quarta-feira, 28 de setembro de 2016

“MP e Judiciário terão que ser passados a limpo. Não podemos mais fazer o que a gente fez”

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Marco Weissheimer

Membro do Ministério Público Federal desde 1987, subprocurador da República e ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff durante dois meses, Eugênio Aragão é hoje um dos mais duros críticos dos procedimentos adotados pela Operação Lava Jato que, em vários casos, ultrapassaram as fronteiras da legalidade, como foi o caso da escuta da presidenta da República autorizada e divulgada para a imprensa pelo juiz Sérgio Moro. Em entrevista ao Sul21, Eugênio Aragão define a Lava Jato como “uma das operações mais tortuosas da história do Ministério Público. “A gente sente claramente que os alvos são escolhidos. Há delações claras em relação a outros atores que não pertencem ao grupo do alvo escolhido e que simplesmente não são nem incomodados. Em relação aos alvos, a operação chega a ser perversa e contra a dignidade da pessoa humana”, critica.
Para Eugênio Aragão, o Brasil vive uma onda de fascismo maior talvez que a vivida no período da ditadura militar e o Judiciário e o Ministério Público tem responsabilidade por isso: “O Judiciário tem um problema muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência nenhuma e é muito alienado quanto ao déficit de acesso à Justiça que existe no Brasil. Parece que vive em outro mundo”. O ex-ministro acredita que foram cometidos graves erros no recrutamento de atores importantes nas instituições do Judiciário. “A maioria dos ministros do STF têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião pública”, exemplifica.

Aragão critica o discurso que afirma que tudo está podre, tudo está corrupto, assinalando que esse é, historicamente, o discurso de todo governo fascista. E reafirma suas críticas ao juiz Sérgio Moro, dizendo que ele está ultrapassando os limites do Direito Penal. “É uma volta às Ordenações Filipinas, na medida em que expõe as pessoas como troféus do Estado, fazendo-as circular pelas ruas com baraços e pregão para que todo mundo possa jogar tomates e ovos podres em cima delas. Isso é o que ocorria na Idade Média”.

Sul21: Como o senhor definiria o momento político e social que o Brasil está vivendo hoje?

Eugênio Aragão: Nós estamos sentados sobre os escombros daquilo que foi nosso sonho de construir um estado democrático de direito inclusivo, socialmente justo e solidário. Temos que pensar com toda a seriedade as causas disso que aconteceu e não nos perdermos apenas na denúncia do golpe, que de fato ocorreu. Na última semana, o presidente Temer confessou com todas as letras que o afastamento da presidenta Dilma não se deu por razões de crime de responsabilidade, mas sim para forçar uma mudança de programa de governo. Essa declaração é de um caradurismo enorme, pois a presidenta Dilma foi eleita em uma campanha da qual ele fez parte. Ele não pode querer derrubar a presidente para impor um novo programa que nem diz respeito aquilo que a maioria dos eleitores aprovou.

"O Judiciário tem um problema muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência nenhuma". (Foto: Agência Brasil)
“O Judiciário tem um problema muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência nenhuma”. (Foto: Agência Brasil)

Não se trata de uma questão de ter simpatia ou não por Dilma, mas sim de ter consciência e entender a seriedade do que está por vir aí. Parece que a maioria da população brasileira está num estado de torpor e de estupefação em função da rapidez dos acontecimentos, e não está entendendo direito o que aconteceu e está acontecendo. Penso que é muito importante fazermos essa reflexão sobre onde erramos, para permitir que essas pessoas que hoje estão no poder assaltassem a democracia do jeito que assaltaram.

Sul21: O senhor já tem algumas hipóteses acerca da natureza desses erros?

Eugênio Aragão: Acredito que há um leque de erros que até são normais. Quem está governando, principalmente quando governa sob forte pressão, está olhando para a sobrevivência diária e, muitas vezes, acaba perdendo a noção do conjunto de uma crise desse tamanho. Acho que, entre outras coisas, houve escolhas erradas de pessoal e uma articulação muito falha com o parlamento. Acredito também que poderíamos ter feito muito mais para atender os movimentos sociais. Houve muita decepção por parte de alguns desses movimentos, como o movimento dos sem teto. Eles assistiram durante as obras da Copa e das Olimpíadas uma verdadeira tragédia de retirada de bairros inteiros de população de baixa renda. Esse processo de gentrificação urbana atingiu a população mais pobre em praticamente todas as capitais. Aqueles que mais deveriam tirar vantagem desses eventos internacionais acabaram sendo os maiores prejudicados. Esses erros acabaram diluindo um pouco a nossa base de apoio.

Sul21: Além desses erros nas esferas do Executivo e do Legislativo, não houve também uma mudança expressiva no comportamento do Judiciário que contribuiu para o agravamento do processo da crise?

Eugênio Aragão: O Judiciário tem um problema muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência nenhuma por mais que se gabe de disponibilizar suas decisões na internet. O importante não é publicar a decisão, mas sim o processo pelo qual se chega a ela. E este processo não está disponível na internet. Não aparece o advogado prestigiado em Brasília que pode colocar a mão na maçaneta dos gabinetes dos ministros, entrar e falar com tapinhas nas costas, coisa que advogados, digamos, menos aquinhoados do Rio, São Paulo e outras cidades não podem fazer. O Judiciário é muito alienado quanto ao déficit de acesso à Justiça que existe no Brasil. Parece que vive em outro mundo.

Isso também tem muito a ver com as escolhas pessoais. Acho que foram cometidos graves erros no recrutamento de alguns atores. Nós deixamos que fossem para o Supremo e para o STJ as pessoas que melhor sabiam fazer campanha junto a políticos, aqueles que melhor sabiam chegar perto do círculo de poder central para vender o seu nome. Eu tenho uma ideia sobre isso que já externei para a presidenta Dilma. O candidato ideal a um cargo destes não é aquele que está numa verdadeira maratona para ser indicado. A pessoa que quer muito essa indicação quer muito também por uma questão de vaidade para o seu currículo pessoal. É como se o cargo acabasse sendo uma cerejinha glacê em cima do chantili do seu bolinho. A pessoa que tem esse perfil, quando é submetida a uma pressão muito grande da opinião pública, por ser alguém que naturalmente gosta de ser vista bonita, tem medo de queimar o filme dela. Em função disso, tem uma dificuldade enorme de ser contra-majoritário, de não ceder a esses apelos das ruas e apelos midiáticos.

É uma questão de escolha. O ministro ideal para ser escolhido é aquele que você liga para ele dizendo que pensou no nome dele para ser ministro do Supremo Tribunal Federal, perguntando se aceitaria e ele responde pedindo dois ou três dias para refletir e conversar com a família. Esse é o candidato ideal. Ele não estava batalhando para ser indicado, não queria achar uma cerejinha para o seu currículo, mas sim querendo ver o problema em toda a sua extensão. Ir para um lugar como aquele não é uma festa, não é um congraçamento ou um galardão, mas é ir para uma trincheira de uma batalha política. Uma batalha para manter íntegra essa República.

"A maioria dos ministros do Supremo têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião pública". (Foto: Divulgação/STF)
“A maioria dos ministros do Supremo têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião pública”. (Foto: Divulgação/STF)

O meu nome foi cogitado, por duas vezes, para ir para o Supremo. Eu tinha um receio muito grande em aceitar, pois não estava vendendo uma ideia pessoal. Nestas duas ocasiões, eu não estava me vendendo como ministro, mas sim me colocando apenas como uma opção entre várias outras para tentar fazer algo de diferente. Mas eu nunca fiz campanha mesmo, não fui visitar deputados, senadores ou ministros. A única coisa que fiz foi uma conversa na Casa Civil com pessoas que eu conhecia. Coloquei meu nome à disposição, mas nunca considerei uma possível indicação como um destino da minha vida. Eu nunca tinha pensado nesta possibilidade até que o doutor Rodrigo Janot, quando de sua campanha para Procurador Geral da República, veio com essa história para mim. ‘Eugenio, por que é que você não tenta ir para o Supremo Tribunal Federal’, disse-me. Na ocasião, eu pensei em duas coisas. A primeira foi: será que esse cara está tentando se livrar de mim? Conversei com algumas pessoas que me disseram: ou você se coloca ou as pessoas que não têm as suas qualidades vão se colocar. E fui conversando com algumas pessoas que eu conhecia, mas sem fazer campanha.

Sul21: Isso foi em que ano?

Eugênio Aragão: Foi quando a vaga foi ocupada pelo Luís Roberto Barroso e, depois, pelo Edson Fachin. Foram as duas vagas para as quais o meu nome foi cogitado pelo governo. Por razões distintas, acabei não indo, mas isso não vem ao caso. Nunca me senti depreciado por isso. Pelo contrário, continuei cooperando com esse projeto político porque acreditava nele. Para mim, não se tratava de uma questão de ir ou não ir para o Supremo ou de um projeto pessoal. Isso não mudou nada na minha relação com o governo. Na época, quando os dois nomes foram indicados eu falei para as pessoas que estavam me apoiando que eram excelentes nomes. Não fiquei com nenhum tipo de mágoa ou ressentimento por conta disso, o que acontece muito com pessoas que achavam natural que fossem escolhidas e isso acaba não acontecendo.

A verdade é que esse sistema cria naturalmente uma dinâmica de grupo no Supremo, com ministros que têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião pública. São pessoas que sempre gostaram disso e que construíram um currículo onde o Supremo Tribunal Federal é o ápice. Isso é muito comum. Muita gente vai fazer doutorado para coroar o seu currículo. Doutorado não é coroa de nada, mas sim é uma porta pela qual você entra no mundo da pesquisa acadêmica. O doutorado não tem nenhum significado para efeito de embelezamento do currículo. Até porque, em dois ou três anos, a linda tese que você escreveu provavelmente vai estar superada e ninguém mais vai querer ler. O que é importante é o que você vai fazer com o seu doutorado em termos de pesquisa e ensino. É para isso que ele serve e não para você sentar em cima de sua glória.

Para mim, o mesmo se aplica no caso do Supremo. O importante não é ir para o Supremo, mas sim o que você faz com isso. Você vai ser apenas mais um, acompanhando a manada do povo que está irado no estouro para fora do seu cercado, ou você vai querer realmente fazer diferença e assumir posições que, às vezes, podem até te deixar mal com a opinião pública, mas que você acredita serem profundamente justas dentro da sua consciência. O ministro Marco Aurélio, que nem foi escolhido pela presidenta Dilma, é hoje uma das pessoas mais autênticas dentro do Supremo. Tem o Teori também, que é uma pessoa de grande caráter e de um trabalho sólido em termos de magistratura. Mas o ministro Marco Aurélio realmente quer fazer diferença. Ele pouco se lixa em ser minoria, o que ele quer é fazer aquilo que a consciência dele manda. É um excelente magistrado. Ainda bem que o Supremo tem pessoas como ele.

Sul21: O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em um recente artigo, definiu o que se passou no Brasil, do ponto vista jurídico, como o triunfo de Carl Schmitt (da ideia da primazia do soberano) sobre Hans Kelsen (que defende o controle judicial da Constituição). O senhor concorda com essa leitura?
"Para Carl Schmitt, vale a revogação da lei. A soberania schmittiana é uma soberania da violência".
“Para Carl Schmitt, vale a revogação da lei. A soberania schmittiana é uma soberania da violência”.

Eugênio Aragão: Com certeza. Eu citei Carl Schmitt várias vezes nos últimos tempos para falar sobre o que está acontecendo no país. Para ele, a soberania de um Estado se consubstancia no poder que esse aparato tem de revogar as suas próprias leis e de criar o Estado de Exceção. É no Estado de Exceção que o poder nu e cru – aquele monopólio da violência pelo Estado – melhor se manifesta. A soberania schmittiana é uma soberania da violência. Já em Kelsen, a ideia de soberania repousa sobre a prevalência da lei. Para Schmitt, vale a revogação da lei enquanto que, para Kelsen, vale a prevalência da lei. Kelsen tem alguns problemas de excessivo formalismo, mas a lei é a representação da vontade popular, da vontade política da nação, construída através de um sistema democrático que escolhe aqueles que são os legisladores. A soberania é a nossa capacidade de escolher aqueles que darão curso à vontade da maioria política da nação, sem deixar de respeitar a posição das minorias. Isso no Brasil desapareceu. Hoje, há um total desrespeito em relação ao que foi acertado na eleição de 2014, vencida pela presidenta Dilma.

Por mais que a diferença tenha sido pouco, Dilma venceu o segundo turno e esse projeto era o da maioria da nação. A imprensa sempre representou a presidenta Dilma de uma forma caricata. Mas quem a conhece, quem trabalhou com ela, sabe que ela é uma pessoa preocupada, carinhosa e solidária. Ela tem uma série de virtudes que a mídia nunca apresentou. O que interessava era apresentar uma pessoa histriônica. A presidenta Dilma é uma pessoa muito determinada e firme. Por vezes, ela expressa a opinião dela com uma firmeza que pode chegar a ser entendida por alguns como uma rudeza. Mas isso é o modo dela. Todos nós temos os nossos modos. Se as manifestações do ministro Gilmar Mendes não forem rudes, o que é rude afinal? E alguém dessa grande imprensa já representou o ministro Gilmar como uma pessoa histriônica e rude?

Escolheram a mulher Dilma Rousseff para ser a histriônica. É uma imagem falsa que as pessoas fazem dela. Ela não é isso, não. É apenas uma pessoa muito firme. E ainda bem que é firme porque diante de tanta chantagem, da qual foi vítima, para fazer coisas erradas, ela nunca cedeu. Desde o início do governo dela em 2010, ela botou para correr todo mundo que ela viu que estava ali querendo se dar bem e não para atender o interesse público. Nós perdemos muito em qualidade de governança. Naquele triste dia de 11 de maio, quando ela saiu e entrou o novo governo, a diferença era gritante. De um lado, a saída da Dilma com as lágrimas de gente de todas as origens, de índios, sem terra, pessoas de classe média. Depois, entrou aquele grupo de urubus, homens brancos e velhos vestidos de preto, assumindo aquele palácio como se fossem donos dele, coisa que eles não eram, pois o afastamento da Dilma era provisório.

Eles não levaram um minuto para começar a destruir todo o legado que pudessem encontrar do PT. E o fizeram de forma perversa e grosseira. Forçaram a porta, entraram e, de dedo em riste, foram dando esporro na população inteira, dizendo que tudo estava errado e que iam mudar tudo para implantar um Estado mínimo. Um Estado mínimo só serve para quem tem dinheiro. Para quem tem plano de saúde particular e os filhos em escolas privadas o Estado mínimo não significa grandes mudanças no estilo de vida, Mas a grande maioria dos brasileiros e das brasileiras precisa do Estado para que os filhos vão à escola, para que possam ter um atendimento de saúde, para que possam minimamente ter um transporte decente, para que possam ter alguma esperança de, algum dia, ter um teto melhor sobre suas cabeças e talvez um emprego mais digno. Essas pessoas precisam de um Estado que faça políticas sociais, sim.

Para esses homens ricos de cabelo branco e ternos pretos que estão lá agora os programas sociais não valem nada, não lhes dizem respeito. Eles têm uma completa falta de sensibilidade em relação a isso. Talvez não avancem o quanto gostariam de avançar, porque sabem que são ilegítimos e tem medo da reação popular. Se dependesse deles revogariam até a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional. Mas eles vão tentar fazer isso progressivamente, como quem toma sopa quente pelas bordas. Não tenha dúvida disso.
"Esse é o golpe do 171. O que estamos vivendo hoje, antes de mais nada, é o golpe do 171, do engodo". (Foto: Beto Barata/PR)
“Esse é o golpe do 171. O que estamos vivendo hoje, antes de mais nada, é o golpe do 171, do engodo”. (Foto: Beto Barata/PR)

Sul21: Na sua opinião, o país está vivendo hoje um estado de exceção?

Eugênio Aragão: Não sei se é um estado de exceção. Acho que é muito mais um estado de engodo. Um estado de exceção significa que as leis, por conta de um risco iminente à segurança e ao bem estar de todos, podem ser suspensas temporariamente. Não é disso que se trata. Nós estamos vivendo um estado de engodo que quer se perpetuar. A palavra golpe tem diversas acepções. Ela pode significar a derrubada de um governo pela violência, através de uma ruptura constitucional. Mas a palavra golpe também se aplica aquela pessoa que perdeu dinheiro investindo num terreno que não existe. Esse é o golpe do 171. O que estamos vivendo hoje, antes de mais nada, é o golpe do 171. Houve a tentativa de se mimetizar um impeachment por crime de responsabilidade quando todo mundo sabia que não era essa a causa e se comportou de forma extremamente hipócrita.

Houve a tentativa de dizer que tudo está podre, tudo está corrupto, o que, diga-se de passagem, é o discurso de todo governo fascista. Hitler, quando assumiu o poder na Alemanha, também disse que a República de Weimar era corrupta, podre e acabava com a pureza dos alemães. Mussolini, quando assumiu, também chegou lá prometendo combater a corrupção da monarquia. Em 1964, aqui no Brasil, foi o mesmo discurso. Dizia-se que Juscelino e Jango tinham “assaltado o país”. E agora eles vêm com esse discursinho de novo com a agravante de que ele é sustentado por uma casta burocrática altamente remunerada, oriunda dessa mesma classe média masculina que tomou conta do país, que elabora teorias de sua cabeça a respeito de organizações criminosas com núcleo disso e núcleo daquilo. Elaboram constructos mentais para divulgar a ideia de que está tudo dominado.

Esses sujeitos estão deixando se usar. Esse discurso do combate à corrupção serve muito bem para quem quer desconstruir a legitimidade de um governo, mas na hora em que essa legitimidade está desconstruída, tudo o que se quer é fazer sumir qualquer tipo de ação contra a corrupção. Por quê? Porque a corrupção é um crime de controle, ou seja, é um crime que só aparece quando você investiga. Agora, o novo governo vai fazer de tudo para cortar as asas das investigações. No fundo, o Ministério Público, ao aceitar ser instrumento dessa turma, deu um tiro no pé, pois está se enfraquecendo. Isso vai ser mais rápido do que eles pensam. Esse discurso do combate à corrupção é para convencer gente de dois neurônios.

A corrupção existe em todos os países, em alguns mais, em outros menos. O que cria a corrupção não é a ganância das pessoas, como afirma o discurso moralista, mas sim os gargalos disfuncionais dos processos administrativos. Quando é difícil você obter um resultado que você quer na sua relação como administrado com a administração, você tende a querer facilitar esse processo ou a criar algum tipo de atalho por meio da distribuição de benesses para os funcionários. Isso é uma forma de descarregar esse processo administrativo pesado. Há economistas que sustentam que, às vezes, para o desenvolvimento de um país, a corrupção pode ser até benéfica, caso o Estado em questão seja organizado de uma forma tão pesadamente burocrática que seus processos de fiscalização e controle emperram toda a economia.

Para você acabar com a corrupção, é preciso identificar onde estão esses gargalos e tratá-los com transparência, impondo uma política de compliance (agir em sintonia com as regras) clara para a administração. Além disso, é preciso acabar com as brigas corporativas que dificultam a vida do administrado. Essa briga, por exemplo, envolvendo Ministério Público, Polícia Federal, Receita, Defensoria Pública, Ibama e outros órgãos faz com que o Estado acabe dando ao administrado ordens controversas e contraditórias, deixando-o sem saber para onde andar. Esse problema deve ser enfrentado de forma racional, com a cabeça fria, e não fazendo da corrupção um crime hediondo, o pior de todos os crimes porque toma o que é nosso, etc., etc. Esse discurso só serve para você estigmatizar pessoas e arrumar um bode expiatório. Nenhuma sociedade fica bem dentro de um conflito desses em que você qualifica algumas pessoas como impuras e outras como puras.

O Ministério Público está se achando a pureza em pessoa, quando a gente sabe que aqui as coisas não são bem assim. A Corregedoria enfrenta enormes dificuldades. Na época em que fui corregedor só levava bola nas costas com os malfeitos de colegas. Aqui tem tudo, menos santo. Somos pessoas como quaisquer outras, com nossas virtudes e nossos vícios, mas aqui as pessoas se acham acima do bem e do mal, podendo colocar o seu dedo indicador acima das pessoas. Isso não resolve nada, apenas cria tensão social, mal estar, ira e até violência entre as pessoas, inclusive dentro das famílias. Infelizmente é isso que está acontecendo no Brasil. A culpa por isso é desse tipo de atitude.

O fascismo se caracteriza pelo uso de argumentos extremamente simplórios que parecem intuitivos, para pessoas de pouca inteligência. É desse tipo de argumento que o fascismo se utiliza: “todo o judeu é explorador”, “todo índio é preguiçoso” e coisas do tipo que vêm acompanhadas por falácias enormes de modo a que pessoas desprovidas de inteligência possam cair nesta farsa. O fascismo mobiliza para a violência, ele mobiliza as pessoas para fora do seu normal. Ele é essencialmente mau e perverso. Nós estamos vivendo uma onda de fascismo que talvez não tenhamos visto nem na ditadura militar.
Juiz Sérgio Moro recebendo prêmio de Jornal Roberto Marinho, dirigente do Jornal “O Globo”: "ele está ultrapassando os limites do Código do Processo Penal", diz Aragão.
Juiz Sérgio Moro recebendo prêmio de Jornal Roberto Marinho, dirigente do Jornal “O Globo”: “ele está ultrapassando os limites do Código do Processo Penal”, diz Aragão.

Sul21: O senhor tem sido um crítico de vários procedimentos adotados pelo juiz Sérgio Moro e vários procuradores da Operação Lava Jato, como ocorreu recentemente com a denúncia apresentada pelo procurador Deltan Dallagnol contra o presidente Lula? Como o senhor definiria o atual estágio da Lava Jato?

Eugênio Aragão: A Lava Jato é uma das operações mais tortuosas da história do Ministério Público. A gente sente claramente que os alvos são escolhidos. Há delações claras em relação a outros atores que não pertencem ao grupo do alvo escolhido e que simplesmente não são nem incomodados. Em relação aos alvos, a operação chega a ser perversa e contra a dignidade da pessoa humana. Utilizar-se da condução coercitiva quando não há resistência é de uma violência inominável. Não adianta usar esse argumento cretino de que isso é feito para evitar prévia combinação de depoimentos entre os intimados. Se eu sou intimado na fase pré-processual, posso até calar a boca e voltar para casa. Se eu quiser, em casa, combino com o resto e volto para a polícia. A condução coercitiva não impede combinação de depoimento. Isso é uma lenda urbana que o juiz Sérgio Moro criou. Mas isso não consegue esconder que ele está ultrapassando os limites do Código do Processo Penal. Neste código, a condução coercitiva só é prevista para aquele que resiste em comparecer depois que foi intimado.

Pior ainda são as conduções coercitivas feitas com a presença da imprensa que é convocada para o ato, expondo as pessoas. É uma volta às Ordenações Filipinas, na medida em que expõe as pessoas como troféus do Estado, fazendo-as circular pelas ruas com baraços e pregão para que todo mundo possa jogar tomates e ovos podres em cima delas. Isso é o que ocorria na Idade Média. Não fazemos mais isso. O Estado tem que ser tímido e recolhido quando ele usa o Direito Penal porque ele não sabe se está realmente certo de que está fazendo Justiça ou não.

Sul21: Dentro do Ministério Público, além da sua voz que tem sido bastante enfática nesta crítica, há uma resistência maior em relação a esses procedimentos?

Eugênio Aragão: Há outras pessoas que pensam como eu. Pelo fato de eu ter sido ministro da Justiça durante os dois últimos meses do governo Dilma e de antes de ter sido vice procurador geral eleitoral, minha voz acaba soando mais forte. Mas a grande maioria do Ministério Público hoje acha que a Lava Jato é a última Coca Cola do deserto. Na última semana, o Conselho Nacional do Ministério Público, que é o órgão de controle da nossa atividade, premiou a Lava Jato. E se eu me queixar da Lava Jato para um órgão que previamente premiou essa operação, como é que fica? Como é que um órgão de controle pode premiar uma operação que está sob severa crítica pública? Qual a isenção que esse órgão terá na hora que precisar avaliar representações contra a Lava Jato, se ela já foi premiada? As pessoas estão perdendo o senso de limite.

Sul21: O senhor referiu em vários momentos o papel da mídia neste processo envolvendo a derrubada da presidenta Dilma e a Operação Lava Jato. Como definiria esse papel?

Eugênio Aragão: A grande mídia comercial brasileira depende muito das verbas publicitárias dos governos. Essa mídia comercial está cartelizada politicamente. Agora estão com o tom de levantar a bola para o governo Temer fazer o gol e de seguir satanizando o PT e o que significaram os governos Lula e a Dilma para o Brasil. A nossa sorte hoje é que muitas pessoas estão deixando de ler esses jornais. Na minha casa, não entra nem Folha de São Paulo, nem Estadão, Globo ou Correio Braziliense. Eu me informo através da internet que traz uma enorme variedade de acessos à informação. Além dos chamados “blogs sujos” eu posso ler a imprensa estrangeira. Tenho a opção de ler artigos sérios. Para quem tem algum tipo de discernimento, a opinião de jornais como Folha, Estadão e Globo não tem o peso que tinha antigamente. Tanto é assim que esses jornais estão todos atravessando uma crise financeira violenta. Eles não servem mais nem para se informar sobre coisas básicas. Se eu quero saber se uma determinada loja abre no fim de semana, eu busco essa informação pela internet.

Sul21: Ainda sobre a Lava Jato, há quem relacione essa operação hoje a interesses de empresas e mesmo governos de outros países em riquezas como a do pré-sal. Na sua avaliação, há uma espécie de dimensão geopolítica nesta operação?

Eugênio Aragão: Não sei. Eu acredito que o Ministério Público pode estar sendo usado, mas o Ministério Público é tão endógeno na sua visão, tão perdido em cima do seu próprio umbigo que não sei nem se tem inteligência para isso. Eles podem estar sendo usados, sabendo ou não sabendo. Não existe gente preparada em Curitiba com essa estratégia toda para bolar uma coisa dessas.

Sul21: E quanto ao juiz Sérgio Moro?

Eugênio Aragão: Também não acredito que ele tenha capacidade para isso. O juiz Sérgio Moro é uma pessoa extremamente vaidosa que encontrou um nicho para se exibir à sociedade brasileira. Isso faz parte de um projeto pessoal. Ele gosta de ter essa cara de mau, de um sujeito inabalável nas suas convicções, um verdadeiro inquisidor mor. Ele adora fazer esse papel. Mas esse é um problema que ele tem que resolver com o seu psicólogo.

Sul21: Diante desta conjuntura, qual cenário de futuro é possível prever?

Eugênio Aragão: Eu acredito que, depois que essa crise amenizar, o Ministério Público e o Judiciário terão que ser passados a limpo. Não podemos mais fazer o que a gente fez. Isso colocou o país de cabeça para baixo. Quase um milhão de empregos já foram perdidos nesta crise. E os desempregados não são os procuradores da República nem os juízes federais. Você faz uma operação desse porte, destruindo a economia e está pouco se lixando com o que acontece porque o seu está garantido no final do mês. Só que se a economia quebra, o Estado também quebra e aí o Estado não vai mais pagar a eles o que eles acham que valem. Isso precisa ser repensado urgentemente. O corporativismo mata a governabilidade no Brasil.

Sul21: Mas será possível que o Ministério Público e o Judiciário se repensem a si mesmos?

Eugênio Aragão: Não sei, não sei, mas se tiver uma Constituinte, a gente repensa, não é?

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