sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Precisamos falar sobre suicídio entre policiais

Estudo aponta que número de casos dobrou em 2018. São, na maioria, homens de baixa patente com tendência da prática seguida de homicídio — principalmente de parceiras amorosas, o que pode ser explicado por perfil machista da corporação



Por André Cabette Fábio, no Nexo

Um relatório do Gepesp (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção), divulgado na terça-feira (27), apontou que o registro de suicídios de policiais em 2018 praticamente dobrou na comparação com o ano anterior. Os dados englobam 19 estados brasileiros.

Desde 2016, a entidade vem buscando chamar a atenção para o suicídio entre as polícias do Brasil por meio da publicação de relatórios sobre o tema. O grupo destaca, no entanto, que os números divulgados são incompletos – a maior parte das forças policiais do país não publica dados oficiais sobre o assunto.

O Gepesp foi criado em 2013 e estabeleceu uma rede de profissionais do campo da segurança pública que coletam, por meio de informantes, dados sobre suicídios nas polícias militares e civis, nos corpos de bombeiros, na Polícia Federal e na Polícia Rodoviária Federal.

Ao Nexo, a coordenadora Dayse Miranda ressalta a importância de haver esforço institucional dedicado a coletar os números e abordar o tema. A Ouvidoria da Polícia de São Paulo faz essa contabilidade e apontou, em fevereiro de 2019, que mais policiais do estado morreram por suicídios ao longo de 2018 do que durante confrontos em serviço.

Mas este relatório traz poucas informações sobre o perfil dos suicidas, e as circunstâncias dos suicídios.

Como a pesquisa foi realizada

A coleta ocorreu em fontes como registros de ocorrências, notificações por WhatsApp e páginas de veículos de imprensa.

As informações são verificadas e organizadas em um banco de dados com nome da vítima, idade, estado civil, vínculo institucional e patente. Também são registradas as circunstâncias do suicídio, a forma como ele foi realizado e o que se sabe sobre os motivos, além de narrativas de amigos e colegas. Os casos são organizados nas seguintes categorias:

Suicídio consumado; tentativa de suicídio; homicídio seguido de suicídio; e mortes por causa indeterminada, quando há suspeita não confirmada de que se tratou de um suicídio.

Como o gênero aparece nos casos

O trabalho ressalta que pesquisas nacionais e internacionais indicam que homens morrem mais por suicídios do que mulheres, o que corresponde aos dados coletados. Uma exceção foi o estado de Alagoas, em que houve registro de três mortes por suicídio de policiais militares do sexo feminino, e apenas um suicídio de homem.

Além disso, em 99% dos casos de suicídios seguidos de homicídios, os autores eram homens. Em todos os casos de autoria masculina, as vítimas eram mulheres e filhos. Praticamente todas as ocorrências são associadas a conflitos com parceiras amorosas.

Isso, diz o estudo, está de acordo com pesquisas da área de criminologia realizadas nos Estados Unidos, que sugerem que “a probabilidade de suicídio em seguida ao homicídio tende a aumentar com os vínculos pessoais com a vítima”.

As pesquisas americanas também indicam que esse comportamento segue o mesmo padrão de gênero observado no relatório entre profissionais de segurança: em mais de 90% das pesquisas, autores de homicídios seguidos de suicídios são homens, e entre 75% e 90% das vítimas eram mulheres.

Apenas um caso de homicídio seguido de suicídio reportado pelo Gepesp foi de uma mulher, que assassinou sua filha e depois se matou.

O Nexo conversou com a coordenadora do Gepesp, Dayse Miranda, sobre os resultados do estudo e o que mudou na relação das polícias com o assunto.

O que a pesquisa indica?

Dayse Miranda Identificamos uma nova tendência que não havíamos percebido em 2017 ou 2016. Em 2018, identificamos vários casos de homicídio seguido de suicídio. É um fenômeno muito estudado nos Estados Unidos. No Brasil não há estudos sobre o tema, o que não significa que o problema não exista.

Normalmente esse tipo de morte não tem a ver só com homicídio ou suicídio, é fundamentado em conflitos de gênero, do homem que mata a namorada e depois se mata. Ou da mulher mata os filhos e depois se mata.

Como a Polícia Militar é tradicionalista, machista, seria de esperar que fosse comum ouvir falar desse tipo de problema ligado a gênero. Mas eu nunca tinha visto essas questões na força de segurança pública.

O crescimento das mortes de mulheres no Alagoas é um dilema que se destacou. As equipes de lá estão se desdobrando para entender. Esse crescimento continua em 2019, por isso eles estão preocupados.

Outra coisa interessante é que nas pesquisas anteriores que fizemos, os motivos mais citados estavam ligados a questões amorosas e do trabalho, de abuso de poder, violência verbal e humilhações.

Nesta pesquisa, os motivos que mais encontramos estão ligados a problemas de saúde mental, seguidos de conflitos conjugais.

Quais são as limitações dos dados coletados?

Dayse Miranda Os profissionais têm medo de colaborar por medo de retaliações. Mas [os dados] são de interesse público, porque segurança pública é do interesse de todos. Mesmo assim, temos sido mais procurados, e a contabilização de 2019 já é maior do que a de 2018 inteiro.

O número é muito baixo em proporção ao que é na realidade. Eu falo disso com base nos dados da Ouvidoria de São Paulo, que contabilizam só no estado quase o que conseguimos em 19 estados [em 2017 e 2018, 71 policiais morreram por suicídio em São Paulo, segundo a entidade paulista].

Isso mostra que é um levantamento com muitas lacunas. Mas assumimos esse risco justamente para fazer um boletim que dê visibilidade a elas. As instituições não têm a cultura de coleta de dados, e queremos dizer que elas podem produzir seus próprios boletins para facilitar a produção de políticas institucionais de prevenção.

Mesmo o relatório da Ouvidoria de São Paulo não tem dados sobre o perfil de quem se suicida. Eu quero saber mais sobre a vida desse policial, se ele morreu passando por algum tratamento, se ele tinha um bom relacionamento na instituição, seu desempenho. Isso pode ser organizado com a integração de bases de dados por departamentos de recursos humanos. O Gepesp acompanha e dá subsídio às instituições que querem fazer isso.

O que mudou na forma como o suicídio é abordado nas polícias?

Dayse Miranda Tive o primeiro contato com o tema em 2005, quando eu ainda era estudante de doutorado na USP [Universidade de São Paulo], e fui convidada pela polícia do estado a conhecer esse problema. Mas, infelizmente, eu não tive a oportunidade de incluir a questão na tese.

Em 2010, comecei o pós-doutorado no Rio de Janeiro, e voltei ao tema. Ninguém tinha ideia de onde estavam os casos. O próprio comandante disse para eu estudar violência doméstica. Quatro anos depois, conseguimos publicar o livro [Por que policiais se matam], e obtivemos financiamento do Ministério da Justiça para estudar o tema. Fomos à Bahia e vários outros estados. Hoje, vejo que as instituições começaram a se abrir.

Em setembro vai acontecer o primeiro seminário sobre suicídio da segurança pública organizado pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal e financiado pelo PNUD. Formos selecionados para dar consultoria técnica, compor as mesas, formar os multiplicadores e elaborar a publicação.

Isso mostra que as instituições começaram a entender que podem fazer algo. Mas ainda não entenderam que precisam coletar dados.

Há diferenças na forma como as polícias abordam o tema?

Dayse Miranda Isso é muito claro no estado de Alagoas, que acabou de lançar uma campanha sobre suicídio entre policiais. A Polícia Militar está completamente comprometida com o tema, fizeram um simpósio, criaram uma cartilha de conscientização, estão construindo um relatório e criando um primeiro manual de prevenção da vida.

Eles sabem que isso é muito sério e estão dedicados. Você tem no estado do Ceará o programa “Vidas Preservadas”, uma iniciativa do Ministério Público que não é voltada só para segurança pública. A proposta é integrar todas as instituições que possam estabelecer uma rede contra suicídio. São iniciativas recentes.

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