segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

História do beijo do Kama Sutra a Hollywood

                  Wilson Roberto Vieira Ferreira
                  http://cinegnose.blogspot.com.br/

O cinema não inventou o beijo. Apenas o tornou mais icônico nas relações dos amantes. Porém, Hollywood deu continuidade a uma, por assim dizer, ocupação semiótica da boca e do beijo atribuindo a eles novas representações simbólicas de velhos significados: distinção de classes, de gêneros e substituto do ato sexual. Da mesma forma, o hindu “Kama Sutra” não inventou o beijo, mas atribuiu a ele a comunhão erótica que o Ocidente fez questão de reprimir e controlar desde os persas e romanos, submetendo-o à ordem do Poder. No cinema, o beijo transformou-se na alienação do desejo ao submetê-lo ao espectador voyeur que, com a boca aberta, também espera o beijo. Porém, a pipoca sublima a compulsão enquanto nos filmes atuais ou o beijo se submete à performance e eficácia ou à reconciliação dos casais diante do apocalipse nos filmes-catástrofe.

Para o maior dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, a boca era o verdadeiro lugar da desvirginização: suas protagonistas, mesmo após o coito, por pudor se recusavam a beijar a boca dos seus amantes.

Rodrigues tinha consciência de que, mais do que o ato sexual, no beijo está a comunhão perfeita entre dois amantes – o encontro entre dois órgãos que são, ao mesmo tempo, objetivamente penetrante e penetrado. As línguas se esfregam, ocorrendo uma interpenetração física real: a boca como órgão passivo e a língua como ativo. Mais que o coito que é apenas um ato parcial no qual há um ativo e outro passivo. Um ato submetido à matriz fálica que governa a própria sociedade – o Poder.

Não foi à toa que na Índia antiga o Kama Sutra dedicou um capítulo inteiro aos modos de beijar. Mais do que erótico, o beijo na boca era a verdadeira comunhão, tão importante quanto o ato sexual em si.


O beijo hierárquico

Quando Alexandre, O Grande, invadiu a Índia em 326 AC os gregos conheceram essa natureza totalmente diversa do beijo erótico. Mas no Ocidente já havia ocorrido uma ocupação semiótica da boca e do beijo: beijos nas mãos e no rosto como representação da posição hierárquica das pessoas – o domínio da matriz fálica sobre o órgão bucal, impedindo a sua libertação erótica tão conhecida pelos hindus.

Por exemplo, entre os persas homens da mesma posição social se beijavam com uma bitoca. E aqueles de posição inferior, um beijo na bochecha.

Na ordem marcial dos romanos, as diferenças hierárquicas do beijo foram ainda mais sistematizadas. Eles distinguiam um beijo na mão e na bochecha (osculum) de um beijo nos lábios (basium) e um beijo profundo e apaixonado (savolium).

Numa época de analfabetismo generalizado, o beijo era um signo para representar acordos que eram selados e delimitação das classes sociais. O status social de um romano era determinado pela parte do corpo que podia beijar o imperador, da bochecha ao pé.

O “beijo santo”

Com o declínio do império romano e a ascensão do Cristianismo novas representações do beijo e da boca começaram a surgir. Embora no Velho Testamento bíblico, no “Cânticos dos Cânticos”, relembre essa natureza erótica do beijo (“Que ele me beija com os beijos da sua boca, porque teu amor é melhor do que o vinho”), os cristãos espiritualizaram o beijo – o “beijo santo” associado à transferência de espírito ou ainda o “beijo da caridade” de São Paulo.

Mas fora da Igreja, o beijo ainda era uma forma de cimentar as diferentes posições sociais – súditos e vassalos beijavam a túnica do rei ou os chinelos e o anel do Papa.  

O beijo romântico subversivo


Após a queda definitiva de Roma, a lembrança do beijo erótico aprece ter desaparecido por mais de mil anos para, no século XI, ressurgir com o romântico amor cortês dos trovadores medievais.

O beijo de Romeu e Julieta é emblemático desse movimento, que procurou reconectar o beijo com suas origens eróticas da antiguidade (se bem que sublimado pelo “amor romântico”). Porém, foi uma tentava livrar do beijo o domínio da matriz fálica do Poder – remover o namoro do controle da família e da sociedade e celebrar o amor romântico como força libertadora, autodeterminadora e potencialmente subversiva.


Assim como os perigos da Aids e doenças venéreas foram instrumentalizados para controlar essas formas subversivas de amor, também no passado o mito do vampiro também foi explorado como uma representação dos perigos para a saúde e reputação para aqueles que teimem em fugir do controle da sociedade e da família – o amante inadvertidamente correrá sempre o risco de beijar a pessoa errada...

Mas vampiros e sífilis não foram o suficiente para inibir a imaginação incendiária do beijo erótico que subverte todo o poder fálico – a divisão social e sexual entre dominantes e dominados, ativos e passivos.

O beijo voyeurista do cinema

A civilização da imagem, iniciada pela fotografia e cinema, iria cumprir de forma mais eficiente esse papel repressor, inclusive trazendo os próprios vampiros (de Nosferatus a Drácula) para as telas cinematográficas.

O beijo tornou-se um objeto alienado do desejo: passou a ser representado através da perversão voyeurista como se o espectador observasse tudo por um buraco de fechadura. Não é à toa que, ao lado dos filmes sobre a paixão de Cristo, o filme pornográfico foi um dos primeiros gêneros bem sucedidos no primeiro cinema.

Com a imagem, temos o dispositivo de controle perfeito do beijo: à distância observamos um casal se beijando na tela. A forma alienada de prazer se impõe: o prazer perverso e ilusório de o casal não saber que está sendo observado pelo espectador. O gozo é o do poder do olhar – voyeurismo. Mais uma vez, dessa vez na civilização das imagens, o beijo erótico é controlado pela matriz fálica do poder. Dessa vez, não mais pela repressão pura e simples. Mas através da exibição de bocas que se tocam, porém como objetos platônicos e inalcançáveis.


De início, o beijo no cinema (malgrado todas as dificuldades técnicas iniciais para representá-lo imageticamente – os rostos que desapareciam sob cabelos errantes, sombras que se projetavam sobre as bocas tornando o beijo invisível etc.) foi semioticamente dominado por duas funções: marcar as posições ativa (masculina) e passiva (feminina) e como substituto do ato sexual.

Beijo, a boca aberta e a pipoca

A promoção dos galãs como Rodolfo Valentino, Errol Flynn e Douglas Fairbanks criou a imagerie do beijo cinematográfico: o herói-galã, mais alto, se inclina sobre a mulher que com o rosto voltado para cima, espera passivamente a boca do amante.

É sintomático que enquanto nas telas via-se o beijo ativo, na plateia tínhamos espectadores no escuro, todos com as bocas abertas como se passivamente também aguardassem serem beijados pelo ícone do galã. Certamente a pipoca foi o mecanismo de sublimar esse potencial perversão sexual. Pelo menos com a pipoca, as bocas abertas passaram a ter uma função.

É claro que no início do cinema ocorreram transgressões que, mais tarde, foram eliminadas pelo enquadramento moral e político do Código Hays em 1934, código de autocensura de Hollywood que passou a determinar uma série de regras restritivas.

Por exemplo, há um beijo apaixonado entre dois homens no melodrama mudo Wings (1927) sobre a Primeira Guerra Mundial. Três anos depois em Marrocos(1930), Marlene Dietrich, com smoking e cartola, beijou uma mulher enquanto cantava numa boate cuja audiência incluía Gary Cooper.


O simbolismo do beijo no cinema atual


Com o avanço das técnicas cinematográficas, a função do beijo como sugestão do ato sexual desapareceu. Como tudo no cinema, até o coito pode ser simulado com atores não completamente nus em posições estratégicas e um design de áudio adequado para sugerir o ato real.

Nos anos 1960-70 Hollywood torna-se transgressora com a contracultura – um cinema marcado pelo realismo misturado com desespero, cinismo e paranoia protagonizados por personagens sociopatas, alienados, revoltados e esquizoides. Blow Up, Perdidos na Noite, Descalços no Parque, Um Estranho no Ninho, Straw Dogs, O Fantasma do Paraíso, O Poderoso Chefão, Taxi Driver já são filmes nos quais o beijo, ao mesmo tempo em que se torna mais realista aproximando-se da comunhão do Kama Sutra ou da desvirginização real de Nelson Rodrigues, assume outros simbolismos subversivos.


Porém, a partir dos conservadores anos 1980 da era Reagan-Thatcher, o beijo novamente é semioticamente ocupado pela família e sociedade: nos filmes de terror quem faz sexo é punido por Jason, Fred Krueger etc. Apenas os castos, aqueles jovens que resistirem a todas as tentações, beijam-se na boca para, depois, derrotar o monstro ou o serial killer.

Ao mesmo tempo, nos filmes-catástrofe, é o momento em que, no meio do caos e do perigo, os heróis se beijam para tudo parar diante dos casais que se reconciliam, pais separados que retornam, e para ser selado tudo aquilo que reabilitará a família. Mesmo diante do Apocalipse.

Mesmo no filme pornográfico, o locus no qual se esperaria a redenção de tudo aquilo que a sociedade rejeitou e controlou desde o Kama Sutra, o beijo rende-se a performance e eficácia da ordem meritocrática: agora trata-se de técnica, potência, desempenho, que perpetuará a matriz fálica ativo/passivo.

 O beijo-performance. Para depois ser postado nas fotografias em redes sociais: quantas pessoas você beijou nesse carnaval?

O que há para ler: NAZÁRIO, Luiz. Sexo: A Alienação do Desejo, São Paulo: Brasiliense, 1987; DANESI, Marcel. The History of the Kiss! The Birth of Popular Culture, Palgrave McMillan, 2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12