Vice de Evo Morales falou sobre a realidade socioeconômica do seu país, da onda conservadora, dos ciclos políticos e sobre como combater a corrupção.
Martín Granovsky, para o Página/12 // www.cartamaior.com.br
São as nove da noite de quarta-feira (24/8) na cidade de La Plata, na Argentina. Álvaro García Linera se levantou às quatro e meia da manhã, porque Evo Morales convocou uma reunião de gabinete. Continua de pé até este momento, no estúdio da Faculdade de Jornalismo de La Plata onde acaba de receber o Prêmio Rodolfo Walsh, das mãos da decana Florencia Saintout. Durante a cerimônia, ele diz que “este não é um bom momento para a América Latina”.
Sempre acompanhado por Carlos Girotti, da CTA (Central de Trabalhadores Argentinos), o vice-presidente da Bolívia teve suas tarde e noite ocupada pelos eventos em sua homenagem. Na quinta-feira, viajou a Santiago del Estero, para o Fórum Internacional Horizontes da Educação em Nossa América, impulsado pela universidade local e pelo ParlaSul, através da parlamentária Ana María Corradi, da FpV (a aliança kirchnerista Frente para a Vitória).
A entrevista durou 45 minutos e pode ser vista completa no canal web do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (www.clacso.tv). Nela, García Linera aborda os principais temas do cenário político sul-americano de hoje.
– Não é um bom momento para a América Latina, porque há uma retomada da direita em curso, temporária talvez – diz o vice-presidente –, mas o fato é que a direita reassume governos justamente para aplicar a velha receita do corte de gastas, do corte de direitos, da redução da participação do Estado, e para permitir que todos esses recursos se direcionem ao setor privado nacional ou estrangeiro. A sociedade, que estava conseguindo condições de vida mais ou menos dignas, agora retrocede a situações de abuso, desemprego e exploração. Mas, ao mesmo tempo, é um momento exigente, porque obriga essa mesma sociedade, os setores subalternos, as classes sociais baixas, a retomar novamente a capacidade de organização. Ninguém e se mobiliza perpetuamente. Não há revolução perpétua.
– Como terminam os períodos de retração?
– Basicamente, dependem da organização, e também do horizonte. Uma combinação de ideias mobilizadoras com a força capaz de converter essas ideias em fato político, em fato que influa no cenário e que possa modificar a correlação de forças a curto ou médio prazo. O importante é que esta geração que hoje está de pé viveu os tempos da derrota do neoliberalismo, viveu a vitória temporária dos governos progressistas e revolucionários, e agora está neste período intermediário. Portanto, tem o conhecimento e a experiência para retomar a iniciativa. Se não fazemos isso, este período de retomada parcial de iniciativa por parte da direita pode se estender e se ampliar a outros países da América Latina. Sem dúvida, isso significaria uma catástrofe. A direita, onde triunfa, atenta contra o Estado de bem-estar. Os governos progressistas foram governos sociais, por isso o retrocesso é um retrocesso das conquistas sociais da população. Em alguns casos, há uma reaceleração, em outros um congelamento, e em alguns casos há um retrocesso em termos de perspectiva da ação continental. Além dos avanços sociais, o continente vem experimentando, nos últimos dez anos, o momento mais avançado de integração e de uma visão autônoma continental. Isto tem uma importância extraordinária. Se não tivermos a capacidade de nos vermos continentalmente dentro do contexto mundial, cada país por si só será presa fácil das intervenções, das influências e das manipulações dos mais poderosos do mundo. É um tema de correlação de forças, não é um tema moral.
– Tomo uma frase do seu discurso na cerimônia: “a revolução se dará por ondas, não por ciclos”. Qual é a diferença?
– Quando você falas de ciclos, significa que tudo tem um início, uma estabilização e um fim. É algo natural, como a lei da gravidade. Significa pensa que, faça o que fizer, protestando ou se mobilizando, o futuro daqui a 50 anos será assim, e logo virá outro ciclo. É uma visão que arrebata o protagonismo do ser humano, que esquece o papel da subjetividade coletiva na construção dos fatos sociais. É falsa. É a mesma lógica a que do fim da história de Fukuyama. As classes sociais haviam desaparecido, todos éramos empreendedores e era preciso se alinhar com o que fosse a culminação do desenvolvimento humano. Resulta que não foi assim. Apareceram por todos os lados as classes sociais, as lutas, as organizações, os jovens, gente que tomava as praças por assalto, e depois os palácios. Diante disso, o que reivindicamos é a lógica dos fluxos, das ondas, que é um pouco a experiência que adquirimos na vida. As transformações se dão por ondas. A gente se articula, se unifica, cria sentido comum, tem novos eixos de raciocínio, se torna ser universal, ou seja, um ser que luta por todos. A gente consegue direitos, acordos, Estado, política. Mas logo passa à vida cotidiana. Não pode estar na assembleia todos os dias. Tem que ver o que vai acontecer com o seu filho, com o crédito da casa. Vem o refluxo. Mas logo, mais cedo que tarde, pode vir outro fluxo. Quando será esse fluxo? Não sabemos. Não está definido por uma lei sociológica.
– Não está predestinado.
– Entre outras coisas, depende do que você pode fazer hoje no seu bairro, na sua universidade, no seu meio de comunicação, no poema que escreve ou no teatro onde tenta articular o sentido comum, para impulsar ideias do coletivo ou do comunitário. Se, em algum momento, isso que não foi calculado se articula com outras iniciativas comunitárias, pode dar lugar a outro fluxo. Em uma semana, em um ano, em dez anos. O importante é que você lute e se organize. Se a sua vida não for suficiente virá a seguinte, que se somará ao que você fez, para que ele sim possa ver que um novo fluxo virá. As revoluções são assim. Então, quando você observa a História por fluxos e não por ciclos, pode reivindicar outra vez o papel do sujeito, da pessoa, da subjetividade, que não inventa o mundo como dá vontade, mas sim ajuda a construir o mundo. Eu gosto de uma frase de Sartre: “a gente transforma o mundo na mesma medida em que o mundo nos transforma”.
– Quais são os pontos mais importantes da onda boliviana, primeiro fora do Estado, e logo, desde 2006, com Evo Morales como presidente, dentro do Estado?
– O primeiro ponto é que toda vitória política é precedida por uma vitória cultural que se trabalhou e se desenvolveu nos diferentes espaços de opinião pública: meios de comunicação, jornais, universidades, sindicatos, grêmios, bairros. Houve um sentido comum que foi se apoderando das pessoas, baseado na ideia da soberania, da igualdade entre os povos. O povo não se mobiliza apenas porque sofre. Se mobiliza porque sofre e porque acredita que a mobilização pode mudar sua situação. Sem horizonte não há capacidade de articulação. Não é tão simples como o que acreditavam os trotskistas, que bastava haver condições de vida deploráveis para que as pessoas se rebelassem. Não é assim. Muitas vezes as pessoas se acostumam com a dominação e a pobreza.
– Essa é a primeira lição.
– O segundo ponto é que todo processo revolucionário tem que se sustentar e se reinventar, no âmbitos de participação democrática do povo. Isso não é fácil, porque as pessoas se mobilizam e logo recuam. É fácil para os governantes, nesse recuo, assumir o papel dos semideuses. Se você não se incorpora, por métodos inovadores, aos fatores de decisão e de participação, logo terá problemas, e se verá isolado no governo. Claro, porque você abandonou anteriormente aqueles que comandava. Não é uma vingança, é o resultado da sua ação. Sem uma rede corpuscular de participações democráticas, o governo revolucionário fica sem base e à deriva.
– E o terceiro ponto crucial?
– Gestão econômica. Ultimamente tenho pensado muito sobre Lenin e a NEP, a Nova Política Econômica. Se os bolcheviques não tinham a capacidade de satisfazer a necessidade de combater a fome e gerar a estabilidade da sua revolução, todas as demais experiências, como o comunismo de guerra, a abolição do dinheiro e a tomada das fábricas não significariam nada. O próprio Lenin dizia: o único de socialista que temos é somente a vontade de sermos socialistas. A preocupação que Lenin dedicou ao tema da estabilidade econômica foi muito grande, a relação entre o camponês e o operário em função dos avanços da economia. Quando se está fora do governo, se valoriza a organização e o discurso. Dentro do governo, se você falha na gestão econômica, tudo se derruba, porque a direita vai aparecer dizendo: eu posso administrar melhor a economia, eu sempre administrei a economia, eu tenho empresas para mostrar do que sou capaz. Creio que parte dos problemas que os governos progressistas estão enfrentando na América Latina se dá por não ter colocado a economia em primeiro lugar, mantendo o discurso e a organização. Se não, termina se se gerando o ambiente para o regresso das forças conservadoras, que vão dizer que elas podem resolver tudo. E não vão fazer!
– Como administrar a economia estando em meio a uma crise mundial, com os preços das matérias-primas em constante baixa?
– Cada país tem a sua própria dinâmica, mas se algo aprendemos é a não confiar plenamente no mercado externo, e sim trabalhar também o mercado interno. Hoje, a exportação de petróleo, minerais e gás é negativa. Então, como a economia cresce? Porque, em paralelo a isso, nós apostamos em outras opções – fundamentalmente, no mercado interno. A superação da extrema pobreza e da pobreza não é somente um tema de justiça, mas também de dinâmica econômica. A capacidade de gasto da sociedade está se expandindo, e no caso boliviano – e por isso digo que depende de cada país –, as pessoas gastam entre 50 e 55% do seu salário em alimentos, o que acaba fortalecendo a economia camponesa, a economia intermediária de serviços do mercado interno. Foi uma decisão bastante sábia de Evo. Em 2008, tivemos preços del petróleo de 130 dólares, e no mesmo ano, o preço do barril chegou a 30 dólares. De 130 a 30. Foi um golpe muito duro para nós, mas Evo vem de uma cultura camponesa que é essencialmente previsora. No campo ou no altiplano, como vivem entre sequias e geadas, não cultivam em grandes extensões. Se abandona um lugar para cultivar outro, de outro tipo, mais conveniente, e logo se abandona esse outro lugar para cultivar um novo. Essa lógica típica dos camponeses andinos, de se mover em vários pisos ecológicos é a que Evo vem aplicando na gestão do governo. Vamos usá-la no caso do gás. Sim, nós devemos produzir mais gás, perfeito. E se essa lógica falha? Então, apostemos na eletricidade, na agricultura, no lítio. Vamos nos diversificando. Isso é o que vem permitindo que tenhamos agora um crescimento entre 4,2 e 5%. Estamos competindo com o Peru, que tem uma economia de livre mercado absoluta, é um país que está sob o controle do empresariado chileno e estrangeiro, e que tem mar. Se nós tivéssemos mar cresceríamos 2% a mais que agora. Nosso crescimento poderia ser de 6,4%, segundo o Banco Mundial. Pelos “pisos ecológicos”, uma vez que superemos esta etapa de ampliação do consumo das classes mais pobres, já temos outros motores em funcionamento: energia elétrica, lítio e industrialização da agricultura. Então, deste modo, já podemos pensar nos próximos 10 ou 15 anos de um crescimento que flutuaria entre 4 e 6%. Com petróleo a 100 ou a 25 dólares o barril, o importante é que teremos alternativas. Isso tem a ver com a capacidade planificadora e com saber manejar a economia ao estilo camponês. O presidente (Evo) é bastante austero e previsor. Tem sempre uma reserva, não se arrisca. Somos o país da América Latina com mais reservas internacionais em função do seu produto interno bruto, um 50%.
– Em todos os países da América Latina o tema da corrupção está sendo discutido. O que o governo boliviano fez, não a respeito do discurso alheio, mas sim sobre a realidade da corrupção própria?
– Toda democratização real do Estado enfrentará o risco de processos de patrimonialização desse Estado. O Estado sempre funcionou como patrimônio das classes dominantes. Como uma prolongação da família. Era considerado normal, parte da meritocracia. Na Bolívia, quando estudamos sociologicamente como se distribuíam os acessos aos méritos, está claro que estavam definidos em função das condições de classe e dos sobrenomes, e ainda assim falam em meritocracia. Nós nos rebelamos contra isso, nos sublevamos, dizemos que essa forma de utilizar o espaço público em benefício do setor privado é indigna. O neoliberalismo é o paradigma da patrimonialização do Estado, porque ele consiste em agarrar o que é de todos e utilizá-lo em favor dos amigos. Melhor se é para o seu cunhado, melhor se é para a sua esposa, que tem alguns amigos acionistas no exterior. Quando a sociedade vem e passa a exercer a administração do Estado, passamos a viver em função de projetos universais, mas depois essas pessoas passam a ser funcionários públicos. É o dirigente sindical que se torna funcionário, é o companheiro militante que logo aparece como ministro ou parlamentar. Nesse momento, o Estado sai do controle social e entra no âmbito estatal. Não é normal, mas é altamente provável que se busque nesse espaço aquilo que, pela primeira vez em vinte gerações, alguém da sua família conseguiu alcançar, e ao se ver livre do controle social, pense: “nunca mais alguém da minha família estará onde eu estou, e se dou um jeitinho, aproveitarei mais que um pouquinho”. Este tipo de raciocínio não é raro, por isso o temos analisado sociologicamente. Politicamente, ele é catastrófico, porque pode dar lugar a uma espécie de democratização da corrupção. Parece ser um processo que acompanha todas as revoluções, não sei bem o que aconteceu na Rússia, nem o que passou na China, ou em Cuba. Pela experiência do que vejo na Bolívia, o proceder das pessoas, dos camponeses, dos dirigentes operários, lutador, que está acostumado aos sacrifícios mais extremos, e que de um dia para outro se torna ministro e tem 500 funcionários dependendo dele, e controla o destino de 500 milhões de dólares em recursos para programas governamentais. Então, pense: “e que tal se contrato o meu cunhado para isso aqui?”. Assim começa a micro corrupção. A pergunta é: o que fazer sobre isso?
– Atribuir isso à condição humana?
– Sim, à condição humana e ao ressarcimento histórico. Mas não pode. Por que? Não somente porque é se trata de um delito, mas porque essa postura corrói a sua moral. A única força que temos quando saímos de baixo é a nossa força moral. Evo e os sindicatos não ganharam dinheiro, não possuem patrocínio estrangeiro. Sua moral os transformou no núcleo que simboliza uma época e uma vontade coletiva de mudanças. Então, se você se torna tolerante a certas situações, perde sua força moral. Tivemos que tomar decisões muito fortes, que não se deram em nenhum governo da América Latina, muito menos em governos de direita. Tivemos que prender o chefe do nosso partido, Santos Ramírez.
– E o presidente da YPF (Jazimentos Petrolíferos Fiscais, em sua sigla em espanhol) da Bolívia.
– Sim. Também tivemos que prender duas ex-ministras, duas das nossas companheiras, que eram maravilhosas, as quais temos certeza que não tocaram um só centavo, mas que foram permissivas. Elas são incorruptíveis, mas permitiram. Em que país da América Latina, durante a gestão de governo, ex-ministros estão na cadeia? Também temos um ex-prefeito da segunda cidade mais importante da Bolívia na cadeia. Se não fazemos isso, corremos o risco de perder a força moral que um processo revolucionário tem. É muito doloroso, mas também é uma aprendizagem. O que acontecia era que parte dos companheiros não tinham o controle suficiente e havia essa certa permissividade baseada em que são companheiros nossos, o que são gente que precisa, é pouquinho dinheiro, não faço o reporte, mas nesse descuido você põe em risco a sua própria moral. E se você não atua de maneira forte, golpeando a si mesmo, porque são seus próprios camaradas, você perder a força moral que o mantém de pé socialmente. Nesta semana, saiu uma pesquisa que diz que Evo tem 54% de popularidade nas cidades capitais, apesar de todos os ataques, sobre o tema da corrupção de alguns dirigentes indígenas, da farsa do suposto filho. A lição é que, por mais doloroso que seja, você deve ter a valentia e a força de cortar o dedo infectado ou a mão infectada. Se deixar a tarefa para outros, arrisca a que usem a faca para atingir o seu coração, de forma a que você não consiga se recuperar disso nem em uma geração. Se ao cuidar do que te pertence, parte do seu corpo, você é permissivo com o que está apodrecendo, outras partes serão afetadas, e o próprio corpo alcançará um estado irreversível de putrefação, e aí você está perdido. Nossa força nasce do valor moral. É preciso saber cultivar esse valor, e se não se cultiva e não o demonstra continuamente, a direita virá com toda essa política moralista, e te joga na cara: “vocês roubaram cinco mil dólares, terríveis esses indígenas, são uns incapazes, uns ladrões”. Eles roubavam 20, 40, 100 milhões de dólares e ninguém dizia nada, mas ao ver desaparecer cinco mil das mãos alheias armam um estardalhaço. Não importa, é parte da guerra. Aqui ninguém pode levantar o dedo e dizer que foi levado um dólar, não pode dizer que levaram nem meio dólar. Se não for assim, os canalhas da quadrilha moralizante avançará, tentando desqualificar, e fazer você perder moralmente. E se isso acontece, sua geração perde. A pior derrota de um revolucionário é a derrota moral. Você pode perder uma eleição, pode perder militarmente, pode perder a vida, e ainda assim continuar de pé, com seus princípios e sua credibilidade. Quando você perde a moral, já não poderá levantar, será outra geração, outro líder o que terá que se levantar. É preciso se proteger quanto a isso. Assim como na gestão estatal a economia é fundamental, na preservação da liderança o fundamental é a força moral. Nunca permita que eles debilitem a sua força moral, porque isso depois jamais poderá ser recuperado.
Tradução: Victor Farinelli
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