sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Entrevista - Paulo Malvezzi - "Todas as condições que propiciaram o Carandiru continuam vigentes"

Para o assessor jurídico da Pastoral Carcerária, há tentativa de reescrever a história do massacre ocorrido em 1992 e de fazer das vítimas, algozes

por Tory Oliveira // http://www.cartacapital.com.br/

Cena do filme Carandiru
Cena do filme 'Carandiru', dirigido por Hector Babenco em 2003

Em 2 de outubro de 1992, uma briga entre presos durante uma partida de futebol na Casa de Detenção de São Paulo, nome oficial do Carandiru, escalou para um tumulto no pavilhão 9 do então maior presídio da América Latina, instalado na zona norte da capital paulistana.

Os agentes penitenciários acionaram, então, a Polícia Militar de São Paulo, que invadiu o presídio. Em 20 minutos, ao menos 111 presos foram mortos, 90% deles com tiros na cabeça ou no pescoço, indícios de uma execução sumária por parte da força policial.
A história do "Massacre do Carandiru", que expôs as feridas da precariedade e do sistema prisional brasileiro de maneira dramática, ganhou mais um capítulo 24 anos depois daquela sexta-feira a tarde. No último dia 27, 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou a decisão anterior do júri popular que condenou 74 policiais militares acusados da morte dos detentos.

Ivan Sartori, desembargador e relator do processo, votou pela anulação dos julgamentos e pela absolvição dos PMs. Em seu parecer, afirmou que "não houve massacre, houve legítima defesa e cumprimento do processo pela PM”. Seus colegas Camilo Léllis e Edison Brandão rejeitaram a alegação, mas concordaram com a anulação do julgamento, argumentando que o Ministério Público não conseguiu individualizar as penas de cada policial, uma exigência constitucional.

Para Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, entidade ligada à Igreja Católica que atua há 30 anos na questão prisional, a decisão tenta reescrever a história do episódio ao "transformar as vítimas em algozes".

"Todas as condições que propiciaram aquele massacre continuam presentes e se replicam em outros eventos. Os Crimes de Maio de 2006 e as chacinas de em Osasco em 2015 são eventos que só atestam a violência intrínseca do sistema de Justiça Penal", afirma. 

CartaCapital: Como o senhor avalia a decisão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de SP, que anulou os julgamentos que condenaram 74 policiais militares pelo massacre do Carandiru?

Paulo Malvezzi: É um episódio absolutamente lamentável. Mas, colocando em perspectiva, isso é só uma parte de um processo de irresponsabilidade estatal, de não indenização das famílias, de não responsabilizar os policiais envolvidos na esfera administrativa – tanto que muitos continuam na corporação e outros até promovidos –, e do Estado Brasileiro não ter assumido qualquer tipo de responsabilidade sobre esse evento trágico ou feito qualquer discurso para preservar a memória daqueles que foram vitimados, não ter reconhecido sua responsabilidade naquela ocasião e não ter tomado qualquer providência para que esse tipo de massacre não se repita.

Pelo contrário: todas as condições que proporcionaram a morte dos 111 continuam e foram exponencialmente multiplicadas pelo sistema prisional brasileiro. Em 1992, tínhamos pouco mais de 100 mil presos e hoje já passou de 620 mil presos em condições de absoluta degradação e de violência.

Todas condições que propiciaram aquele massacre continuam presentes e se replicam em outros eventos, como os Crimes de Maio, que mataram mais de 500 pessoas, as chacinas de Osasco, no Cabula – são eventos que só atestam a violência intrínseca do sistema de Justiça Penal.

CC: O relator do processo, o desembargador Ivan Sartori, votou pela anulação e absolvição dos réus. Ele afirmou que “não houve massacre, houve legítima defesa e cumprimento do processo pela PM”. Como o senhor vê esse posicionamento? O que ele diz sobre o sistema de justiça?

PM: É um posicionamento absolutamente repudiável. É mais do que uma leitura equivocada das provas dos autos, é uma tentativa de reescrever a história do massacre do Carandiru, transformando a vítima em algoz. Como se 111 pessoas pudessem ser assassinadas como forma de legítima defesa. É algo completamente absurdo e uma colocação que precisa ser absolutamente repudiada.

Aliás, a decisão da 4ª Câmara de Direito Penal do Tribunal de Justiça de São Paulo é bem simbólica de como os tribunais e a Justiça aplicam a lei. Há um rigor para determinadas populações e um determinado tipo de pessoa, rigor esse que desaparece em outras situações. É absolutamente seletiva a forma como os magistrados decidem nos tribunais e a decisão só deixa isso mais claro.

CC: Há exemplos dessa seletividade?

PM: Há tribunais de justiça, em São Paulo isso acontece muito, e magistrados que condenam pessoas simplesmente com a palavra dos policiais. Em crimes de tráfico de drogas e outras situações, a palavra do policial é o suficiente para fazer a condenação. E, nesse caso do Carandiru, a Câmara entendeu que não havia individualização e atuou de uma forma absolutamente garantista, buscando garantias do processo penal, o que não é ilegítimo. A ausência de individualização não é algo sem importância, mas eles não têm essa preocupação com os demais casos.

CC: Por que o senhor afirmou que existe por parte das entidades públicas, um "acobertamento de massacres" como o ocorrido no Carandiru?

PM: Obviamente que não é algo consciente. Mas há um acobertamento sistemático da violência do Estado pelo Judiciário e pelas demais instituições dos sistema de Justiça, inclusive o Ministério Público. Mesmo nas denúncias de tortura, que acompanhamos aqui pela Pastoral Carcerária, é muito evidente que não é só uma questão de falta de técnica ou vontade. Não há qualquer engajamento da Justiça em fazer apurações sobre os casos, de punir os responsáveis, de responsabilizar na esfera Civil o próprio Estado, de reparar as vítimas.

Há, por uma série de processos e filtros, um acobertamento pelo sistema de Justiça das violações do Estado. Quando os praticantes de crimes são agentes do Estado, dificilmente temos uma produção probatória consistente, a palavra das vítimas e das testemunhas, muitas vezes, não é levada em consideração, provas deixam de ser colhidas... Isso não é uma grande coincidência, é uma prática consistente do sistema de Justiça.

CC: De onde vem essa prática?


PM: Vem da própria estrutura do Estado. O sistema de Justiça Criminal cumpre um papel muito claro de controle de populações específicas. Tanto que 70% dos presos são negros, jovens e pobres. Então é um sistema de Justiça dirigido para o controle de um determinado estrato social.

CC: De 1992 para 2016, o que mudou na postura do poder público com relação à população carcerária? Avançamos, retrocedemos ou estamos no mesmo lugar?

PM: Só de compararmos o número de pessoas presas, de 114 mil presos em 1992 e para 620 mil presos em 2014, segundo dados do último Infopen, isso mostra que a situação não melhorou absolutamente nada.

As condições de aprisionamento continuam péssimas, as denúncias de tortura são absolutamente comuns, há ausência total de serviços públicos essenciais dentro do sistema prisional. Então, não podemos falar que há qualquer mudança substancial no cenário de 1992 para cá.

Obviamente que há um panorama institucional diferente, houve a constituição das defensorias públicas e há hoje um panorama legal distinto, mas a precariedade e as violações de direitos que existiam na década de 1990 permanecem hoje.

CC: As condições de 1992 nas cadeias continuam iguais?


PM: Podemos ter mudado algumas situações e avançado em alguns pontos, mas retrocedemos em vários. Há um panorama um tanto diferente do sistema prisional de 1992 para cá, talvez uma maior profissionalização, mas as violações permanecem senão iguais, piores. 

CC: O debate e o discurso na sociedade sobre o encarceramento e a atuação da polícia também não mudou?

PM: Uma parcela ainda substancial da população acaba embarcando no discurso que desumaniza a pessoa presa. Uma outra parcela tenta fazer reparos pontuais dentro do sistema prisional e na legislação penal. Mas achamos que já passamos dessa fase. Mais do que nunca, precisamos buscar uma política clara e consistente de redução da população prisional, o desencarceramento, e desmilitarizar as polícias e as políticas públicas de segurança.

De fato, chegamos num ponto em que precisamos de mudanças radicais. Precisamos de propostas e projetos que incidam sobre a raiz do problema. E acho que nisso não mudamos nada. Continuamos falando de reformas pontuais, acreditando num sistema penal, acreditando em encarceramento, apesar de que, de lá para cá, a sensação de segurança na população não ter aumentado.

CC: E você vê essas propostas mais consistentes serem colocadas no debate público?

PM: A pastoral tem se engajado nessa discussão junto com outros parceiros. Inclusive, temos a Agenda Nacional do Desencarceramento e da Desmilitarização, que tenta trazer propostas mais substanciais. Mas digamos que poucas dessas propostas permearam as políticas públicas, seja nesse governo, no passado ou no anterior. Então, não, ainda a maioria das políticas públicas trabalha na perspectiva de reformas pontuais que não resolvem o problema.

CC: No que esbarramos na hora de discutir propostas mais consistente? O que impede o debate de avançar?

PM: A primeira coisa que precisamos considerar é que há forças poderosas que se beneficiam e promovem esse tipo de discurso e de visão [conservadora]. Há interesses econômicos e políticos que patrocinam isso. 

E vencer esses interesses é algo muito difícil de se fazer. É um adversário que permeia a mídia, o sistema econômico, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo. Faltam realmente condições de conseguir fazer o enfrentamento adequado a esse tipo de visão e a esses adversários.

CC: Quando há uma decisão como a de terça-feira, que mensagem essa decisão passa para a população e para a polícia? 

PM: Temos receio de falar que é a impunidade que promove esse tipo de prática. Não é uma questão de impunidade, mas do papel do Estado no controle dessas populações, e não tanto uma questão de falta de punição. A grande mensagem que está colocada não é tanto a da impunidade, o que mais assusta é tentar reescrever a história do massacre transformando as vítimas em algozes e legitimando um discurso de legítima defesa.

Então, não foi apenas um argumento técnico penal processual colocado, não foi só uma questão de que não era possível a individualização de conduta, ali, de fato, houve a defesa de que 111 pessoas foram assassinadas em legítima defesa. Essa é a mensagem mais preocupante na decisão do tribunal.

CC: Que limites o senhor enxerga na atuação do Judiciário no sentido de dar uma resposta ou uma conclusão para a sociedade com relação a esse caso?

PM: Não temos nenhuma fé que o Judiciário vá dar uma resposta com relação a isso. Esse é o ponto principal. Se houvesse medidas de responsabilização que transcendessem a esfera penal, acho que seria bastante interessante. É isso: iniciativas sistemáticas de indenização das vítimas, de reconhecimento público do Estado do desse crime que foi cometido, inclusive com pedidos de desculpas e que também se revertessem em propostas concretas de desencarceramento e desmilitarização. O mais importante é que as condições que propiciaram o massacre continuam vigentes.

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