
O capitalismo da super-auto-exploração
por Fernando Horta
Em 1916, Lênin descreveu uma “fase superior do capitalismo”, que seria a união do capital bancário com o industrial criando imensos grupos geradores de lucros em cima de todas e quaisquer atividades humanas. Lênin descreve o processo como parte de sua explicação para a primeira guerra mundial. Este capitalismo financeiro teria como característica a mitigação do risco e da concorrência. Não haveria mais o “livre mercado”, seja porque estas imensas reservas de capital dobravam os regimes tributários e legais dos Estados, seja porque tais grupos teriam inúmeras ferramentas (dumpings, holdings, trustes e etc.) para acabarem com todos os concorrentes.
Lênin nomeou esta nova fase do capitalismo de “imperialismo”, onde o capital teria tamanha capacidade e poder que seria um erro imaginar que países que atingiram o “imperialismo” poderiam ser analisados pelas antigas ferramentas marxistas. Claro que a lógica marxista estava presente, a concentração de capital e a exploração são argumentos marxistas para explicar a principal engrenagem do sistema. Lênin, contudo, desnuda o fato de que dentro do capitalismo, os estágios de desenvolvimento eram dramaticamente diferentes. E, sendo diferentes, criavam relações políticas, sociais e mesmo econômicas que divergiam do modelo explicitado por Marx.
A partir das análises de Lênin, por exemplo, era possível perceber pontos de contato e interesses semelhantes entre países capitalistas periféricos (que eram explorados pelos imperialistas) e a URSS. Lênin cria colorações no capitalismo e no próprio proletariado, e, ainda que alguns vejam em Marx uma estrutura fluida e maleável (em oposição a um modelo duro dividido entre burguesia e proletariado), é indiscutível que Lênin operacionalizou muitas categorias de análise de Marx e Engels para os novos tempos do século XX.
Ocorre que o capitalismo, como já afirmava Schumpeter, é extremamente dinâmico e a capacidade humana de criar meios para continuar enriquecendo (e explorando) parece não ter fim. Nenhuma das ferramentas capitalistas atuais escapa da noção central de exploração. O capitalismo segue crescendo como Marx estabeleceu: explorando o homem e explorando o planeta de formas cada vez mais extremas. Vamos para o terceiro século de capitalismo e o planeta está já incapaz de sobreviver aos mecanismos de exploração. No mesmo tempo, o homem tornou-se cada vez mais escravo do trabalho – e não menos. Ao aumento da produção, pela incorporação de máquinas e toda sorte de tecnologias, não decorreu uma redução do tempo de trabalho. Marx continua sendo essencial.
Mas, se o capitalismo continua exploratório e continua fazendo isto em níveis insuportáveis, como a previsão marxista de revolta do proletariado não se verifica por todo o lado?
Uma das ferramentas de defesa do capitalismo, que visa obscurecer as relações de classe e o processo de exploração e acumulação, começou na década de setenta do século XX e tem se aprofundado no século XXI. Ao criar termos e condições formalmente diferentes para o trabalho, o capitalismo empreendeu uma cruzada contra as análises críticas que é tanto mais violenta quanto maior a crise que o sistema passa.
No final dos anos setenta, os processos de ISO e qualidade do trabalho tornavam os proletários apenas “colaboradores” e pela racionalização das atividades em todos os níveis afastavam as percepções críticas do sistema. A criação ideológica de “estratos” diferenciados da mão de obra, concorria com o processo de identificação social: ninguém mais quaria se ver como um reles proletário. Ao esconder as relações econômicas com canetas folhadas a ouro, uniformes, cessão de carros e outros benefícios, o capitalismo lutava diretamente contra a formação da consciência de classe. Contra a ideia de que a relação chave da economia é a exploração do trabalho pelo capital.
Diversas novas categorias foram sendo estudadas. Os “White collars”, os “blue collars”, o “precariado”, o “lumpem proletariado” e por aí afora. Ainda assim, até o final do século XX a relação de exploração era visível por entre os parcos prêmios de produção e os baixos percentuais de “divisão de lucros” que as empresas ofereciam como forma de mitigar a sensação de exploração. O fim da URSS permitiu o fortalecimento do “neoliberalismo”. Sem medo de revolução, sem um modelo a competir com o capitalista e sem um caminho claro de como superar o sistema, bastava que se atacassem os sindicatos, e se desconstruísse a noção de classe.
Aqui surge a ideia do “estado mínimo”. Um estado cuja única função é uma polícia fortemente armada para garantir a propriedade e uma diplomacia para oferecer relações internacionais ao capital. Todo o resto está fora do conceito dos neoliberais. Saúde, educação, emprego, ciência e etc. seriam coisas para o “mercado” já que a função do Estado seria apenas assegurar a propriedade por meio das leis cíveis e criminais.
Neste cenário de desindustrialização e hiperexploração o capitalismo criou uma nova forma de trabalho: a auto-super-exploração. Este sistema de extrair valor máximo de cada trabalhador, em rede e em larga escala começou nas antigas empresas de vendas como Amway, Mary Kai ou Herbalife. Milhões de pessoas eram obrigadas, de início, a comprarem “kits” para uso pessoal, já garantindo um mínimo de exploração que – por si só – mantinha o sistema de pirâmide funcionando. O “investimento” de cada um que se agregava na base era imediatamente transferido aos seus superiores terminando por promover uma imensa acumulação de capital na parte superior destas estruturas que devolvia aos estratos inferiores brindes e mais “treinamento” que, no fundo é apenas um condicionante ideológico.
Estes “investidores”, “donos do seu próprio negócio” e “futuros capitalistas de sucesso” eram constantemente bombardeados com histórias de conhecidos, vizinhos ou amigos que “deram certo” e ficaram “ricos” fazendo parecer que o caminho era possível. Na realidade a imensa maioria destas pessoas que “enriqueciam” eram apenas abastecidas com um pouco mais de dinheiro por um breve momento para que funcionassem exatamente como verificadores de legitimidade e veracidade da exploração. Elas mesmas só se sustentavam se seguiam buscando mais e mais explorados a se agregarem na base da pirâmide. Todos oferecendo seu tempo, seu trabalho e seus recursos (porque precisam comprar sempre um “mínimo”) em troca de um sonho, uma grande mentira.
Os estudos mostram que a sazonalidade desta oferta de trabalho na parte de baixo da pirâmide é de seis meses a um ano. O indivíduo se auto-explora em níveis quase insuportáveis para, findo este curto tempo, perceber que “não deu certo”. Contudo, o bombardeio ideológico (de coachs, palestras e cursos) é tão grande que o próprio explorado se convence que não enriqueceu por falhas pessoais. Neste processo, continua escondido a exploração do trabalho pelo capital e são raros os indivíduos que passam por esta experiência e percebem que estruturalmente ela é pensada para retirar valor de todos e repassar a um ou dois. Quase ninguém se percebe proletário explorado. A culpa é sempre do “governo” ou do “ambiente econômico não propício ao capitalismo”.
Diante do flagrante insucesso, o explorado só tem o caminho de aceitar-se incapaz ou ver no mundo todo uma grande “conspiração comunista” que não permite o capitalismo – e ele mesmo explorado – crescerem e se desenvolverem.
A mesma lógica atinge os “aplicativos” hoje. O Uber é uma imensa Amway, sem cara e mais rápida. Não importa as diferenças de custo do trabalho, o indivíduo é incentivado a se explorar por dez, doze horas ou mais para ganhar um mínimo suficiente para meramente pagar suas contas e sua comida. É o sonho do custo do trabalho igual somente ao custo de reprodução física dos indivíduos. Os lucros seguem para cima da pirâmide. Cada motorista de Uber não se vê um “proletário”, mas “um patrão de si mesmo” porque lhe parece que pode fazer seus horários e tem sua “liberdade”. A realidade é que o aplicativo – um entre tantos modelos de acumulação semelhante – lucra com a sazonalidade e o desespero dos trabalhadores. Usa de oferta de trabalho amador para baixar o valor da hora trabalhada (estudantes, por exemplo, oferecem-se no Uber para “ganhar um extra” apenas) e geram uma super-exploração em níveis internacionais, em rede e ininterrupta pois os custos do negócio correm quase na totalidade por conta do trabalhador (gasolina, manutenção, pintura, pneus e etc.)
A categoria dos caminhoneiros vive exatamente a mesma lógica, ainda que em menor escala. Donos das carretas, “pequenos empresários”, se jogam nas estradas por 24 horas sem parar para fazerem pouco mais de quatro mil reais por mês. Rejeitam sindicatos porque se acharem “pequenos empreendedores”, odeiam “comunistas” e adoram “coachs” de superação. Mantém-se dentro de uma esfera ideológica que simplesmente não consegue reconhecer seus inimigos ou quem, efetivamente, ganha com seu trabalho. O aumento da gasolina é culpa do “governo”, “dos impostos”, dos “sindicalistas” e dos “políticos”. Não dos investidores privados da Petrobrás que fizeram 113 aumentos em seis meses. A culpa não é dos movimentos internacionais de aumento e rebaixamento do preço do petróleo como arma geopolítica.
Estes proletários que se super-exploram foram ensinados que este é o “correto”. A forma justa de sobrevivência num mundo cão em que “vence” o mais forte. Eles não receberam ferramentas cognitivas para compreender que a exploração que fazem de si para pagarem os aplicativos, os empresários de transportes e todos os outros intermediários é parte do sistema. Se matarem os “corruptos”, outros “empresários” tomarão o lugar. Revigorando a exploração. Porque é dela que o sistema vive. Com ou sem corrupção. Com ou sem “imposto”. Com ou sem “estado”. Destas entidades a única que realmente não existe é o “livre mercado”. Não existia nem no tempo de Adam Smith e, como Lênin mostrou, não existia no século XX e nem no XXI.
O patrão de si mesmo só o é para com o chicote. Feitor de si, estes explorados que não se reconhecem obrigam-se a um regime de trabalho ultrajante sem compensação enquanto se convencem de que não enriquecem por uma conspiração comunista no mundo. Nem na ficção científica poderíamos ter imaginado tamanha alienação.
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