domingo, 24 de novembro de 2019

As ameaças da Era de Zuckerberg

           Por Roberto Savio 
Créditos da foto: (Reuters)

Neste ano, a Web completa 30 anos. Pela primeira vez desde 1435, um cidadão do Brasil pode intercambiar seus pontos de vista e informação com outro na Finlândia. A Internet, a infraestrutura de comunicações para a Web, é um pouco mais antiga. Foi desenvolvida a partir da ARPANET, um projeto do Departamento de Defesa dos Estados Unidos acolhido pela Agência de Projetos Avançados de Investigação. Desenhada por militares para descentralizar as comunicações em caso de um ataque militar, a rede permitiu aos cientistas uma rede de comunicação por correio eletrônico nas universidades. Logo, em 1989, na sede da Organização Europeia de Investigações Nucleares (CERN), com sede na Suíça, o engenheiro Tim Berners-Lee inventou o hipervínculo, e a Word Wide Web Mundial (ou a Web, como se conhece atualmente) passou rapidamente da automatização do intercâmbio de informação científica entre universidades e instituições de investigação à etapa dos primeiros sítios web disponíveis para o público em geral. Em 2002, apareceram as primeiras redes sociais, como sítios web especializados: o LinkedIn surgiu em 2003, o Facebook em 2004, o Twitter em 2006, o Instagram em 2010, entre outros.

Minha geração entendeu a chegada da Web como uma grande oportunidade para a democracia. Baseávamos-nos na revolução iniciada por Gutenberg, que mudou o mundo em 1435. Ao se superar a era dos manuscritos escritos pelos monges e que só eram lidos por algumas poucas pessoas nos monastérios, a partir da invenção das primeiras máquinas de imprensa reutilizáveis, o resultado foi que em apenas 20 anos cerca de oito milhões de cópias de livros impressos passaram a circular por toda a Europa. Entre outras coisas, esse avanço também significou a criação de informação. Quem até então tinha um limitado horizonte de conhecimento, pouco além do seu ambiente mais imediato, podia, de repente, ter acesso a informação sobre o seu país, e inclusive sobre todo o mundo. O primeiro jornal foi impresso em 1605, em Estrasburgo. A partir desse momento, e até 1989, o mundo se encheu de informação.

Porém, essa informação tinha graves limitações. Era uma estrutura vertical. Só algumas poucas pessoas enviavam notícias a um amplo número de destinatários, sem possibilidade de retroalimentação. Não era um processo participativo, requeria grandes investimentos iniciais e era facilmente utilizado pelos poderes econômicos e políticos. Enquanto isso, no chamado Terceiro Mundo, o sistema de meios era parte do Estado. Em 1976, cerca de 88% dos fluxos mundiais de notícias emanavam de somente três países: Estados Unidos, Reino Unido e França. As agências de notícias internacionais com sede nessas três nações incluíam a Associated Press (AP), United Press International (UPI), Reuters e Agence France Presse (AFP), e quase todos os meios de comunicação do mundo dependiam dos seus serviços de notícias. Algumas agências alternativas de notícias, como Inter Press Services, só podiam fazer sombra a esse monopólio. Contudo, as matérias produzidas por esses meios ocidentais, em geral, eram como uma janela voltada a somente uma parte do mundo.

Então veio a Internet, e com ela a comunicação horizontal. Todo receptor passou a ser também um emissor. Pela primeira vez desde 1435, os meios de comunicação já não eram a única janela ao mundo. Pessoas com ideias em comum podiam manter relações sociais, culturais e econômicas. Essa mudança ficou evidente na Conferência Mundial da Mulher, realizada pela ONU (Organização das Nações Unidas), em 1995, na cidade de Pequim. As mulheres criaram suas redes e chegaram ao encontro com um plano de ação em comum. Os governos não estavam tão preparados, mas a organização dos movimentos de mulheres permitiu que a Declaração de Pequim fosse um ponto de inflexão, completamente diferente à suaves declarações das quatro Conferências Mundiais anteriores. Outro bom exemplo foi a campanha para eliminar as minas terrestres antipessoais, iniciada pela ativista canadense Jody Williams, em 1992 e que, em muito pouco tempo, se tornou uma grande aliança de organizações não governamentais, com atuação em mais de 100 países. Sob crescente pressão, a Noruega decidiu apresentar o tema à ONU, donde os Estados Unidos, a China e outros fabricantes de minas terrestres (como a Rússia e outros países da ex-União Soviética), tentaram bloquear o debate, declarando que votariam contra. Mas os ativistas não esmoreceram, e em 1997, um total de 128 países adotaram o Tratado de Proibição de Minas, com o voto contra dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Um vasto movimento global foi mais poderoso que o papel tradicional do Conselho de Segurança. A Internet se transformou em uma ferramenta para criar alianças mundiais.

Esses são só dois exemplos de até que ponto a Internet poderia mudar o sistema tradicional de soberania estatal. A Internet superou as fronteiras nacionais para entrar numa nova era. Simbolicamente, nos trouxe da Era de Gutenberg à Era de Zuckerberg – para citar o inventor do Facebook como referência deste novo momento, e também porque ele representa uma das instâncias que mais deu errado nessa transição.

A Internet chegou a nós com uma força sem precedentes. O rádio tardou 38 anos em alcançar uma audiência de 50 milhões de pessoas. A televisão precisou de 13 anos para isso. A Web, por sua vez, levou somente quatro para chegar a essa cifra. Logo, chegaria a um bilhão de usuários em 2005, dois bilhões em 2011, a agora já tem 3,5 bilhões de usuários, sendo que a grande maioria deles usa constantemente as redes sociais. Assim, os dois pilares tradicionais do poder, do sistema político e do sistema econômico, também tiveram que aprender a usar a Internet. Os Estados Unidos é um bom exemplo. Todos os meios estadunidenses (publicações nacionais e regionais) imprimem um total de 50 milhões de cópias diárias. Jornais de qualidade – os grandes diários conservadores, como o The Wall Street Journal, ou os mais progressistas, como o Washington Post e oi New York Times – são responsáveis por um conjunto 10 milhões de cópias por dia. Só o presidente Donald Trump tem 73 milhões de seguidores em sua conta de Twitter, que leem suas mensagens publicadas em tempo real. E muitos deles não compram diários.

A evolução da Web teve dois efeitos imprevistos. Um deles foi o enorme fomento à sociedade de consumo. Hoje em dia, os orçamentos publicitários são dez vezes maiores que os educativos, e a educação só dura alguns poucos anos, em comparação com toda uma vida exposta à publicidade. Com o desenvolvimento das redes sociais as pessoas – agora mais consumidoras que cidadãs – se tornaram o objetivo da comercialização dos bens e serviços, e, recentemente, também das campanhas políticas. Todos os sistemas de informação e comunicação extraem nossos dados pessoais e nos vendem às empresas, em listas de consumidores em potencial. Agora, o televisor pode nos observar enquanto nós o assistimos. Os telefones inteligentes se tornaram microfones que escutam nossas conversas. A noção de privacidade desapareceu. Se pudéssemos ter acesso aos nossos dados, descobriríamos que nos seguem a cada minuto do dia, inclusive em nossos dormitórios. Algoritmos secretos criam perfis de todos nós e com base neles, as plataformas nos direcionam a notícias, produtos e pessoas que esses algoritmos acreditam que nós vamos gostar, e assim nos isolam em nossas próprias bolhas. A inteligência artificial aprende dos dados que acumula. A China, com uma população de 1,3 milhão de pessoas, proporciona mais dados aos seus investigadores a Europa e os Estados Unidos juntos. A Internet deu origem a uma economia extrativista digital, onde a matéria prima já não é o mineral, mas sim os seres humanos.

A outra evolução que deu errado tem a ver com a riqueza sem precedentes criada pela economia extrativista digital.

O CEO da Amazon, Jeff Bezos, se divorciou recentemente de sua esposa. Como parte do acordo, ela recebeu 36 bilhões de dólares, mas Bezos continua sendo uma das 10 pessoas mais ricas do mundo. Esta é apenas uma das histórias que mostra a cada vez mais triste realidade da injustiça social, num mundo onde 80 das pessoas mais ricas possui a mesma riqueza que quase 3 bilhões de pobres.

Nesse contexto, um novo setor está evoluindo: o setor do “capitalismo da vigilância”, onde o dinheiro não se obtém da produção de bens e serviços, mas sim a partir dos dados extraídos das pessoas. Este novo sistema explora os seres humanos para proporcionar aos proprietários desta tecnologia uma concentração de riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na história. A capacidade de desenvolver reconhecimento facial e outros instrumentos de vigilância já não se encontra no campo da ficção científica. O governo chinês deu a cada um dos seus cidadãos um número digital, onde registram todos os seus comportamentos “bons” e “ruins”. Se um cidadão apresenta uma queda em seu saldo de bondades e maldades, até um determinado nível reprovável aos olhos do Estado, seus filhos poderão perder direitos a educação, ou esse mesmo cidadão poderia ter restrições a viajar de avião ou de trem. Essas tecnologias logo estarão sendo usadas em todo o planeta. A cidade de Londres tem agora 627 mil câmeras de vigilância, uma para cada 14 cidadãos. Em Pequim, há uma para cada 7 cidadão. Um estudo realizado pela The Rand Corporation estima que a Europa poderia chegar a ter uma câmara por cada 7 cidadãos em 2050.

A inter-relação entre democracia e Internet está criando agora uma consciência tardia no sistema político. O Parlamento Europeu acaba de publicar um estudo sobre o impacto negativo da Internet. Estes impactos são:

1. O vício em Internet

Existe unanimidade entre os médicos e sociólogos sobre a chegada de uma nova geração, muito diferente da anterior. Mais de 90% das pessoas de entre 15 e 24 anos usa a Internet, enquanto entre as maiores de 55 anos, esse número é de 11%. Os jovens passam 21 horas por semana no computador, e 18 horas no telefono inteligente. Isso deixa pouco tempo para a interação social e cultural. Cerca de 4,4% dos adolescentes europeus demonstram sintomas de um uso patológico de Internet, “que afeta suas vidas e sua saúde”. A Academia Estadunidense de Psicologia incluiu oficialmente o vício em Internet como uma nova doença. Os estudos de ressonância magnética das pessoas com Transtorno de Adição à Internet mostram as mesmas alterações de estrutura cerebral que as que sofrem de vício a drogas, ou ao álcool.

2. Danos ao desenvolvimento cognitivo

Há um alarme especial no mundo científico a respeito das crianças menores de dois anos. O uso da tela por mais de 20 minutos por dia reduz parte do seu desenvolvimento neuronal. As pessoas empurradas ao isolamento tendem a desenvolver sintomas de angústia, ira, perda de controle, retraimento social, conflitos familiares e uma incapacidade para atuar na vida real. Nas provas realizadas, os usuários de Internet foram mais rápidos que os não usuários na busca de dados, mas menos capazes de entendê-los.

3. Sobrecarga de informação

A condição dos que manejam informações demais dificulta a capacidade de compreender um problema ou de tomar decisões efetivas, um tema importante para os gerentes, os consumidores e os usuários das redes sociais. Segundo Microsoft, o tempo de atenção em um título passou de 12 segundos em 2000 a 8 segundos em 2016, e a atenção à leitura passou de 12 a 8 minutos. Pode-se usar dois termos novos sobre esse tema: primeiro estaria o “cérebro emergente”, que descreve uma menor capacidade cerebral para se adaptar ao ritmo mais lento da vida real, e, em segundo lugar, a “neuroplasticidade”, ou a habilidade de modificar o comportamento depois de uma nova experiência. A imersão frequente em mundos virtuais pode reduzir a neuroplasticidade, e também tornar mais difícil a adaptação ao ritmo mais lento da vida real. A necessidade de competir em velocidade entre os canais de redes sociais é bem conhecida. Por exemplo, a Amazon estima que um segundo de atraso no rendimento custaria cerca de 1,16 bilhões em perdas nas vendas por ano.

4. Efeitos nocivos sobre o conhecimento e as crenças

O fato de que as redes sociais deliberadamente tendem a reunir os usuários com pontos de vista, gostos e hábitos similares está fragmentando a sociedade de uma forma negativa para a democracia, o que resulta em sistemas fechados, que não permitem pontos de vista alternativos. Os adolescentes já não discutem temas importantes. Vão ao seu mundo virtual e se encontram com aqueles que são de outro grupo, tendem a se insultar mutuamente. A Internet está cheia de notícias falsas e informação enganosa, e por isso os usuários enfrentam grandes dificuldades para distinguir as informações precisas das informações inexatas. As câmeras de ressonância parecem ser muito mais penetrantes, e podem unir as pessoas com posições políticas e ideológicas mais extremas, soterrando as possibilidades para o discurso civil e a tolerância, apoiando a radicalização.

5. Danos às fronteiras público-privadas

A Internet dilapida a distinção entre o âmbito privado e o espaço público. Podemos dizer que, nos dias de hoje, a vida privada já se tornou pública. Isso é especialmente negativo para os adolescentes, que perdem o concepto de privacidade, por exemplo, ao enviar fotos privadas através da Internet. Uma observação importante é que os adolescentes agora obtêm sua educação sexual através da pornografia, onde as mulheres costumam ser mostradas como um objeto para satisfazer as fantasias sexuais dos homens. Isso, por sua vez, creia uma tendência de desrespeito às mulheres e uma nova geração sob o risco – por novas razões – de aprofundar a sociedade patriarcal. As violações grupais contra garotas são um claro resultado desta tendência.

6. Danos às relações sociais

A Internet é, claramente, um poderoso instrumento para criar novas comunidades. Entretanto, quando se usa negativamente, também pode prejudicar as comunidades, devido à migração à Internet de muitas atividades humanas, como compras, comércio, socialização, ócio, atividades profissionais e interação pessoal. Essa migração cria comunicação empobrecida, incivilidade e falta de confiança e compromisso.

7. Danos à democracia

A Internet tem sido uma ferramenta poderosa para a participação popular. E, portanto, também para a democracia. No entanto, o estudo mostra com preocupação que um número cada vez maior de atividades também pode ser prejudicial para a democracia. Estas atividades incluem: a) a incivilidade de muitos discursos políticos comuns no mundo virtual, b) a polarização política e ideológica, possibilitada de uma forma única pelo uso da Internet; c) a desinformação e, em particular, as notícias falsas, d) a manipulação dos eleitores através da elaboração de perfis baseados na informação coletada nas redes sociais. Todos sabemos o que aconteceu nas eleições estadunidenses com os dados da Cambridge Analytica, reunidos através do Facebook, e como os milhares de usuários web falsos e o uso bots interferem, fortemente nas eleições atuais.

Deveríamos agregar a este estudo outras considerações. A primeira é que as finanças agora também se executam mediante algoritmos. Os algoritmos não só decidem quando vender ou comprar ações, como também onde investir. Os fundos cotizados em bolsa no mês de outubro alcançaram 14,4 bilhões de dólares em intercâmbios, mais que os negociados pelos seres humanos. Esta tendência continuará com o desenvolvimento da inteligência artificial, e logo as finanças se tornarão ainda mais desumanizadas. Inclusive quando os usuários da Internet invistam por si mesmos, também estarão sob a direção de máquinas e algoritmos.

Uma segunda consideração é que os jovens leem cada vez menos. Ler um livro é muito diferente a deslizar por uma tela. Estamos experimentando uma redução progressiva nos níveis de cultura. Não é raro ver estudantes universitários que cometem erros gramaticais e ortográficos. Recordemos que quando a Internet ainda era coisa nova, e seus defensores nos disseram que “o importante não é ter o conhecimento, mas sim saber como encontrá-lo. Dependemos cada vez mais dos motores de busca, aprendemos cada vez menos e somos incapazes de conectar esses dados em um sistema pessoal lógico e holístico.

É evidente a necessidade de uma regulação para reduzir os aspectos negativos da Internet e reforçar os valores positivos. Os proprietários das plataformas de redes sociais se encontram agora sob cada vez maior pressão, e por isso vêm tomando o caminho da autorregulação. O Twitter, por exemplo, decidiu que o serviço não pode ser usado com fins políticos. Zuckerberg é um exponente dos mitos do mercado, quando nos dizia que as boas notícias prevaleceriam automaticamente sobre as falsas. Na verdade, as plataformas ajudam os usuários a ler e encontrar somente as informações que são do seu agrado, mesmo que não seja verdadeira, com o fim de manter a nossa atenção, nos poupando do que é surpreendente, inusual e provocativo. Este não é um mercado livre.

A Era de Zuckerberg está criando, claramente, uma geração muito diferente às gerações da Era de Gutenberg. Isto nos leva a muitas perguntas, sobre a privacidade e também sobre a liberdade de expressão (agora em mãos privadas), incluindo quem que será regulado, o que será regulado e como. Uma criança de cinco anos de hoje em dia é muito diferente de uma de cinco anos das Era de Gutenberg. Estamos num período de transição. O significado da democracia está mudando. As relações internacionais se distanciam da busca por valores comuns através do multilateralismo, e caem numa maré de visões nacionalistas, xenófobas e egoístas do mundo. Termos como paz, cooperação, responsabilidade, participação e transparência estão se tornando obsoletos.

Está claro que o sistema atual deixou de ser sustentável. As políticas desaparecem do debate, e agora vistas como coisa nociva. A visão e os paradigmas são cada vez mais escassos. Apesar da iminente ameaça do colapso climático, no ano passado, as emissões tóxicas dos cinco maiores países do mundo aumentarem 5%. A maioria dos jovens está ausente das instituições políticas, como demonstra a votação sobre o Brexit, onde só 23% das pessoas entre 18 e 25 anos participou. Neste mesmo momento, temos grandes manifestações em treze países do mundo. Nessas ruas, os jovens participam e, com frequência, o fazem mostrando raiva, frustração e violência. Se não podemos devolver a comunicação horizontal à Internet, e não a liberamos os jovens da fratura comercial, dificilmente poderemos ter um futuro prometedor. Entretanto, como demonstram claramente as marchas contra a crise climática, se os jovens querem mudar o mundo, os valores e a visão voltarão a ser melhores. É evidente que a Internet pode ser uma ferramenta muito poderosa a favor dessa melhoria. O problema é: quem reparará esses erros? A Internet pode ser transformada numa ferramenta de participação? Como isso acontecerá? Estas são perguntas que as instituições políticas devem resolver o mais rapidamente possível, se realmente se preocupam com a democracia. A Era de Zuckerberg deve tomar esta decisão agora, pois dentro de alguns anos já será tarde demais…

*Publicado originalmente em Other News | Tradução de Victor Farinelli

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