Se Haddad vencer, as forças democráticas estão prontas? Os movimentos e coletivos recentes, e as organizações de esquerda, virarão a página do golpe?
Por Jean Tible
Luiz Inácio Lula da Silva polariza as eleições presidenciais desde o segundo turno de 1989. Mesmo impedido de concorrer, continuará sendo o personagem principal da disputa desse ano. São oito eleições seguidas e quase três décadas de presença constante no topo da agenda política: um fenômeno mundial. Sua prisão visa impedir o que seria uma muito provável vitória eleitoral em outubro nesse golpe que se desdobra em várias fases e que prossegue seu curso; sua condenação se dá em num contexto de atropelos na justiça – grampos ilegais, condução coercitiva desnecessária, prazos acelerados, delações premiadas suspeitas, provas inexistentes…
Injustiça
O que significa e nos ensina essa exclusão de Lula do pleito e a caça a esse corpo?
Podemos pensar, por um lado, que o país não comporta nem mesmo um processo moderado de mudanças e um pacto mínimo de diminuição das nossas aberrantes desigualdades. Não querendo ceder absolutamente nada, as classes dominantes romperam o contrato básico eleitoral (ao tirar Dilma do cargo político máximo sem haver crime de responsabilidade). Desrespeitaram, assim, as regras elementares e jogaram baixo. Esse continuum escravocrata não tolera as brechas criadas e conquistadas – provocando uma tragédia com o Brasil, jogando-o numa espiral recessiva e numa sobreposição de crises (política, econômica, social, existencial). A fome – seu fim como símbolo maior das conquistas do período Lula – volta a rondar muita gente.[1] A austeridade, criminosa em qualquer canto do planeta, ganha outras camadas de perversidade por essas bandas.
Isso é ruim, inclusive para os donos do dinheiro e capital. Estariam eles agindo contra seus interesses? Sim, se pensarmos que os negócios vão mal. Não, pois o negócio deles é outro – como disse na quente década de 1970 italiana o Comitê Operário de Porto Marghera, ainda mais importante do que ganhar dinheiro é comandar (ou não perder poder);
O que devemos dizer antes de tudo é que é falso o lugar comum de que os patrões exploram os trabalhadores para se enriquecerem. Esse aspecto sem dúvida existe, mas a riqueza dos patrões não é em nada proporcional ao poder deles. Por exemplo, Agnelli [dono da FIAT], em proporção aos automóveis que produz, deveria andar vestido de ouro, porém ele se contenta com um barco e um avião privado, o que um outro patrão com uma fábrica bem mais modesta do que a FIAT pode muito bem se permitir. O que interessa a Agnelli é a conservação e o desenvolvimento do seu poder, que coincide com o desenvolvimento e o crescimento do capitalismo: quer dizer, o capitalismo é uma potência impessoal e os capitalistas agem como seus funcionários. (…) O capitalismo está substancialmente fundamentado, sobretudo, em conservar essa relação de poder contra a classe trabalhadora e usa o seu desenvolvimento para reforçar sempre mais esse poder.[2]
Por outro lado, numa linha que não necessariamente exclui a anterior, esse esclarecido setor (o andar de cima) percebeu uma mudança funda (e em certo sentido irreversível) em curso. Todo um tecido de vidas, de formas de existir e habitar as vias, vielas, aldeias, caminhos se formou nos últimos anos. Territórios libertos, às vezes mais fugazes, outros mais duradouros – sempre importantes. Marchas, grupos, associações, festas, hortas, ocupações, ações e criações mil constituem a irrupção singular de novas subjetividades preta, LGBTQ+, trabalhadora, periférica, feminista, indígena, múltiplas que desperta medo (todos os levantes brasileiros foram seguidos de uma brutal repressão – a revolta do malês de 1835 como um dos inúmeros exemplos). O golpe (que segue) como uma peculiar contra-revolução, desencadeada pelo temor da exuberância vital dos corpos livres, insubmissos, descolonizados, não domesticados. Daí as reações identitárias (branca, masculina, heteronormativa) que pululam e os ataques constantes às principais esferas de atuação (cultura, educação) dessas emergências.
Dois eventos trágicos que ocorreram esse ano (o assassinato de Marielle e a perseguição política e prisão do Lula), embora sejam acontecimentos envolvendo gerações diferentes, causas específicas e magnitude distintas, se conectam porque o recado que o país dá para a população é o seguinte: que os maus nascidos não têm lugar na política.[3] Estamos vivendo uma profunda crise política. A credibilidade do sistema é quase nula. Para compreendê-la, temos que retomar os acontecimentos de junho de 2013 que completaram 5 anos. Estes abriram um novo ciclo político e sua conjunção posterior com a crise econômica e de perspectivas para a população só aguçou um rechaço generalizado que ali se esboçou. Não surpreende que os partidos tradicionais do sistema político não tenham levado isso a sério, mas um deles, a ala esquerda do sistema político (o PT), poderia ter interpretado os sinais das ruas de forma mais aguçada, pois daí vêm suas origens.
Ao não conseguir ou querer seguir esse caminho, o PT contribuiu ao bloqueio de uma renovação imprescindível. Aí se expôs talvez o principal ponto fraco do projeto: Lula e o PT ajudaram decisivamente a abrir brechas, mas conjugando-as com uma falta de urgência em transformar as instituições produziram um curto-circuito. Esse paradoxo se expressa na (por ora) última entrevista de Lula na qual, em certos momentos, fala que seu governo provocou quase uma revolução pacífica, mas reiteradamente reafirma sua confiança nas instituições (pois ir contra estas seria seguir uma via revolucionária que ele rechaça, ao associá-la à luta armada).[4] Analisando o atual panorama político, brasileiro e latino-americano (já que estão intimamente conectados e indicam desafios que dialogam), essa aposta de Lula faz sentido? O que nos dizem os processos contra os 23 do Rio, os 18 de São Paulo e outros assassinatos? Uma política institucional que exclui essas expressões de esquerda, tanto as radicais quanto as moderadas, fomenta caminhos não-democráticos…
Perspectivas
Vemos essa crise que já era grande se aprofundando numa situação que é perigosa, pois os atores não cabem mais nas instituições e não se vê nenhuma possibilidade imediata de transformação destas, abrindo espaços para saídas autoritárias. Apesar dos acordos empresariais-midiáticos-judiciários (dentro e fora do Brasil), os golpistas não conseguiram convencer a população – predominaram num dado momento, mas logo afundaram com seu desastroso governo ilegítimo. Nisso reside sua “derrota estratégica”[5] – que tem uma longa trajetória: quando consultados, brasileiras e brasileiros não costumam carimbar nacionalmente com seu voto agendas anti-populares, numa certa constante desde 1945.[6] A partida está em curso. É verdade que (apesar dos protestos), não se ativou uma pulsão suficiente para impedir a injusta prisão de Lula, mas todas as pesquisas indicam um desejo coletivo predominante em votar nele e vê-lo de volta ao governo: eis um exemplo nítido da potência e limite do lulismo.
O contexto é delicado, no Brasil e no mundo. A extrema-direita está presente em cinco governos europeus, Filipinas, Israel e ainda Trump nos EUA. Isso ganha facetas preocupantes aqui, dado nosso histórico de campeões mundiais dos genocídios não interrompidos (essa máquina de moer gente – Darcy Ribeiro), e onde expressões desavergonhadas da direita extrema (res)surgem. A isso se soma a perigosa volta de um papel ativo político dos militares, com uma banalização progressiva desde meados dos anos 1990 das operações de GLO (garantia da lei e da ordem) e de indiciamentos de acordo com a vetusta Lei de Segurança Nacional. Sendo impossível a candidatura de Lula, Fernando Haddad surge como favorito à vitória na minha leitura. O deixarão ganhar? Estão as forças democráticas prontas para a situação que pode se configurar no país? Esse caldo de coletivos e movimentos que vem se formando nos últimos anos e as organizações tradicionais de esquerda estão preparadas para barrar ímpetos autoritários? Criemos os caminhos de lulas libertos.
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Escrevi esse texto a partir de um convite de Everaldo de Oliveira Andrade e Jean Pierre Chauvin para um livro-manifesto que ambos estão organizando. Agradeço a leitura e comentários de Martha Kiss, Alana Moraes, Ramon Szermeta e Hugo Albuquerque a uma primeira versão.
[1] https://apublica.org/2018/09/fome-oculta/
[2] https://libcom.org/library/recusa-do-trabalho-comitato-operaio-di-porto-marghera
[3] https://www.redebrasilatual.com.br/politica/em-curitiba-pais-de-marielle-falam-sobre-violencia-sofrida-pela-filha-e-prisao-de-lula
[4] Luiz Inácio Lula da Silva. A verdade vencerá: o povo sabe por que me condenam. São Paulo, Boitempo, 2018.
[5] https://jornalistaslivres.org/ze-dirceu-volta-para-a-peleja/
[6] André Singer. Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo, Companhia das Letras, 2018.
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