domingo, 31 de março de 2019

“Práticas da ditadura continuam”, diz diretora de documentário sobre delegado matador do Dops que virou pastor

            Publicado por Larissa Bernardes

Cláudio Guerra olha fotos de mortos e desaparecidos políticos (Foto: Divulgação)

Na última terça-feira (12), o DCM foi convidado a assistir uma exibição exclusiva do documentário “Pastor Cláudio”, escrito e dirigido pela cineasta Beth Formaggini.

A obra mostra o encontro entre Cláudio Guerra, ex-delegado responsável por assassinar e incinerar opositores à Ditadura Militar no Brasil, e Eduardo Passos, psicólogo e ativista dos Direitos Humanos, que trabalha no atendimento a vítimas da violência do Estado.

No longa, Cláudio, que hoje é pastor e membro ativo da comunidade evangélica, revela, dentre outros crimes, como fazia para desaparecer com corpos durante sua atuação no período da ditadura.

O filme estreia dia 14 de março nos cinemas, mês do aniversário de 55 anos do golpe militar de 1964 e um ano do assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Em entrevista exclusiva à repórter Larissa Bernardes, do DCM, Beth Formaggini conta como foi o processo da realização do longa.

Leia na íntegra:

DCM – Como surgiu a ideia para a realização do filme?

Beth Formaggini – Na verdade, o filme começa com uma história de amor, que é a história da Ivanilda [da Silva Veloso] e do Itair [José Veloso]. A Ivanilda é aquela viúva que está no filme. Eu fiz um filme com ela, que é o “Memória Para Uso Diário”, de 2007, que eu a acompanho nos arquivos tentando achar alguma evidência de que o Itair tivesse sido preso, porque ele desapareceu.

Ela não tinha nenhuma pista, então entrou com uma ação na Justiça e era uma coisa completamente contraditória, porque a própria Justiça que tinha que fornecer as provas para ela, arquivou o processo por falta de provas. Fui com ela em alguns arquivos e finalmente ela achou uma prova de que ele foi morto dentro das dependências de uma prisão do Estado.

Quando surgiu o livro do Cláudio Guerra, em 2012, que se chama “Memórias de Uma Guerra Suja”, eu vejo no livro que ele foi autor de vários crimes da Operação Radar. Essa foi a operação que matou o Itair. Ele [Guerra] assassinou, ocultou cadáver, então pensei “ele deve saber alguma coisa do Itair”.

Então, o filme foi motivado por isso. Eu pensei que poderia ajudar essa viúva a encontrar o corpo do marido ou saber se for incinerado…

DCM – Você tem algumas obras sobre a ditadura. Qual sua ligação com o tema?

BF – Eu tenho 3 filmes sobre a ditadura. O primeiro que eu fiz foi um curta sobre a Operação Radar, chama “Uma Família Ilustre”. Esses filmes representam uma necessidade que eu tenho de entender o país.

Eu sou historiadora de formação, e vivi nessa época, quando eu fiz 18 anos era o auge da ditadura, época do Médici.

DCM – Você chegou a sofrer perseguição na época da ditadura?

BF – Não, eu não fui militante, naquela época eu era muito jovem. Se eu tivesse nascido uns 4 anos antes, talvez tivesse participado da resistência e hoje nem estaria aqui conversando com você.

DCM – Como foi para você assistir aos depoimentos do pastor Cláudio durante a gravação?

BF – Muito difícil, assim como incomoda a vocês que estão assistindo. Foi muito difícil conviver com aquele assassino. Passamos uma tarde inteira com ele, entrevistando, e mais de um ano montando [o filme]. Assim… não foi fácil não.

DCM – Em determinado momento do filme o pastor diz que, mesmo após a abertura, a mentalidade da ditadura continua nos espaços de poder do país. Você concorda com esta afirmação?

BF – Existem assassinatos diários no Brasil cometidos pelo Estado, pela polícia, e essas práticas que surgiram na ditadura, continuaram ocorrendo. As mesmas práticas. Agora mesmo, deve ter alguém sendo torturado em alguma prisão, ou algum jovem sendo assassinado em uma favela. O Estado continua matando e torturando.

DCM – Com casos como o de Marielle agora, o filme se torna algo muito atual…

BF – Exatamente. Ele é feito para o presente, é um filme sobre o passado impregnando o presente e até o futuro. Ainda mais nesse momento que estamos vivendo.

DCM – Com essa onda de violência política, você teme por represálias ou boicotes ao filme?

BF – A gente teme, claro. Eu espero que não aconteça, porque acho que a liberdade de expressão é um direito humano. Eu espero que não aconteça nada. O importante é que o filme seja exibido e irá passar em 10 cinemas do Brasil todo, 10 cidades, e eu acho que terá muito debate. Acho que as pessoas irão começar a pensar sobre essa questão e é justamente nesse momento que precisamos conversar, pensar e debater.

DCM – No filme, o pastor Cláudio fala que agora seu comprometimento é com Deus e dá a entender que isto é o suficiente. Você acredita que essa suposta redenção basta?

BF – Não, eu acho que ele tem que ser julgado. Ele cometeu crimes e o Brasil assinou tratados que fazem com que esses crimes não possam ser perdoados. Como ele e ninguém foi julgado, essas práticas continuam. Eu acho que não tem perdão para essas ações, são crimes contra a humanidade.

DCM – Mudando um pouco de assunto… o cinema para você é um ambiente machista? Como que é para você ser uma mulher cineasta?

BF – É um ambiente machista sim. Quando eu comecei, era muito mais machista, mas hoje as mulheres estão conquistando cada vez mais espaço. Agora, você tem muitas diretoras mulheres. Normalmente, as mulheres ficavam mais restritas à produção, que é uma função que eu exerci e ainda exerço.

Hoje existem muitas diretoras bacanas e jovens, na minha época se contava nos dedos. As mulheres estão de fato se impondo e lutando contra esse machismo. Em um festival, por exemplo, você vai ver a comissão e são todos homens, a comissão de seleção de projetos e editais, tudo homem. Teve um levantamento agora na Ancine, o número de mulheres é muito inferior ao número de homens que conseguem ter acesso à verba para produzir.

Mas, acho que, mesmo assim, temos conquistado um espaço muito grande. Principalmente essa garotada jovem que me inspira muito.

DCM – Com o governo Bolsonaro e a extinção do ministério da Cultura, como você acha que ficará a produção audiovisual no país? Teme por uma recessão?

BF – Com certeza, acho que existe esse risco.


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