sexta-feira, 23 de março de 2018

'Irmã de vida' de Marielle e ameaçada de morte: a vereadora mais votada de Niterói

Mariana Schreiber - @marischreiber
Da BBC Brasil em Brasília
Sugestão: Natasha Pimentel
AFPI-A vereadora Talíria Petrone teve a maior votação em Niterói na eleição municipal de 2016

"Quem vai me ajudar a ter coragem? Quem vai chorar comigo dores tão parecidas e entender exatamente tudo que explode no peito?", compartilhou em suas redes sociais no sábado a vereadora de Niterói Talíria Petrone (PSOL).

Sua amiga, parceira política e, como ela descreve, "antes de tudo, irmã de vida" foi morta com quatro balas na cabeça na noite de quarta-feira, quando seu carro foi alvejado por treze tiros. O motorista Anderson Gomes também morreu.

Antes disso, a grande maioria do Brasil não conhecia Marielle Franco. Provavelmente, você também nunca ouviu falar de Talíria. Assim como a vereadora executada, ela é mulher, negra e surpreendeu ao ser eleita vereadora pelo PSOL em 2016, com a maior votação em Niterói.

Talíria vem de uma família de classe média baixa de Niterói, do bairro do Fonseca, na zona norte da cidade, filha de uma professora alfabetizadora e de um artista plástico e músico. Seguiu o caminho da mãe no magistério, mas, antes de virar professora, chegou a trancar a faculdade de História na UERJ, aos 18 anos, para atuar como atleta profissional de vôlei em Portugal.

Decidiu voltar após dois anos. Quando passou no concurso para professora da rede municipal do Rio, escolheu dar aula na região da Maré, porque diz acreditar que é nas comunidades mais pobres que a educação tem maior potencial transformador.

Sente saudade da sala de aula agora que está licenciada para exercer seu mandato, um trabalho que diz ser gratificante, mas ao mesmo tempo doloroso. Única mulher na Câmara de Niterói, ela contou à BBC Brasil sobre como compartilhava com Marielle as dificuldades de ser uma vereadora negra, em um ambiente majoritariamente de homens brancos.

"Eu nunca sofri tanto racismo de forma explícita como na minha experiência de um ano (como vereadora). Desde ser chamada de negra nojenta, ouvir 'neguinha volta para senzala', 'que cabelo é esse?', até ameaças concretas de morte", relatou Talíria.

"Mari tinha um jeito de dar um tapa e dizer: 'bora, negona, a vida é dura, baby', que de alguma maneira era um força que dava para a gente", recorda.

As duas se conheceram há oito anos em um curso pré-vestibular comunitário da favela da Maré, onde Marielle cresceu e onde Talíria, que é formada em História, dava aula. A relação se intensificou na militância no PSOL e, ainda mais nos últimos dois anos, a partir do momento em que decidiram concorrer às eleições.

Ao contrário da carioca, que nunca havia sido ameaçada, a parlamentar de Niterói já recebeu ameaças de morte em redes sociais e também em telefonemas para a sede do PSOL na cidade. Nesses contatos, o intimidador dizia que explodiria o local.

Os casos foram informados no ano passado na 76ª Delegacia de Polícia da cidade por meio de notícia-crime. Segundo a Polícia Civil do Estado, as investigações estão em curso, e um suspeito de ter feito a ameaça - que preferiu não identificar - estava sendo ouvido nesta quarta-feira.

À BBC Brasil, Talíria disse que ela e sua amiga, mas principalmente Marielle, tinham reticências em disputar a eleição, preocupadas com a exposição que isso traria, os prováveis ataques de ódio e como esse trabalho poderia mudar suas vidas e a relação com suas famílias.

Para Talíria, o assassinato de Marielle foi um crime político, contra tudo que ela representava | Foto: Arquivo pessoal

Talíria se recorda de quando, em 2016, as duas conversaram sobre se candidatarem em um café em Niterói - ela tomando cerveja, e Marielle, que não costumava beber, tomando água. Sua candidatura já estava consolidada, mas a amiga ainda não tinha se decidido.

"Eu falei: 'eu preciso que você também tope essa tarefa'. Lembro desse momento como se fosse hoje, a gente chegando no olho e tendo certeza que seria muito bom que fôssemos nós duas (concorrendo)", contou.

A vereadora explica que a decisão de concorrer não era apenas um desejo individual de cada uma delas, mas uma certeza de que tinha de haver mais mulheres na política. As dúvidas se dissiparam depois que assumiram seus mandatos, diz.

"A gente nunca duvidou que fizemos a escolha certa. E mesmo depois disso tudo, eu tenho certeza que ela não duvidaria. A Mari tinha muita convicção da tarefa que ela ocupava. A gente representa muita gente. Ela, que vinha da favela, mais ainda."

Dentro do PSOL ainda está sendo discutido como aumentar a segurança de Talíria, mas a vereadora diz à BBC Brasil que não recuará na sua atuação política.

Segundo Luciana Boiteux, que foi candidata a vice-prefeita em 2016 na chapa do PSOL com o deputado estadual Marcelo Freixo, Talíria, assim como Marielle, é uma mulher de fala firme, mas alegre, que dificilmente está de cara fechada. Ela ressalta que as duas "quebraram tabus" na política ao serem eleitas sem parentesco com homens políticos, como é comum.

"Queremos fortalecer politicamente Talíria e protegê-la, mas sem a lógica do medo, para que ela possa reafirmar sua luta política. Ela não tem uma pauta moderada, se afirma feminista, anticapitalista, antirracista", ressalta.

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Embates na Câmara

Talíria já apresentou 34 projetos de lei na Câmara de Niterói, em geral voltados para os direitos das mulheres mais vulneráveis, mas só conseguiu aprovar um, que obriga as empresas de ônibus a fazerem campanhas contra o assédio sexual a passageiras e a treinar os funcionários para lidarem com essas situações.

Sem apoio na Casa, ela considera que o mais importante é dar visibilidade às minorias. Por iniciativa do seu mandato, foi criado um grupo de trabalho com representantes também da área de saúde, para melhorar o atendimento a vítimas de violência sexual na rede pública e fiscalizar e ampliar a oferta de aborto legal (em casos de estupro, por exemplo) na cidade.

Assim como Marielle, também tem atuado na denúncia da violência policial. Segundo dados oficiais do governo do Rio, Niterói é a cidade do Estado com maior taxa de mortes causadas durante intervenção policial - um em cada três casos.

Talíria diz que ser vereadora negra é um processo 'doloroso', mas diz não se arrepender de ter entrado nesse caminho | Foto: Arquivo pessoal

Um dos "picos de tensão" do seu mandato, conta, foi quando subiu à tribuna para chamar de "chacina" a morte de oito pessoas durante operação do Exército e da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, favela em São Gonçalo, município vizinho a Niterói, em novembro.

Segundo laudos de necropsia obtidos pelo jornal Extra, as oito vítimas receberam 35 tiros, todos pelas costas. Talíria pediu um minuto de silêncio pelas vítimas, o que gerou reação de Carlos Jordy (PSC), aliado do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ) - repetindo localmente a mesma oposição que ocorre na Câmara dos Deputados, onde é comum ver enfrentamentos entre o presidenciável e parlamentares do PSOL.

Em sua fala, ele ressaltou que parte dos mortos tinha antecedentes criminais e acusou Talíria de "defender bandidos".

Os embates entre os dois são frequentes e costumam ser divulgados no YouTube por canais ligados a Jordy, com linguagens agressivas em relação à vereadora. Um deles, publicado pelo canal "Jordy Opressor", leva o título: "Carlos Jordy arregaça com vereadora do PSOL e MC Carol ao vivo".

Procurado pela BBC Brasil, o vereador disse que essa página foi criada por um apoiador do seu trabalho e que lhe envia cópias das filmagens das sessões sempre que solicitado. "Não acho que seja um tom agressivo, mas sim uma forma bem humorada de divulgar os debates antagônicos entre mim a vereadora Talíria", afirmou.

Após a morte da vereadora carioca, esses mesmos vídeos passaram a ser divulgados por outros canais de grupos identificando Talíria falsamente como Marielle. Jordy disse à BBC Brasil que não conhece quem fez isso e atribuiu a identificação errada a uma confusão devido à semelhança física e de pautas ideológicas entre as duas.

"Jamais tiraria proveito de uma situação como essa. Lamento profundamente a morte dela e a única coisa que espero é que as investigações prosperem até chegar aos culpados", afirmou.

Talíria recusa a explicação de que a morte da amiga "é mais uma expressão da violência da cidade", um crime comum. E, ainda que as investigações não tenham sido concluídas, para a vereadora, os indícios até agora levam a crer que o assassinato de Marielle foi um crime político, contra tudo que ela representava - ser mulher, negra, favelada, LGBT, de esquerda e que lutava contra um "modelo de segurança pública genocida". Para ela, é preciso, sim, "politizar essa barbárie que foi a execução da Marielle".

Talíria diz que Marielle era 'antes de tudo uma irmã de vida' | Foto: Arquivo pessoal

'Muitas Marielles estão brotando'

Admirador de Talíria, seu colega vereador Sandro Araújo (PPS), policial federal e também professor, diz que ela sofre hostilidades de uma minoria dentro da Câmara, sendo tratada com cordialidade pela maioria dos colegas. "Mas é óbvio que a ausência de mais mulheres torna o ambiente um pouco mais complexo para ela atuar", observou.

Araújo conta que abriu mão de assumir a Comissão de Educação para dar lugar a Jordy, e assim liberar a Comissão de Direitos Humanos para Talíria, sua atual presidente. Defensor da restruturação da polícia, ele também já registrou ameaças de morte.

"É um risco grande para mim, para Talíria, principalmente por ela ser mulher. Mas não vai ser isso (a morte de Marielle) que vai amedrontar a Talíria, ela é muito corajosa", afirmou.

No domingo, Talíria voltou a Maré para participar do ato por Marielle, movimento liderado por mulheres negras.

"Foi muita dor, mas foi onde mais vi a Marielle viva, naqueles corpos, naquelas vozes. Muitas Marielles estão brotando nas favelas do Brasil", acredita.

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