quarta-feira, 20 de junho de 2018

O Brasil ainda não saiu da República Velha. Por Jessé Souza

Publicado por Joaquim de Carvalho


PUBLICADO ORIGINALMENTE EM CARTA CAPITAL

As sociedades vivem contextos de longa duração histórica nos quais pactos e consensos sociais arcaicos tendem a continuar indefinidamente. Se não houver processos de ruptura explícita e de aprendizado coletivo que possa ser parteiro de algo verdadeiramente novo, a reprodução do mesmo é a regra de ouro dos interesses que estão ganhando.

Quase nunca temos olhos e percepção para estes processos de longa duração. A razão dessa invisibilidade tem a ver com o fato de que o velho e o arcaico assumem roupagens e máscaras novas para que a sua substância essencial possa continuar com mínimas mudanças. É o brilho das falsas novidades que nos cega.

O Brasil vive um processo de longa duração, de quase cem anos. Como sempre, o fundamental é separar o essencial do secundário. O dilema essencial da República Velha foi encarar a novidade do sufrágio universal para o cargo máximo do poder político de tal modo a retirar-lhe, simultaneamente, qualquer eficácia real.

Isso não acontece apenas por pura maldade, embora o sadismo seja nosso DNA cultural, mas pelo interesse pragmático de garantir o controle do aparelho de Estado para a reprodução dos privilégios dos proprietários.

O controle é tanto do orçamento e das isenções fiscais, que funcionam segundo a regra “o lucro é só meu e o prejuízo de todos vocês, otários”, quanto da Justiça e dos meios de violência estatal.

O esgarçamento desse conflito atual é resultante de um acúmulo de fatores. Primeiro, a expansão da base eleitoral. A pequena porcentagem de votantes da República Velha aumentou continuamente pelo voto universal masculino, do voto feminino, e depois pelo voto do analfabeto.

Em segundo lugar, temos a erosão do discurso elitista baseado no moralismo antiestatista e na crença no mercado como mecanismo autorregulado, cuja última expressão convincente e capaz de conquistar votos foi FHC.

Hoje em dia, a elite só possui versões “trombadinhas” de FHC e de seu charme conservador para inglês ver. A erosão do discurso elitista é um ponto fundamental de nossa atual quadra histórica e esclarece o desespero que toma conta da elite à medida que a fraude e os crimes da Lava Jato começam a ser percebidos por boa parte das pessoas. Crescentemente, quem respeita o “trabalho” de Sérgio Moro é quem ama Jair Bolsonaro. E o horário eleitoral sequer começou.

O problema para a ruptura da República Velha e seu ódio ao voto popular é que não temos tradição de discurso articulado na representação dos interesses das classes populares. Historicamente temos dois discursos que lutam pela hegemonia do imaginário social e os dois possuem a mesma fonte: o liberalismo do moralismo de fachada (que ainda domina boa parte da esquerda) e a inclusão popular “por cima”. Os dois têm como fonte o falso “mito da brasilidade” como uma singularidade absoluta.

Exemplo da inclusão por cima foi o discurso da mestiçagem de Gilberto Freyre apropriado por Getúlio Vargas. Esta foi a primeira ideia do imaginário social brasileiro que apontava para a inclusão das classes populares mestiças e negras.

Seu conteúdo positivo apontava para o fato de que o “povo”, como ele é, deveria ser percebido e incluído. Daí o elogio da mestiçagem, não mais como marca negativa, mas como algo positivo e para ser celebrado precisamente como Vargas tentou fazer.

Esse foi um primeiro ensaio de um discurso antielitista e antiliberal que explica inclusive o fato de que este foi sempre um discurso perseguido em São Paulo, pátria da elite do moralismo de fachada e antipopular.

Com todas as suas falhas e contradições, este foi o primeiro discurso convincente para as massas que celebrava a inclusão material e simbólica de um povo odiado e não reconhecido pela elite. Esse discurso é hoje em dia inutilizável posto que seu lado B é racista, autoritário e criminalizado.

Não é apenas a elite que não tem discurso articulado e convincente. As classes populares não possuem uma narrativa agregadora e por conta disso está dividida em campos opostos e depende tanto da pessoa e da lembrança da experiência concreta do lulismo.

Essas eleições poderiam ser um campo de experimento interessante para este propósito. Como diz o arguto Luiz Carlos Bresser-Pereira, os proprietários têm poder de veto no capitalismo. Mas as classes populares, unidas por um ideário, podem forçar um ponto de compromisso mais profundo. Essa seria a ruptura real da República Velha que ainda nos governa. Convém sempre lembrar: não existe alternativa à soberania popular.

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