baleia morta que se decompõe ao sol e cujo nome é "Nyet." Era o que faltava para arruinar, de vez, o meio ambiente!
Os troncos falantes da 'mídia' e políticos do establishment já estão dolorosamente cientes desse problema, e a reação deles, previsível, é culpar o que veem como fonte primeira de todos os males: a Rússia, convenientemente personificada por Putin.
"Quem não votar em Clinton, estará votando em Putin" - diz a mais recente sandice 'de campanha'. Outra, diz que Trump seria agente de Putin. Qualquer figura pública que não assuma posição militante a favor do establishment é automaticamente declarada "idiota putinista útil". Tomadas pelo valor manifesto, são bobagens, patetices, valem nada. Mas há uma explicação profunda para todas elas: o que as conecta entre si, todas essas imbecilidades, é o poder daquele "nyet." Votar em Sanders é uma modalidade de voto- "nyet": o establishment Democrata produziu uma candidata e mandou os eleitores votarem nela, e a maioria dos jovens norte-americanos responderam "nyet." O mesmo aconteceu com Trump: o establishment Republicano empoderou os seus Sete Anões e mandou sua gente votar em qualquer deles. Outra vez, a maioria da classe trabalhadora branca norte-americana humilhada e assaltada disse "nyet" e votou na Branca de Neve outsider.
É sinal estimulante, que tanta gente no mundo dominado por Washington esteja descobrindo o poder do "nyet." O establishment pode ainda parecer sólido, mas só pelo lado de fora. Por baixo da fina demão de tinta nova, o casco está podre, com água entrando por todas as frestas. Um "nyet" bem forte, que ecoe e vibre, com certeza fará rachar o casco, com o que se fará espaço para algumas mudanças muito necessárias. Quando acontecer, os norte-americanos lembrem, por favor, de agradecer à Rússia... ou... como tanto insistem, a Putin.
26/7/2016, Dmitri Orlov, Club Orlov
http://cluborlov.blogspot.com.br/2016/07/the-power-of-nyet.html#more
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