quarta-feira, 25 de março de 2020

O imperio e o capital não fecham ao domingo

Sobre os dilemas e inércias dos governantes durante a pandemia

             por Rafael Poch
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Perante uma crise de grande alcance histórico na qual há milhões de vidas humanas potencialmente em jogo, como a que estamos a entrar, o senso comum sugere uma pausa à lógica imperante, um recesso, uma jornada de descanso como a que o próprio criador se concedeu. Nada disso: império não fecha ao domingo.

Felizes foram os dias em que nos preocupava o risco de que Trump desencadeasse uma guerra contra o Irão, a virulência das tensões artificiais com a Rússia, a intensa guerra comercial e de propaganda contra a China, os incêndios na Califórnia ou na Austrália. Evitou-se o bombardeamento norte-americano do Irão, mas as sanções de Washington – o secretário de Estado, Mike Pompeo, acaba de anunciar o seu reforço – estão a aumentar ali os efeitos da pandemia.

É impossível comprar remédios e bens essenciais quando, segundo reputada Universidade Sharif de Tecnologia, em Teerão, já está a verificar-se uma morte a cada dez minutos, 50 novos afectados por hora (sexta-feira, 20/Março) e acenam-se cenários de 3,5 milhões de mortos. Isso seria mais que o triplo da mortandade provocada pela guerra com o Iraque nos anos oitenta. Na actual conjuntura – e isso é válido para Cuba, Venezuela, Coreia do Norte, Síria e outros – as sanções são puro terrorismo.

Enquanto na Califórnia se estão a abrir os cárceres na previsão de um contágio generalizado, em Gaza há dois milhões de palestinos – com 60 Unidades de Cuidados Intensivos para todos e 1,2 camas por mil habitantes – encerrados e privados por Israel de fornecimentos fundamentais. A inércia é a de sempre.

UE: Era uma vez um circo

Na Europa, o espectáculo é edificante. Em 4 de Março a Alemanha decretou uma proibição de exportação de artigos de protecção médica para o resto da UE. O ministro da saúde alemão, Jens Spahn, respondeu dois dias depois às críticas de Bruxelas dizendo que a UE devia proibir tal exportação para fora do seu espaço ao invés de criticar. Perante o escândalo, a Alemanha introduziu dia 12 algumas excepções na sua proibição. Há indícios de que sua principal agência de controle e prevenção de doenças, o Robert Koch Institute, está a embelezar em baixa os números de mortos e contaminados no país.

Nestas circunstâncias, a Itália dirigiu o seu pedido da ajuda à China, a Cuba e à Venezuela – países que são objecto de sanções europeias – depois de "nem um só país da UE" ter respondido às suas petições, segundo o embaixador italiano perante a UE, Maurizio Massari. Instalada numa "lógica nacional", a Alemanha "afastou as últimas ilusões" sobre a UE, lê-se num diário tão europeísta como La Repubblica.

As proibições exportadoras a UE eram citadas pelo presidente sérvio, Aleksandr Vucic, numa carta a Xi Jingping, nos seguintes termos: "a proibição que recebemos é da mesma gente que nos dava lições dizendo que não devíamos comprar produtos chineses". Na crónica europeia estão a faltar relatórios sobre a Grécia, cujo sistema de saúde foi particularmente devastado pela inflexibilidade europeia.

Em 12 de Março anunciou sua proibição de os cidadãos da zona Schengen viajarem aos EUA. Bruxelas denunciou a medida como uma estupidez populista. Quatro dias depois, 17 de Março, Bruxelas proibia todas as viagens entre países não europeus e a UE durante 30 dias...

A pandemia retrata cada um. Retrata Trump, por exemplo, a oferecer mil milhões à empresa CureVac para ganhar a exclusividade de um suposto tratamento contra o vírus. Nessa foto de família, a China é a que fica mais favorecida. Como lamenta um comentarista do Walll Street Journal: "há indícios de que a China espera usar a crise para fortalecer a sua posição global". Outro observador de melhor qualidade, Patrick Cockburn, resume assim a situação: "Ao fracassar numa resposta coerente perante a ameaça e acusar os estrangeiros pela sua difusão, Trump encurralou os EUA e minou o papel hegemónico que desempenhou desde a Segunda Guerra Mundial. Mesmo que Biden seja o próximo presidente, no mundo pós pandemia os EUA terão perdido seu primado indiscutível.

Dilemas e estratégias dos governos

Com sua estrita política de contenção no foco inicial e de intenso intercâmbio de informação com o resto do mundo, a China ajudou o Ocidente a preparar-se. Concedeu tempo. O facto de que essa política com êxito fosse praticada também em lugares como Formosa ou Coreia do Sul invalida o argumento tonto da "vantagem da ditadura" (supondo, e isso é supor muito, que o governo comunista da China fosse uma ditadura e os de Formosa ou Coreia do Sul umas democracias). A diferença que será preciso explorar aponta antes para mentalidades colectivas, práticas de bom governo e prioridades governamentais. Não se trata da China e sim do que poderíamos chamar "estratégia da Ásia Oriental".

Seja como for, o Ocidente perdeu um tempo precioso ao vacilar na hora de aplicar uma política que acabou por não ser estrito confinamento estilo chinês, nem de controle generalizado com base em testes, e sim de relativa restrição de movimentos. Agora, um após o outro, os governos europeus, na Itália, Espanha, França, Áustria... pronunciam-se pela ampliação temporal das suas medidas restritivas que os cientistas qualificam de insuficientes e afirmam desesperadamente serem causa de futuros males maiores.

A vacilação dos governos ocidentais também tem a ver com o enorme dilema colocado por esta crise: para conter a pandemia é preciso matar a economia. Se se tratasse de duas ou quatro semanas de quietude, como pensavam inicialmente na UE, o assunto era sério. Mas se se trata de seis semanas, ou de alguns meses, então o que os governos enfrentam é um colapso económico com afundamento do sector de serviços, desvalorização bolsista, contracção do consumo e das exportações e, finalmente, milhões de despedimentos laborais (e, sobretudo, que os accionistas deixem de ganhar dinheiro).

Este é o dilema que hoje enfrentam aqueles que mandam no Ocidente: ou se opta por uma longa hibernação, com o que a pandemia será contida mas a "economia" se afundará, ou se opta pela actual restrição soft com a economia em apuros e uma grande mortandade. No dia de hoje certamente ninguém sabe qual das duas opções é mais daninha, mas o que está claro é que a primeira não é estimável para os que representam politicamente os interesses dos mais ricos, porque o capital não fecha aos domingos.

ABERTO AS 24 HORAS

Enquanto em França, Itália e Espanha os governantes aprovam verbas e subsídios especiais, discursos e atitudes como as de Boris Johnson, Angela Merkel, Donald Trump, Jair Bolsonaro e outros evidenciam a opção pelo "aberto as 24 horas": qualquer coisa menos o colapso económico. Johnson e, ao que parece, também os holandeses e suecos (ainda que com populações muito mais responsáveis), conceberam um certo "laissez faire" para a pandemia. Merkel acrescentou um certo fatalismo.

Tudo isso cosido pela sugestão do darwinismo social: que sobrevivam os mais fortes, confiemo-nos à "imunidade colectiva", etc. No seu discurso de quarta-feira, a chanceler alemã nada propôs, nenhuma medida. Zero. "Estou totalmente segura de que superaremos esta crise, mas quantas vítimas haverá? quantos seres queridos perderemos?", disse ela, antes de apelar à "disciplina de cada um". E ficou aí.

Opção como suprimir os planos de rearmamento da NATO (400 mil milhões para os 29 estados membros nos próximos quatro anos), ou subir uns 20% os salários dos mais expostos, profissionais da saúde, distribuidores, dependentes do comércio, condutores, são medidas de sentido comum que deveriam estar nos discursos de todos.

A crise económica e social que se desenha certamente abrirá algumas oportunidades. Dissemos, da nossa ligeira ignorância, que a pandemia contém certas oportunidades de mudança. Mas o que se vai abrir a curto prazo e com toda a certeza é um sofrimento humano enorme – e muito especialmente entre os mais débeis, pobres e vulneráveis. Da mesma forma que o confinamento num apartamento-colmeia dos arrabaldes não é a mesma coisa que o confinamento numa ampla habitação com jardim, tão pouco é a mesma coisa viver com a metade para os que têm muito, ou suficiente, e para aqueles que não chegam ao fim do mês ou estado em trabalho precário. Somos uma sociedade dividida em classes.

24/Março/2020


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