Usaram todos os recursos ilegítimos que se pode imaginar para legitimar a vingança de Macri contra Sala e para processar Lula no Brasil.
Raúl Zaffaroni, para o Página/12 * // www.cartamaior.com.br
Por sorte, ainda não perdi a capacidade de assombro, e por isso voltei a experimentá-la, com a leitura de uma sentença que ocorreu recentemente no Brasil, tomada pelo Tribunal Federal Regional da 4ª Região, na que se diz, textualmente, que a Operação Lava Jato é um caso inédito, único e excepcional no direito brasileiro, e que, como tal, enfrentará situações inéditas, que fogem das regras do processo comum, e que, por isso, são permitidas exceções às normas que estabelecem garantias constitucionais, como as que proíbem grampear comunicações telefônicas sem as precauções legais.
A excepcionalidade foi o argumento legitimante de todas as ações inquisitórias ao longo da História, desde a caça às bruxas até os nossos dias, passando por todos os golpes de Estado as conseguintes ditaduras. Ninguém nunca exerceu um poder repressivo arbitrário no mundo sem invocar a “necessidade” e a “exceção”, e também seja verdade que todos afirmaram hipocritamente que atuavam legitimados pela urgência de salvar valores superiores, diante da ameaça de males de extrema gravidade.
Assim, Carl Schmitt destruiu a constituição de Weimar, hierarquizando suas normas e argumentando que o princípio republicano permitia, em situações excepcionais, ignorar todas as demais normas. Embora esse seja um raciocínio perverso para legitimar o poder ilimitado do Führer, ao menos invocava o princípio republicano – que, por certo, pouco ou nada interessava efetivamente.
Até aqui, há motivos de crítica e repúdio, mas não de assombro, que é justamente o que causa a sentença que lemos. Este último nasce do fato de que não se observa o trabalho de invocar nenhum valor superior, nem de inventar alguma emergência grave, senão que diz, diretamente, que se pode ignorar a Constituição quando é necessário, para aplicar a lei penal em casos que não se considerem “normais”.
O assombro que experimentamos diante desta sideral sinceridade revanchista, que se dissemina por toda a nossa região, passando por cima dos mais elementares limites do direito, sem sequer se dar ao trabalho que Carl Schmitt tomou e seu tempo.
A sentença brasileira não é um fato isolado, e merece um lugar no álbum dos maiores absurdos jurídicos. Desta coleção, os argentinos ganharam várias novas figurinhas durante este ano.
Assim, vemos que também é por ser “excepcional”, que se faz “necessário” nomear dois ministros da Corte Suprema por decreto, destituir a Procuradora Geral e suprimir a independência do Ministério Público e submetê-lo a um órgão político, destituir os juízes “da roda presa”, estigmatizar um movimento de juízes com o argumento de “desratizar” o Poder Judiciário, criminalizar a política monetária – e, ao mesmo tempo, se enriquecer com uma mudança abrupta –, entre outras coisas.
Obviamente que, por muito que se negue, não se pode ocultar o afã revanchista que, em alguns casos, leva a perder a calma e a exigir argumentos jurídicos, que não se esgrimem porque parece que já não resta criatividade perversa, ou talvez porque se escolheu diretamente o caminho pragmático da sinceridade.
Lamentavelmente, nos encontramos diante de um revanchismo exercido ao amparo de discursos legitimantes com baixíssimo nível de elaboração: igual que o da sentença brasileira, dá a impressão de que se exibe sem buscar a mais mínima dissimulação.
Basta mencionar a extrema grosseria de ser invocar – sem precedentes em toda a história argentina – o crime de “traição à Pátria” (contra Cristina Kirchner e seu então chanceler, Héctor Timerman, a respeito da causa da morte do promotor Alberto Nisman, em janeiro de 2015), quando não há nem houve guerra, o que parece ser um detalhe menor para aqueles que não leram o artigo 119º da Constituição. Só faltou que se inspirassem na sentença brasileira e afirmassem que, em tempos de “exceção”, qualquer coisa é igual à guerra.
Mas, sem dúvidas, a mais ostensível combinação de absurdo jurídico e, ao mesmo tempo, obsessão revanchista, foi a prisão preventiva da líder indígena Milagro Sala e seus apoiadores, em Jujuy.
Para legitimar essa prisão política, consolidar a vingança contra Sala e destruir sua obra, não se furtaram de usar todos os recursos ilegítimos que se pode imaginar: juízes especiais, promotores especiais, juízes-deputados ou deputados-juízes no Supremo, ameaças aos defensores, advertências por apelações, clonagem ao infinito de processos e processamentos, indução de testemunhas, ou seja, o escândalo jurídico.
Devido à transcendência internacional do escândalo, agora se subestima um órgão da ONU (justamente o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias), que exigiu o fim da prisão de Milagro Sala, e se faz referência a uma mera “recomendação”. Além do caráter jurídico do decidido em órbita internacional, chama muito a atenção o fato de que um governo que se esforçou – até indevidamente – para apoiar a candidatura de sua chanceler à Secretaria Geral da ONU, hoje trate com displicência uma “recomendação” proveniente de um de seus órgãos, quando este diz claramente o que muitos já vínhamos repetindo há meses: Milagro Sala sofre prisão por motivos puramente políticos.
Seja qual for o valor jurídico do que foi resolvido no âmbito da ONU e do que de agora em diante aconteça, a verdade é que já, neste momento, por culpa da pura obsessão revanchista, a Argentina está fazendo um papelão internacional.
Mas os papelões internacionais não afetam somente um governo, seja ele federal ou regional, mas sim a todos os cidadãos. Nosso país lutou durante décadas para limpar sua imagem em termos de direitos humanos, e agora acontece que, em pleno governo democrático, foi preciso acudir a uma instância internacional para se conseguir o fim de uma prisão por causa puramente política. No plano mundial, todos os argentinos passam a carregar o ônus de ser de um país que tem prisioneiros políticos. O dano está consumado, e não afetou somente a Milagro Sala, senão toda a cidadania. Seria bom não agravá-lo mais.
* Professor emérito da Universidade de Buenos Aires.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: reprodução
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