
Um guia politicamente embusteiro e reacionário da História do Brasil
Por Raphael Silva Fagundes
O problema não é apenas o fato de que as redes sociais deram voz aos imbecis, mas que o “boom” das redes sociais está levando as outras mídias a adotarem o mesmo formato. Os jornais já se transportaram para o Facebook, os youtubers fazem filmes e apresentam programas de televisão. Daqui a pouco vamos presenciar livros no formato dos posts, se é que isso já não existe (confesso que não perdi meu tempo para verificar essa questão). Os imbecis das redes sociais estão ganhando espaço fora delas.
O novo programa do History Channel, baseado no livro de Leonardo Narloch, Guia politicamente incorreto da História do Brasil, apresentado pelo youtuber Felipe Castanhari, recebeu o formato de imagens cômicas e divertidas que chama a atenção do telespectador. Além disso, uma linguagem dinâmica e aparentemente polêmica é adotada para dar estrutura ao documentário. Um modelo idêntico do que acontece na versão original americana com o nome Ironias da História. Parece que tudo é feito para atrair os jovens, mas há algo mais, muito mais...
Os jornalistas quando falam dos indígenas - que estes não tinham “noção” de ecologia - é até compreensível, mas parece que se quer mostrar que, se o homem branco foi cruel, o índio também foi. Molda-se uma justificativa histórica para forjar o seguinte pensamento reacionário: tomar as terras dos índios não é um problema, já que eles também a devastavam. Além disso, deixa-se subentendido que a história politicamente correta é a feita pela esquerda (embora não se diga isso, mas quem tem acesso ao livro do autor e às besteiras que fala, facilmente consegue fazer essa associação) e que ela protege os índios de forma ilegítima.
Eles não criticam o argumento da esquerda, o que fazem é criticar um argumento que eles dizem que a esquerda defende. Se retirarmos a interpretação tosca e supérflua destes jornalistas, sabe-se que os movimentos sérios em defesa dos indígenas estão ligados à destruição promovida pelo latifúndio e pela megaindústria.[1] A não ser que o programa tenha a audácia de acreditar que a voracidade dos tratores e do pastoreio promovida pela indústria da carne (por exemplo) tem o mesmo potencial de devastação ambiental que as atividades indígenas. Que o índio poluía (e polui) e desmatava é um fato, basta ler a obra de Warren Dean, A ferro e fogo, para compreender esta questão, mas não tem como comparar a ação das comunidades indígenas ao interesse voraz do capital. Seria esquizofrenia.
O jornalista Eduardo Bueno (que está muito longe de ser de esquerda, no sentido socialista do termo) foi o que mais chegou próximo desse raciocínio, mostrando que a relação do índio com a natureza é muito mais mágica que a relação do homem branco com a fauna e a flora. Mas foi caçoado com uma montagem que o transformou em um monstro bizarro.
Em alguns momentos, os jornalistas parecem achar que inventaram a roda, como quando tratam da feijoada, do samba e das frutas que muitos acreditam que possuem uma origem brasileira, mas que na verdade são provenientes de outros lugares, ou que foram forjados como símbolos populares e nacionais. É interessante para o senso comum, mas isso é fruto de diversas pesquisas universitárias. Por outro lado, qualquer um que tenha lido Eric Hobsbawm sabe que na construção dos Estados-nação, muito se aproveitou do que o historiador inglês chama de “tradições inventadas”. Afinal, “todo mundo sabe” que a saia e gaita de fole do escocês são aparatos modernos e não uma tradição milenar. A invenção de tradições não é uma invenção do brasileiro.
Mas, pior que isso, é quando falam do futebol. De forma muito rasa, o youtuber que apresenta o programa, diz que a “nacionalização” do esporte foi uma construção do Estado, mas não reflete sobre essa questão como o faz com o samba. Nessa questão, o programa foca em depreciar a imagem de Graciliano Ramos, que qualquer um que realizar uma pesquisa rápida no Google descobrirá que o escritor era um membro do Partido Comunista. A ideia foi dizer que Graciliano “errou”, “chutou um pênalti para escanteio”, que “se enganou”, que não tinha “noção” e por aí vai.
Em nenhum momento se diz que o futebol foi uma ferramenta do Estado Novo de Vargas no projeto de construção da identidade nacional.Em alguns momentos, os jornalistas parecem achar que inventaram a roda, como quando tratam da feijoada, do samba e das frutas que muitos acreditam que possuem uma origem brasileira, mas que na verdade são provenientes de outros lugares, ou que foram forjados como símbolos populares e nacionais. É interessante para o senso comum, mas isso é fruto de diversas pesquisas universitárias. Por outro lado, qualquer um que tenha lido Eric Hobsbawm sabe que na construção dos Estados-nação, muito se aproveitou do que o historiador inglês chama de “tradições inventadas”. Afinal, “todo mundo sabe” que a saia e gaita de fole do escocês são aparatos modernos e não uma tradição milenar. A invenção de tradições não é uma invenção do brasileiro.
Historiadores como Lilia Schwarcz, Mary Del Priore e Isabel Lustosa, quando o programa, o qual foram convidados a dar seus depoimentos,foi ao ar, pediram imediatamente para que retirassem a sua participação. “Eu liguei, conversei com eles e disse que com esse título não seria possível participar. Não é uma abordagem que nos representa. É sensacionalista”, disse Lilia Schwarcz, que pediu para ser excluída do seriado.[2]
Um documentário sobre história em que Lobão é um dos entrevistados, não pode ser algo muito confiável. A questão é que se o primeiro episódio foi assim, imagine a panfletagem de direita que virá nos próximos, principalmente quando chegar no período da ditadura militar. Quem pretende acompanhar a série precisa se preparar para o fato de que, com a saída dos historiadores especialistas, ficarão apenas aqueles que as redes sociais deram ouvidos.
Criticar a forma tradicional como se vê a história e o mundo é comum, aliás, uma sugestão de quem faz isso de forma surpreendente na atualidade é o sociólogo Jessé Souza que confronta historiadores e sociólogos da USP.[3] O problema é fazer isso sem base, sem fundamento, descontextualizando é distorcendo conteúdos retirados de pesquisas sérias para um propósito propagandista, como o faz o documentário em questão. O mesmo é feito na série Brasil Paralelo, que é muito ruim, diga-se de passagem. Para aqueles que pretendem curtir um bom documentário sobre a história do Brasil, tanto no sentido artístico quanto no sentido científico, recomendo Histórias do Brasil, produzido pelo Instituto Claro.
Referências
[3] SOUZA, Jessé. A elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: Leya, 2017.
♦ Raphael Silva Fagundes é doutorando em História Política da UERJ e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
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