Guilherme Mello
A falta de provas, seja da suposta propriedade do apartamento, seja da ligação entre o dinheiro utilizado e os contratos da Petrobras, evidenciaria a tentativa de ocultar o patrimônio obtido de maneira ilícita. Ou seja, a falta de provas é a prova cabal do crime
Nesta quarta-feira será finalizado mais um capítulo de um dos julgamentos mais importantes da história do Brasil recente. Neste julgamento será avaliada a sentença condenatória do juiz Sérgio Moro, em que se acusa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, por supostamente ter recebido de forma oculta um apartamento tríplex no Guarujá em troca de benefícios concedidos à construtora OAS em contratos da Petrobras. Dezenas de articulistas, juristas, professores e jornalistas têm discutido o significado do julgamento, seus pormenores e a existência ou não de provas do crime do qual Lula é acusado. Em sua grande maioria, os analistas apontam a fragilidade da sentença condenatória proferida por Sérgio Moro, seja na caracterização dos crimes, seja na análise das provas.
A primeira fragilidade está na inconsistência entre a denúncia oferecida pelo MPF, a sentença proferida por Moro e sua posterior resposta à defesa do ex-presidente. Na denúncia, o MPF afirma que três contratos da Petrobras foram alvo de sobrepreço e que este valor teria sido usado como propina ao ex-presidente. Em sua sentença, Moro confirma (parágrafo 880) que recursos de contratos celebrados pela OAS em 2009 foram utilizados para pagar vantagem indevida ao ex-presidente. No entanto, em resposta aos questionamentos da defesa de Lula, Moro afirma que “Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em outro lugar, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram utilizados para pagamento de vantagem indevida para o ex-presidente”.
Aqui se abre campo para duas interpretações: ou bem o apartamento supostamente concedido a Lula não foi decorrente de contratos com a Petrobras, o que retiraria o caso da alçada de Moro e da Lava Jato, transferindo-o para a justiça paulista; ou bem os valores supostamente repassados indevidamente a Lula em 2014 (na forma de um apartamento e suas benfeitorias) foram provenientes de contratos da Petrobras celebrados com a OAS em 2009, mas cujos recursos se misturaram em um grande caixa e, portanto, não é possível vincular os valores repassados ao ex-presidente aos contratos especificamente citados.
Essa segunda linha argumentativa, defendida por Moro e alguns articulistas políticos, nos traz um novo desafio: se o crime de corrupção consistiu em uma “troca” entre contratos da Petrobras celebrados em 2009 e benefícios pagos em 2014, mas é impossível (e eventualmente irrelevante) rastrear a origem dos recursos pagos como propina, como garantir que essa “troca” realmente existiu? É aqui que a tese condenatória abandona o campo do direito e da lógica e parece adentrar o campo das “convicções”, onde as provas são supérfluas.
Dois caminhos podem ser escolhidos para realizar a ligação entre a suposta propina e os contratos da Petrobras. Um é a utilização do depoimento de Léo Pinheiro, então presidente da OAS, feito em um momento em que negociava sua colaboração premiada visando à redução de sua pena. Na realidade, o depoimento em que Léo Pinheiro incrimina o ex-presidente é uma nova versão para os fatos, tendo em vista que o mesmo Léo Pinheiro havia afirmado anteriormente que as obras no apartamento foram feitas para agradar o ex-presidente e convencê-lo a comprar o apartamento, não como uma forma de “troca” de favores ou pagamento de propina. Após esse depoimento, Léo Pinheiro viu sua possibilidade de firmar um acordo de delação bloqueada, já que o MPF não “gostou” da versão apresentada pelo empresário. Após mais alguns meses na prisão, Léo Pinheiro finalmente mudou de versão, incriminando o ex-presidente.
O problema maior nesse caminho é exatamente a dependência quase que exclusiva no depoimento de um réu confesso, que alterou sua versão buscando obter os benefícios da delação premiada. Como não foram realizadas perícias nos contratos (solicitadas pela defesa, mas negadas por Moro), nenhuma prova documental foi produzida indicando que os contratos supostamente fraudados tivessem qualquer ligação com pagamentos de supostos benefícios ao ex-presidente. Ademais, as evidências apresentadas para demonstrar a posse efetiva de Lula sobre o apartamento são no mínimo frágeis, consistindo de coisas como uma reportagem de jornal e uma proposta de compra sem assinatura.
O segundo caminho parece ainda mais insólito. Ao invés de relacionar a suposta propina diretamente a alguns contratos da Petrobras, que teriam sido fraudados sob o comando (não comprovado) do ex-presidente Lula, Moro defende a tese de que Lula teria praticado “atos de ofício indeterminados” para beneficiar a OAS em troca do apartamento e suas reformas, contrariando a própria denúncia oferecida pelo MPF.
Aqui há um problema jurídico evidente: o crime de corrupção passiva exige que o agente público tenha ao menos a possibilidade de realizar um ato de ofício determinado. Ele não precisa ter praticado o ato (o que serve para aumentar a pena), mas ao menos precisa ter prometido praticar (ou deixar de praticar) algum ato dentro de suas competências. Moro se defende alegando que há casos na jurisprudência em que se aceita a argumentação de “atos indeterminados”, mas esbarra aqui em um problema lógico: se o “ato de ofício” é indeterminado, ele é por definição desconhecido e não passível de comprovação, impedindo inclusive a defesa. Como se defender de uma acusação em que seu crime foi cometer um “ato indeterminado”?
Em suma, parece que Lula está sendo acusado por praticar um “crime desconhecido”, que por isso mesmo prescinde de comprovação material ou pericial, bastando para a condenação o depoimento de um réu confesso que alterou sua versão para obter os benefícios de uma delação premiada. Para alguns analistas, a falta de provas, seja da suposta propriedade do apartamento, seja da ligação entre o dinheiro utilizado e os contratos da Petrobras, evidencia a tentativa de ocultar o patrimônio obtido de maneira ilícita. Aparentemente, nesse novo ordenamento jurídico que se busca criar, a falta de provas é a prova cabal do crime. Quanto menos provas se obtiver, mais grave o crime. Aécio, Temer e Geddel respiram aliviados.
Crédito da foto da página inicial: Ricardo Stuckert
É professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON-UNICAMP).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12