
Bolsonaro é resultado de um deboche mal resolvido somado à tradição secular brasileira de se apiedar da estupidez alheia. Bolsonaro foi tratado como doente nos trinta anos em que operou como engrenagem secundária de um sistema político apodrecido.
Elege-se um doente por comiseração, não por identificação. Na compreensão ampla de democracia, todas as tendências têm o seu direito a um quinhão de representação: os realizadores, os destruidores e os doentes (ou párias).
É o preço de se levar ao pé da letra o significado de democracia. É uma armadilha semântica e conceitual: em tese, ‘todos’ significa ‘todos’, até os destituídos da razão historicamente constituída.
Esse corolário democrático, evidentemente, deveria passar por proporções. À bestialidade reservar-se-ia pequenos nichos de representação, sobretudo para que se não esqueça da sua existência e materialidade.
Ocorre que a linguagem não é um animalzinho dócil e comportado. Do alto de uma democracia dos sentidos, a instituição ‘língua’ não pende naturalmente para o caminho racional da civilização.
A luta pelos sentidos é selvagem, violenta e predatória. Isso está em todo e qualquer livro sério de linguística do discurso, ciência política e/ou psicanálise que tenha sido escrito a partir dos anos 70.
A linguagem permite e comporta dissimulações, mentiras, blefes, distorções e ‘retorsões’ ideológicas de toda sorte. Sua organização semântica interna é produzida pela história e, portanto, a linha divisória entre a sanidade e a doença é também histórica.
A história nos trouxe até aqui, a essa ‘normalização’ do absurdo. Replica-se um movimento inclusivo de outro campo discursivo, o campo médico dos distúrbios. É delicado e arriscado fazer a analogia, mas eu não tenho medo (porque se trata de uma questão de ordem técnica): ao se encarar o distúrbio como ‘diferente’, o ‘inclusionismo’ abre um precedente para outros campos do discurso.
É preciso dizer que não critico as políticas de inclusão, pelo contrário. Critico o seu simulacro, sua deturpação aplicada a outro campo do sentido, o campo da ética.
No mundo da ética, não há espaço para 'inclusão'. Não se pode acolher o fascismo como um sentimento apenas ‘diferente’. Não se pode ressignificar aberrações anticivilizatórias a título de ‘democracia das ideias’. Isso caracteriza um simulacro de democracia e de inclusão.
Beira o risível, mas foi exatamente esse movimento semântico que se alastrou por nossa compreensão da realidade, sempre atravessada por muitas variáveis de ordem simbólica, estrutural e semiótica.
Toma-se a apologia ao estupro, a defesa da tortura, a incitação à violência e a fuga de debate como ‘direitos’ inseridos no bojo da ‘civilização’. Mais que ‘normalizado’, esse conjunto anti-histórico de vocalizações é, na verdade, ‘normatizado’.
O próprio direito vem tendo severas dificuldades em lidar com esse solavanco semântico. As invasões das universidades por forças policiais são a expressão máxima dessa descompensação dos sentidos. Ao se desabitar o campo da ética – de posse de uma lógica rudimentar – aniquila-se os parâmetros da humanidade e da própria democracia, em seu sentido amplo e conceitual.
Essa é a mola propulsora do retrocesso civilizatório embutido em Bolsonaro. Por isso ela é tão complexa e tão desafiadora. Fulanizou-se o caráter, a ética e a civilização, e esse processo tem também uma explicação independente.
Ao se insuflar o antipetismo anos a fio, com narrativas justiceiras e finalistas (“o fim da corrupção”), a imprensa, juntamente com segmentos conservadores da sociedade, abriu as condições para o advento da barbárie como estilo de vida.
O antipetismo nada mais é do que a anticivilização, a antivida, a antidemocracia. Do ponto de vista semântico, não há escapatória para esse vaticínio, com o perdão do apelo à verdade.
Porque, ao se contrapor ao ‘petismo’ (ou ao simulacro de ‘petismo’), parte da sociedade se contrapôs à inclusão social, à valorização do salário mínimo, à autoestima soberana, à democracia educacional, ao debate público permanente, à aceitação das derrotas eleitorais (o PT nunca contestou resultado de eleições), enfim, a todo um conjunto de sentidos associados à civilização e à democracia.
Era óbvio que o resultado disso seria a criação de um monstro fascista e totalitário.
Não foi, no entanto, só isso. Somada à baixeza moral que foi e é o antipetismo, a omissão em se denunciar e punir o bolsonarismo potencializou o poder de desagregação política que essa onda anticivilizatória promove.
A imprensa brasileira protegeu o bolsonarismo, apenas denunciado suas atrocidades aos 45 minutos do segundo tempo. É por isso que a tendência final das eleições é de virada para Fernando Haddad (PT).
O resultado de uma década inteira estimulando o antipetismo e de dois anos protegendo o bolsonarismo – o seu contrário, em termos políticos e semânticos – é o mergulho em uma onda fascista jamais imaginada por nenhum cientista político.
Esses movimentos da linguagem são muito poderosos e muito difíceis de reverter. Não há estratégia possível contra eles. Só a história, em sua inteireza coletiva e cronológica, tem a força para erodir retrocessos como esse que, a rigor, é também histórico.
A história brasileira, no entanto, está aprisionada. Está detida em nossa Guantánamo particular, também chamada de 'Curitiba'. Lula é o único político no mundo que entra em relação de sinonímia com a história. Ele ‘é’ a própria história encarnada em um sujeito.
Sua força, ainda que proscrita de maneira ilegal da cena do discurso e do debate, resiste e marca posições. Independente de qualquer resultado dessas eleições, o reencontro do Brasil com a civilização passa por Lula.
Ele tem a senha, o código, a legitimidade, a alma, o espírito e a inteligência para furar essa bolha de ódio que sequestrou o Brasil.
Mesmo com a vitória de Fernando Haddad – que se mostra difícil e desafiadora – as pazes com a democracia irão requerer o maior líder político vivo do planeta.
Política é sentido. É a possibilidade mesma de produzir sentido na civilização e no infinito complexo que caracteriza a linguagem humana.
Política não é política – sic. O sentido de política também foi criminalizado por nosso incipiente pensamento classista da sociologia de auditório. Política é linguagem. É a arena onde se disputam sentidos.
Essa eleição aboliu a disputa justamente porque um de seus lados não se submete à disputa democrática.
Se a população brasileira conseguir dar uma resposta neste domingo a esse sequestro civilizatório, será um feito e tanto. A experiência e a literatura mostram que ondas de ódio dessa magnitude levam mais tempo para serem vencidas.
De qualquer forma, o contra-movimento a essa estupidez generalizada já começou e vai produzir igualmente a maior reação democrática e humanista de toda história. Porque, são os movimentos naturais do discurso e do sentido: a profunda civilização do PT abriu espaço para a devastação desumanizada e torpe do bolsonarismo.
O bolsonarismo, mesmo derrotado nessas eleições, vai perdurar e ter-se-á que combatê-lo.
E esse bolsonarismo também irá reorganizar o espectro político, aproximando antigos adversários - o que já ocorre neste exato momento.
A história pode ser tomada pelo modo ‘civilização’, mas o que a estrutura é apenas um protocolo simbólico (o protocolo simbólico mais complexo possível): a linguagem humana. Como as partições do sujeito – id, ego e superego – a história tem também sua tripartição.
A história, aparentemente, é composta por ego-civilização, id-linguagem e superego-força bruta. E, tal como a psicanálise postula, o inconsciente (o id) não dispõe de padrões morais. É preciso o ‘eu’ e o gesto revolucionário e utópico da resistência seguida de mudança para que a civilização prossiga seu curso e nos permita viver uma vida plena de sentidos.
O embate, neste momento, é de movimento versus paralisia. O movimento é a civilização, é a democracia, é Fernando Haddad. E a paralisia é a barbárie, é o totalitarismo, é Bolsonaro.
A luta sempre só começa. A busca por direitos jamais se encerra. A afirmação da civilização deve ser conquistada todos os dias, a todo o momento.
O resultado desta eleição já é uma demonstração de força inequívoca da sociedade democrática brasileira. Porque, caso a verdade vença, apenas daremos início à reconquista da democracia. E caso a mentira vença, também iremos dar início a essa mesma reconquista.
O auto aniquilamento, o suicídio, a brutalidade, a paralisia são apenas subprodutos de um espancamento da linguagem, linguagem esta que, à sua maneira, responde, abrindo espaço para a reação política.
Diante desta devastação que tomou conta do país, todos nós teremos de aprender a fazer política de novo. Para não errar mais, para não brincar mais, para não morrer mais.
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