sábado, 31 de agosto de 2019

A MÍDIA NORTE-AMERICANA E O INIMIGO IRANIANO - Se você quer a guerra, prepare-se para a guerra

Resultado de imagem para Conflito EUA e Irã

por Serge Halimi e Pierre Rimbert

Os incidentes entre Irã e Estados Unidos se multiplicam. Desde que o presidente Donald Trump decidiu abandonar o acordo nuclear assinado com Teerã pelas grandes potências em 2015, durante o mandato de Barack Obama, assiste-se a uma sucessão de drones abatidos, declarações marciais e embargos. A imprensa norte-americana não é um ator alheio a essa escalada

Imaginemos que um drone iraniano seja abatido acima da Flórida ou a poucos quilômetros de sua costa. Em vez de debater a localização exata do dispositivo, as pessoas certamente iriam estranhar sua presença a 11 mil quilômetros de Teerã. Mas quando, em 20 de junho, o Irã destruiu um drone norte-americano que havia rondado seu território (versão do Pentágono) ou que o havia sobrevoado (segundo Teerã), ninguém ou quase ninguém questionou a pertinência da presença militar norte-americana no Golfo. O tratamento assimétrico da mídia ocidental, dependendo se o país que viola o direito internacional é uma democracia liberal (boazinha) ou um país autoritário (perverso), não levanta mais objeções.

Em um clima de escalada de tensão entre Washington e Teerã, “apresentar constantemente o Irã como uma ameaça, nuclear ou não, induz à mensagem de que ele deve ser atacado”, adverte Gregory Shupak, especialista em mídia da Universidade de Guelph-Humber (Canadá). No entanto, ele acrescenta: “Dizer que são os Estados Unidos que ameaçam o Irã seria muito mais respeitoso com a verdade do que fingir o contrário. Afinal de contas, é o governo de Washington que está destruindo a economia iraniana por meio de sanções que restringem o acesso da população a alimentos e remédios, e que cerca o Irã de bases militares e de forças armadas ao mesmo tempo terrestres, marítimas e aéreas. Por seu turno, o Irã não faz nada comparável com os Estados Unidos”.1

Essa reversão, que favorece “espontaneamente” a potência norte-americana, apoia-se sobretudo na memória seletiva, uma mistura de fabricação política do esquecimento e de mentira midiática por omissão. Dessa forma, quem no Ocidente se lembra do voo 655 da Iran Air? Em 3 de julho de 1988, o cruzador norte-americano USS Vincennes, que patrulhava águas territoriais iranianas, destruiu um avião de carreira que transportava 290 passageiros para Dubai. Os Estados Unidos primeiro negaram ter responsabilidade, depois argumentaram que o Vincennesnavegava em águas internacionais e que o Airbus iraniano, que eles confundiram com um avião de caça, descia ameaçadoramente em direção ao cruzador – duas mentiras, depois reconhecidas, a ponto de os Estados Unidos expressarem seu “profundo pesar” e pagarem US$ 61,8 milhões para as famílias das vítimas.

Se esse caso foi rapidamente esquecido – exceto no Irã… –, outro, comparável e no entanto mais antigo, marcou por muito tempo as memórias ocidentais. Em 1º de setembro de 1983, um caça soviético Sukhoi pulverizou um Boeing 747 da Korean Air Lines (KAL) que ligava Seul a Nova York com 269 passageiros a bordo. Em plena Guerra Fria, o avião acidentalmente tinha se desviado de sua rota e entrado no espaço aéreo soviético no meio da noite, acima de instalações militares sensíveis. O Kremlin explicaria que havia confundido uma aeronave da aviação civil com um aparelho de espionagem. Amplamente documentados, esses dois dramas, o iraniano e o coreano, fornecem os elementos de uma situação quase experimental: a diferença entre o tratamento midiático do voo KAL 007 e do voo 655 da Iran Air fornece a medida exata do viés ideológico da imprensa ocidental, em particular da imprensa norte-americana, no entanto citada como exemplo em todo o mundo.

No dia seguinte à destruição do Boeing 747 pelo caça soviético, o editorial do New York Times (2 set. 1983), intitulado “Assassinato aéreo”, afirmava: “Não se pode conceber nenhuma desculpa quando uma nação, seja ela qual for, abate um avião de carreira inofensivo”. Cinco anos depois, ao tratarem de um disparo do Exército norte-americano, as justificativas deixaram de ser inconcebíveis. “Embora a coisa seja horrível, foi um acidente”, sublinhou outro editorial do mesmo jornal. “É difícil ver o que a Marinha norte-americana poderia ter feito para evitá-lo” (5 jul. 1988). E o New York Times convidou os leitores para uma experiência intelectual incomum: “Coloquem-se no lugar do capitão Rogers [William C. Rogers, que ordenou o disparo do míssil]. É difícil culpá-lo por ter atirado no avião”. Ainda mais, acrescenta o grande diário liberal, pelo fato de os erros serem compartilhados: “O Irã também é responsável, porque não impediu que aeronaves civis se aproximassem da área de um combate que ele próprio havia ensejado”.2

Em um estudo comparativo das duas tragédias publicado em 1991, o professor de Ciência Política Robert Entman destacou que, no caso do ataque soviético, a estrutura geral escolhida pelos meios de comunicação norte-americanos “insistiu na falência moral e na culpa da nação na origem do disparo, enquanto no segundo caso diminuiu a culpa e enfatizou os problemas complexos relacionados às operações militares nas quais a tecnologia desempenha papel fundamental”.3

Esse tratamento com geometria variável é encontrado na importância dada ao sujeito, no registro lexical e na representação das vítimas. Durante as duas semanas seguintes ao acidente, a destruição do voo da KAL foi objeto de uma cobertura duas a três vezes mais importante que a do voo da Iran Air: 51 páginas na Time e na Newsweek em um caso, 20 no outro; 286 artigos contra 102 no New York Times. Depois do ataque soviético, as capas das revistas norte-americanas rivalizaram em termos de indignação: “Assassinato aéreo. Uma emboscada impiedosa” (Newsweek, 13 set. 1983); “Atirar para matar. Atrocidade no céu. Os soviéticos derrubam um avião civil” (Time, 13 set. 1983); “Por que Moscou fez isso” (Newsweek, 19 set. 1983). Mas, se o míssil fatal carrega o estandarte estrelado, há uma mudança de tom: não é mais uma questão de atrocidades e muito menos de intencionalidade. O registro muda de ativo para passivo, como se o massacre não tivesse autor: “Por que aconteceu?”, título da Newsweek (18 jul. 1988). A Time prefere reservar sua capa para as viagens espaciais em Marte e relega o drama aéreo a páginas internas, com o título: “O que falhou no Golfo”. Os qualificadores mais comuns nos artigos do Washington Post e do New York Times são, em um caso, “brutal”, “bárbaro”, “deliberado”, “criminoso” e, no outro, “por engano”, “trágico”, “fatal”, “compreensível”, “justificado”. Até mesmo o olhar dirigido às vítimas se embaça ou endurece de acordo com a identidade de seu assassino. Precisamos especificar nesse ponto a quem os jornalistas norte-americanos reservam os termos “seres humanos inocentes”, “histórias pessoais comoventes”, “pessoas amadas” e aqueles, mais sóbrios, “passageiros”, “viajantes” ou “pessoas que morreram”?

Esses automatismos de escrita contribuem tanto para a desinformação como para as mentiras características, exceto pelo fato de que a decodificação dos preconceitos dos membros da Otan se mostra menos na moda que a das fake news. “Os persas mentem como mercadores de tapetes”, escreveu Richard Cohen, editorialista do Washington Post (29 set. 2009). Bret Stephens, para quem o acordo de Barack Obama com o Irã era “pior que Munique” (The Wall Street Journal, 25 nov. 2013), tornou-se desde então um dos colunistas estrelados do New York Times. Nem o esquartejamento por serra de um colaborador do Washington Post – o jornalista Jamal Kashoggi, em outubro de 2018 –impediu o fluxo de complacência para com a monarquia saudita, inimiga do Irã. Às vezes, mesmo numa rede pública como a PBS, na qual preferir o novo presidente dos Estados Unidos ao anterior é considerado uma imperdoável falta de gosto, essa regra não é mais válida quando se trata do Irã: “O presidente Obama esperava que o Irã se moderasse e se tornasse um membro mais conveniente da família das nações. Ele se enganou completamente”, estima o colunista-estrela David Brooks (11 maio 2018). “Eles [o Irã] são a nação mais genocida da Terra; exportam violência e terror para todo o mundo. Trump, portanto, tem razão em resistir a eles. Talvez ele entenda melhor as pessoas dessa espécie do que aquelas com uma brilhante trajetória escolar.” Porque, quando se trata de preparar a opinião pública para a guerra, é melhor não saber nada sobre a história do país visado nem sobre sua civilização.

Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é da direção do Le Monde Diplomatique.

1 Gregory Shupak, “Creating a climate for war with Iran” [Criando um clima para a guerra com o Irã], Fairness & Accuracy in Reporting (Fair), 2 jul. 2019. Disponível em: .

2 “KAL 007 e Iran Air 655. Comparing the coverage [KAL 007 e Iran Air 655. Comparando a cobertura], Extra!, Nova York, n.4, jul.-ago. 1988.

3 Robert Entman, “Framing US coverage of international news: Contrasts in narratives of the KAL and Iran incidents” [Enquadrando a cobertura norte-americana de notícias internacionais: contrastes nas narrativas dos incidentes da KAL e do Irã], Journal of Communication, v.41, n.4, Washington, DC, dez. 1991. As citações e dados seguintes foram retirados desse artigo. Agradecemos a Chloé Bonnafoux por sua pesquisa sobre o assunto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12