
Se pensarmos bem a república velha e seu pacto elitista restrito venceu, no longo prazo, a revolução de 1930. Como são sempre as ideias que legitimam os interesses velhos como se fossem novos, compreendemos esse fato melhor analisando a “santíssima trindade” do liberalismo vira-lata brasileiro. Se Sérgio Buarque é o “filósofo” desse liberalismo ao criar as categorias mais abstratas do brasileiro como homem emotivo e, portanto, inferior e corrupto, além do Estado como único lugar da corrupção; e Raymundo Faoro é o “historiador” dessa visão hegemônica ao recuar até Portugal essa suposta herança de sangue maldito; então Fernando Henrique Cardoso é o contraponto especificamente “político” dessa trindade conservadora. Se os outros eram “apenas” intelectuais no sentido estrito, ainda que engajados, coube a FHC realizar em concreto, como ideia e como prática, o ideário “conservador chique” da elite paulistana que logra nacionalizar seu poder precisamente na medida em que essas ideias se tornam hegemônicas.
O ponto nodal, hoje esquecido, dessa estratégia ideológica é a introjeção do mito do bandeirante paulista – contrafação já ironizada por figuras como Vianna Moog no calor da hora - como protótipo do mito americano do pequeno empreendedor ascético e honesto como base de uma cultura rica e democrática. O problema do Brasil é que o “Estado corrupto” impediu o mercado pujante e virtuoso de nascer. O mito americano perde qualquer base real já logo depois da guerra civil americana (1861-1865) quando se estrutura um capitalismo monopolista desregulado que destrói o pequeno empreendedor e que passa a &l dquo;comprar” uma das estruturas políticas mais corruptas da época segundo análise insuspeita de Max Weber que pesquisa “in loco” o tema. Mas, entre nós, 80 anos depois de sua morte nos EUA, é o mito do empreendedor que sustenta a criminalização do Estado e o estigma da política. Afinal, como diz a “santíssima trindade” em uníssono, é por conta da herança vira-lata da corrupção apenas estatal que explica por que aqui não teríamos ainda a pujança americana. Essa cantilena está por trás ainda de tudo que a elite conservadora – de direita e de “esquerda” – e a imprensa venal diz sobre o país até hoje.
O plano foi simples. Se constrói um “bode expiatório” sob a forma de uma elite maldita estatal e política como modo de neutralizar o advento do sufrágio universal – a verdadeira pedra no sapato desta elite desde a república velha – sempre que o Estado quiser ser mais que butim para livre uso e saque econômico dessa elite. Quem quer que defenda uma sociedade pujante e inclusiva é apeado do poder pela corrupção seletiva, ou, no caso de Ernesto Geisel e seu II PND, em nome da “democracia”. A criminalização da política é o núcleo da aliança também com as “burocra cias intermediárias e técnicas do Estado”, como os militares no passado e hoje com o judiciário. Como esses quadros técnicos estão em competição estrutural com o comando político e procura chantageá-lo por vantagens econômicas e pelo poder de definir a agenda estatal, a aliança com a elite econômica para o domínio do Estado e o saque do orçamento público é a pedra de toque do arranjo elitista brasileiro desde 100 anos. Esse é o verdadeiro atraso brasileiro: moral, social, econômico e politico.
Mas essa ideia reacionária tem que ser vendida ao público “bem pensante” de classe média como se fosse avanço e progresso e é aqui que entra o papel do “político” FHC na “santíssima trindade” da ideologia brasileira. A elite paulistana que se torna hegemônica nacionalmente é atrasada mas gosta de tirar onda de moderna e seu “garoto propaganda” é FHC. Professor mais famoso da USP, mimado por toda a mídia conservadora, bem falante, poliglota (para não passar vergonha no exterior), o verdadeiro “ego ideal” da elite a da classe média letrada. Ele não repete apenas as ideias do liberalismo vira-lata brasileiro nas análises políticas ou no programa do PSDB que leva aos seus governos inspirados pelas ideias de Buarque. Ele é o “profeta exemplar” de um liberalismo reacionário que flerta com o charme parisiense, tipicamente uspiano, do provincianismo que se imagina na vanguarda do mundo.
O limite social desse liberalismo é a defesa abstrata dos “direitos humanos” como substituto da efetiva distribuição de riqueza e poder. Foi essa pátina dourada que fez parecer progresso o que era máscara nova para um jogo velho. A crise atual é também uma crise desse discurso elitista. Luciano Hulk, Dória e Temer são a versão “trombadinha” de FHC. Uma volta a elite do saque pelo mercado do orçamento público e riquezas nacionais sem o discurso civilizador e sem charme parisiense. Chance histórica para a esquerda de reconquistar uma classe média que se proletariza.
*Texto originalmente publicado na Carta Capital
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