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Todo fascista é, antes de tudo, um medíocre. Mas considera esta constatação uma afronta — e reage violento. Evitar que esta passionalidade torne-se perene é um dos desafios centrais de hoje
Por Fran Alavina | Imagem: Gerardo Dottori, Retrato de Mussolini (1933)
Não é apenas um golpe. Não é somente a sanha neoliberal que transformada em logística estatal precariza o trabalho e transforma direitos em bens de consumo. É tudo isso, mas além da faceta golpista e neoliberal há também o caráter fascista. O mais horrendo dos três âmbitos, com certeza. É golpe; é a volta do neoliberalismo ao poder; e, é também o começo da institucionalização de práticas fascistas. Aí reside a diferença com momentos anteriores: na perigosa passagem do campo da prática e do pensamento privado para o âmbito público da institucionalização.
Assim considerar, é não subestimar a História, pensando que ela se dá como em terreno plano, sem buracos, sulcos e depressões de superfície. Ela não é nem plana, nem linear. O próprio acontecimento do golpe nos mostra isso: quando se passou que o golpe político era uma prática do passado, ele retornou com toda força, emergindo no seio de uma jovem democracia que passava pela sua mais longeva fase de ampliação de direitos e redução de desigualdades. Por isso, nesse momento em que precisamos dimensionar o acontecido, sob os mais diversos aspectos, não se pode acreditar ingenuamente que práticas como o golpismo, o neoliberalismo e o fascismo para que possam prosperar sejam excludentes no campo da ação. Como se cada um desses âmbitos aguardasse na fila a hora de suas respectivas senhas. Ao contrário, provados e forjados em um passado recente, esses âmbitos se integram, ganhando maior vitalidade, pois não avançam isoladamente.
Desse modo, abre-se um precedente extremamente perigoso, um vácuo de sentido político que não pode ser subestimado. Uma vez que se vislumbra o risco de se criarem as condições para o surgimento de algo pior. O atraso e o conservadorismo sempre podem ser apresentados como vanguarda. Desde que além das condições materiais exista uma passionalidade coletiva que lhes sustentem subjetivamente. Ora, tal núcleo de sustentação subjetiva e pública é a formação de uma massa perene que se aglutina em torno não de um princípio de ação comum, de um programa estratégico, de um partido, de um movimento social uniforme, ou em prol de uma causa política particular, mas sim em torno de um sentimento: compartilhado e forte. É o campo passional que pode formar um laço uniforme de agregação, quando a massa que se formou não apresenta fortes liames internos de reconhecimento. Nesses casos, a paixão precede a razão, e a impede de operar, de modo que tudo tem que estar remetido ao campo afetivo-sentimental. A paixão torna-se a própria razão de ser dos gestos, das falas e dos atos. Se de nosso lado, dizemos que preponderou o ódio e o ressentimento; do lado de lá, a narração sempre tomava como ponto de partida a suposta existência de um grande sentimento de “indignação”. Se este era ou não o sentimento, o fato é que a razão tornou-se uma minúscula ilha cercada em todos os lados por um oceano de passionalidades. E não se tratava de qualquer passionalidade, era, e ainda é, uma passionalidade violenta, que não enxerga limites entre a civilidade e a barbárie. Uma passionalidade que por ser coletiva não se contenta com compensações individuais. Ela quer um grande espetáculo, que só o circo político-midiático, isto é, que só o real, contado na forma e com os recursos da imaginação, pode oferecer. É justamente o vínculo sentimental que faz com nas manifestações pró-golpe, se encontrem juntos em um mesmo espaço: torturadores, defensores da ditadura militar, monarquistas, integralistas, separatistas, e pessoas que dizem apenas querer mais democracia. Por isso, se por um lado, agora se inicia a fase da resistência ao golpismo, também não se pode deixar que essa massa pró-golpe eivada de passionalidade violenta se torne uma massa perene. Uma vez tornada perene, ela não apenas se apresentará como um dos núcleos de sustentação do golpe, como também fará com que o golpismo e o neoliberalismo sejam coisas pequenas, pois haverá um núcleo forte de sustentação coletiva do fascismo, que se tornará mais escancarado que agora. Como não deixá-la torna-se perene, esta massa da passionalidade violenta? Eis uma questão urgente, e que pensamos, pode começar com um diagnóstico e desnudamento de uma característica intrínseca ao ser fascista: amediocridade.
É típico do ser fascista a mediocridade. Não há fascista que não seja, antes de tudo, um medíocre. Porém, não basta apenas ser, é preciso se identificar como tal. É na passagem entre “ser” e “se reconhecer como isto que se é” que o proto-fascista emerge violentamente. Pois, ele não quer ser chamado pelo o que é. Na verdade, considera a constatação de seu ser uma afronta pessoal, um desaforo. Veja-se o caso do interino que se tornou permanente: ele não quer ser chamado pelo que é: GOLPISTA.
O modo fascista de esconder sua mediocridade inerente apela sempre ao mundo da cultura, do conhecimento formal, das belas artes e das letras. Em outros termos, apela-se à erudição e ao gosto artístico de um certo bom fruidor. Continuemos, então, com o mesmo exemplo, porém outro caso. O caso do elogio das mesóclises, algo que qualquer um satisfatoriamente alfabetizado pode realizar. Somente alguém muito medíocre para ostentar um simples recurso discursivo como símbolo de distinção; e, somente outro medíocre o aplaudiria por isso. Dir-se-ia, no adágio da sabedoria popular, que compreende a natureza das relações sem precisar de mesóclises: “não sem motivo um gambá cheira outro”. Talvez o gosto das mesóclises seja um ato falho do inconsciente medíocre, que sempre o remete ao seu lugar natural: o meio. Mas, continuemos ainda com o mesmo exemplo personalizado, e em um caso semelhante. O bom gosto estético é desprovido de qualquer relação de caráter moral: o belo e o certo não são configurados sem qualquer laço de reciprocidade. Não esqueçamos, os fascistas históricos eram grandes admiradores das artes. No caso de agora, o ex-interino, que além de um amante das artes é também poeta (pelo menos é o que dizem) propõe a esdrúxula medida da redução dos gastos públicos por 20 anos, um medida não apenas cruel, mas desumana. Como nos fascistas de ontem; nos fascistas de hoje, a maldade e a beleza podem conviver lado a lado, sem maiores dificuldades.
Ademais, passando do campo do estético ao ético, veja-se que o fascista para esconder o vácuo do valor moral de suas ações, vácuo causado pela mediocridade, remete o fundamento de suas ações, não apenas aquelas de fórum privado, mais principalmente as ações feitas na esfera pública, à Deus e à família. Medíocre que é, o fascista não se responsabiliza por suas próprias ações. Caso mais exemplar disso pode ser medido na ínclita professora e egrégia advogada do golpe, que muitas vezes nos aparece como uma personagem tragicômica de uma bufa encenação barroca. Gesticulando como o rábula da província: sempre a defender ou acusar, pois vê em toda oportunidade de fala a chance de um cliente novo. Certamente, sua gesticulação (não podemos esquecer que o gesto é um dos signos mais expressivo que os fascistas se utilizam) cinicamente passional, que vai da aparente temperança ao fingindo furor em um átimo, como se sempre estivesse perante um júri de tribunal, é a expressão máxima de sua faceta fascista que se alinha perfeitamente ao discurso. Gesto e palavra se unem para dar a forma dos atos. Mas, é no conteúdo do discurso que se confirma a forma. Quando na tribuna do senado ela atribuiu à Deus a “formação de um complô”; e, depois disse que fazia tudo aquilo por “seus netos”.
Ora, para o fascista, o fundamento da ação nunca pode está no sujeito (lembremo-nos do funcionário nazista que dizia apenas cumprir ordens), porém sempre no além de si mesmo: no espaço transcendente da deidade, ou no lugar temporal do futuro familiar. O fundamento não pode estar no sujeito, pois este está no meio, no meio está a mediocridade, e esta nunca pode ser arrolada como princípio da ação honrosa. Não pode passar despercebido que justamente uma advogada não reclame como princípio de sua ação a Lei. Perceba-se, pois, que não estamos mais no campo da política, uma vez que a Lei, ou até mesmo um falso legalismo, não é chamado como critério de justificação das ações. Tal, não é senão o fascismo na sua essência conteudística e na sua forma retórica. O abandono da esfera política, uma vez que o fascismo é a negação da política, se recorre a duas esferas, que são consideradas por princípio fora da regulação política:Deus e a família. Estão, pois, formados os círculos concêntricos das justificações morais do fascista, que nas perversidades que justificam se assemelham muito aos círculos do inferno de Dante. O desejo megalomaníaco do fascista é diretamente proporcional à sua mediocridade. Logo, a advogada do golpe afirmar após o desfecho dos ritos legais que o medíocre (tão medíocre, que tem medo de vaias) está em “dívida” com ela. Como o rábula da vila, após o fim exitoso do processo, se apressa em cobrar a fatura. Todavia, não se trata de uma dívida qualquer: ele, o medíocre letrista das mesóclises, dever ser, segunda sua credora: “o melhor de todos os presidentes”. Mas, como pode alguém medíocre ser o melhor de todos? Só mesmo um outro medíocre, para esperar que da mediocridade nasça grandeza. No reino escuro das mediocridades até quem tem um olho é cego.
Nesse sentido, o golpe, por seu caráter fascista, quando desnudado, não é outra coisa que o elogio da mediocridade. Mediocridade dos que o fizeram, mediocridade dos que o aplaudem. Caso você se oponha ao reconhecimento da mediocridade, e ousar dizer que o medíocre não é aquilo que diz ser ou não ser, mas sim àquilo que é, medíocre, não espere outra coisa que a violência. Medíocres não gostam de ser contrariados. Fascistas de ontem, fascistas de hoje: violentos, pois sempre medíocres.
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