Como o Brasil, antes otimista em relação ao futuro nos dias de auge do lulismo, acabou caindo em uma espiral de crises políticas e econômicas que culminaram na ascensão da direita mais retrógrada.

Apesar de obviamente já existir muitos problemas, o Brasil até 2012 era um país com a percepção de que o presente estava melhor do que o passado e que o futuro seria melhor do que o presente. A aliança e a atuação de grupos conservadores a partir de 2013, que incluiu grupos empresariais, midiáticos, religiosos, militares, policiais e judiciais contribuiu para que o Brasil caísse em um precipício, no qual, ainda em 2019, não encontramos o fundo.
De acordo com uma crença maia, o mundo acabaria em 21 de dezembro de 2012. Neste início de 2019, olhando para trás, parece que no Brasil, o mundo realmente acabou em 2012. Parece que morremos todos e que estamos no inferno.
Parece que 2012 foi o último ano normal no Brasil. O PIB brasileiro cresceu 1,92% naquele ano, mas depois do crescimento de 2010 e 2011, a economia ainda estava bem para o bolso das pessoas. Comparado com outros países, a situação da economia brasileira parecia boa, pois o PIB per capita já estava em patamar superior ao de 2008, ano da crise das hipotecas subprime, enquanto que em alguns países, o patamar de 2008 ainda não havia sido alcançado. O desemprego formal era baixo. Crise econômica pesada se via na Espanha, em Portugal, no Reino Unido, na Grécia. Muitos protestos de rua ocorriam nesses países.
PIB per capita no Brasil com base 100 em 2013, dados observados até 2017 e dados estimados a partir de então. 10 anos de estagnação da renda per capita. Fonte FMI, WEO.
PIB per capita e salário per capita médio no Brasil com base 100 em 1996.
Desemprego no Brasil.
As eleições municipais ocorreram em clima de civilidade. Não foi uma eleição com eleitores de um partido xingando eleitores de outro partido. Foi possível Haddad, do PT, ganhar na São Paulo azul, e ACM Neto, do DEM, ganhar na Salvador vermelha. No Rio de Janeiro aconteceu um caso incrível em que o candidato de Lula e Dilma era um, o Eduardo Paes, e o candidato da esquerda era outro, o Marcelo Freixo.
A CPI do Carlinhos Cachoeira atingiu PSDB e DEM por causa de Marconi Perillo e Demóstenes Torres, e levemente o PT, por causa de Agnelo. A AP 470 no Supremo Tribunal Federal atingiu o PT, mas mesmo assim não se difundiu a ideia de que todo político é safado, nenhum partido presta, que precisa de um Messias (nome do meio daquele que vocês sabem quem é) para salvar. Foi possível até mesmo algumas pessoas votarem no Haddad e ao mesmo tempo considerarem que o STF estava fazendo seu papel ao julgar Dirceu e Delúbio.
A criminalidade no Brasil obviamente era alta, mas cresceria ainda mais depois disso. Quem morava no Rio de Janeiro em 2012 se lembra de como era bem mais seguro andar de noite e sozinho pela Nossa Senhora de Copacabana ou pela Voluntários da Pátria do que é nos dias atuais.
Houve uma queda na taxa de homicídios no Brasil entre 2003 e 2011, mas em 2012 já estava começando a crescer novamente.
Taxa e número de homicídios no Brasil no período selecionado.
Um evento que ocorreu no Brasil em 2012 foi a Rio+20. O Brasil era mais relevante no mundo naquele tempo. O evento gerou quentes debates sobre conciliação entre preservação ambiental e desenvolvimento. Naquele ano, ainda era possível realizar debates quentes que não se resumiam a esquerda e direita. Por exemplo, esteve muito em evidência naquele ano o debate sobre a usina de Belo Monte. Contra e a favor, havia gente de esquerda e de direita.
Em poucas palavras: mesmo o Brasil nunca tendo sido um país bom para viver, 2012 foi o último ano em que era possível pensar que o presente estava melhor do que o passado e que o futuro seria melhor do que o presente.
Algumas coisas que já vinham acontecendo, porém, já eram nuvens que indicavam a tempestade que estava por vir. A campanha eleitoral de 2012 foi civilizada, mas a campanha de 2010 já havia sido um indicativo da brutalidade que haveria nas campanhas de 2014, 2016 e 2018. Houve, pela primeira vez, uma associação entre a direita da economia, a direita da religião e a demagogia punitivista. Circularam por e-mail (ainda não se utilizavam muitas redes sociais) boatos sobre o auxílio reclusão. José Serra foi o primeiro candidato presidencial do PSDB a utilizar religião para atacar adversários.
Jair Bolsonaro estava cumprindo mais um mandato de deputado, conquistado na eleição de 2010, mas desta vez ele estava ampliando sua plateia. Em todas as eleições entre 1994 e 2010, Bolsonaro teve aproximadamente cem mil votos, a maioria de militares e familiares, por ser visto como alguém que defende os interesses da categoria. O público de Bolsonaro começou a ficar maior quando o então deputado foi estrela de um episódio de programa humorístico, que fez uma apresentação bastante chapa branca. Além disso, Bolsonaro já havia escolhido Jean Wyllys como principal antagonista no Congresso. Difusão de fake news em massa contra Jean Wyllys ajudou a dar popularidade para quem se apresentava como o anti-Jean Wyllys.
Ainda na década de 2000, já havia sido criado o Instituto Millenium, grupo composto por empresários, banqueiros, economistas e jornalistas do Globo e da Abril, com o objetivo de promover ideias liberais para a economia. O Millenium deu origem a uma grande parte da direita brasileira da década de 2010.
A política econômica do primeiro mandato da Dilma tinha alguns equívocos, cujos resultados iriam aparecer posteriormente. Não precisa ser liberal para perceber que algumas decisões da presidenta foram ruins. Uma reportagem de capa da Carta Capital de 2012 já alertava que as desonerações faziam sentido em 2008, mas não mais em 2012.
Valsa Brasileira, recém lançado livro da Laura Carvalho, mostra bem como a substituição de uma estratégia de crescimento movido pelo investimento público e mercado interno do segundo mandato do Lula por uma estratégia de crescimento movido pelo investimento privado e mercado externo foi mal sucedida. Ainda assim, decisões ruins de política econômica entre 2011 e 2014 não explicam toda a catástrofe ocorrida entre 2013 e 2019.
Jornadas de junho
Junho de 2013, as marchas que inicialmente começaram lideradas pela extrema-esquerda e chamaram a extrema-direita, que retornou em massa para as ruas 49 anos depois.
No início de 2013, poucos poderiam esperar o que estava por vir. Um primeiro sinal foi a eleição de Marco Feliciano para presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Aí veio junho.
Antes mesmo de junho já havia ocorrido protestos do Movimento Passe Livre (MPL) em Porto Alegre. Mas em junho ocorreram os protestos mais fortes contra o aumento da passagem do transporte coletivo, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Era uma demanda justa. De 1994 a 2013, a passagem do transporte coletivo nas cidades grandes brasileiras cresceu muito mais do que a inflação. Estes protestos receberam a rejeição de comentaristas de orientação política bastante distinta: Arnaldo Jabor não gostou porque o MPL é próximo de partidos de extrema-esquerda, Paulo Henrique Amorim não gostou porque os protestos atingiam o então prefeito de São Paulo Fernando Haddad, do PT.
Tudo mudou na noite de 13 de junho de 2013, quando a PM de São Paulo reprimiu violentamente os manifestantes do MPL. Os oligopólios de mídia estranhamente mudaram a cobertura das manifestações, exibindo um posicionamento mais simpático ao movimento. As manifestações ocorridas nas grandes cidades brasileiras nas noites de 17 e 20 de junho de 2013 foram o primeiro grande sinal do que estava por vir no Brasil.
Surgiram novos movimentos. A pauta da redução do preço das passagens do transporte público foi sequestrada. Os novos movimentos criaram o slogan “é por muito mais do que 20 centavos”. O combate à corrupção e a melhoria da educação e da saúde entraram como pautas nas novas manifestações. Ninguém tem como ser a favor da corrupção e contra a educação e a saúde. Mas é aí que entra o problema. Manifestações sérias têm pautas concretas. Pautas genéricas são manipuláveis. Como por exemplo, x% de mais recursos para a educação ou adoção de políticas y e z para a saúde. Os manifestantes que simplesmente expuseram o desejo de menos corrupção e mais saúde e educação acabaram servindo de massa de manobra de uma coalizão corrupta que três anos depois aprovou uma emenda constitucional congelando os gastos em educação e saúde por 20 anos.
Bom, mas voltando a 2013, naquelas grandes manifestações de junho, além dos cartazes sobre corrupção, educação e saúde, havia cartazes como “acorda Brasil”, “chega de explorar a classe média” e ainda havia rapazes com máscara do V de Vingança segurando cartazes com a frase “queremos os militares de volta ao poder”, algo totalmente contrário à crítica da obra libertária de Alan More.
Poucos dias depois, no dia da final da Copa das Confederações, houve uma grande manifestação em frente ao Maracanã. Os protestos eram contra a falta de escolas e hospitais no “padrão Fifa” e contra as remoções que ocorreram durante as obras para os grandes eventos esportivos. Naquele tempo, ainda não estava claro onde estava a esquerda e onde estava a direita. Os movimentos sociais que organizavam os protestos contra os grandes eventos esportivos eram de esquerda, mas obviamente parte da direita viu a oportunidade para atacar o governo Dilma, principalmente entre os “leftlibs” (ultraliberais progressistas nos costumes), chegando a usar Rafael Braga como “token”.
Em junho de 2013, grupos de direita mobilizaram grandes movimentos de rua pela primeira vez depois de março de 1964 (o “Cansei” do João Dória em 2007 foi a primeira tentativa de colocar a direita na rua, mas seu tamanho foi mínimo). Esta massa liderada pela direita havia aparecido de maneira meteórica e desapareceu de maneira meteórica, para voltar apenas um ano e meio depois.
O rápido sumiço das manifestações de direita transmitiu a falsa impressão de que a doutrina do choque descrita pela Naomi Klein ainda estava distante do Brasil. Klein define como um choque a implementação rápida de uma agenda econômica liberal que dificilmente seria aprovada por eleições em uma situação normal, mas que encontra oportunidade quando há fatos extraordinários, que podem ser golpes, guerras, crises econômicas, crises políticas, desastres naturais.
O choque muitas vezes é precedido de ações de propaganda de think thanks e fundações financiadas por milionários. Este choque começou no Brasil em 2015 e vem torturando os brasileiros até hoje, em 2019. Mas, em 2013, o choque de Klein parecia distante. Alguns militantes, decepcionados com as políticas conservadoras de Dilma em muitas áreas, tinham esperança até mesmo de levar o Brasil um pouco mais para a esquerda.
As manifestações do segundo semestre de 2013 estiveram mais vinculadas com a esquerda. Diferentemente de junho, quando ocorreram no Brasil inteiro, com grande importância em São Paulo, as manifestações do segundo semestre de 2013 se concentraram principalmente no Rio de Janeiro. Tiveram como principais alvos o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes. Embora os dois, do PMDB, fossem de boca para fora ainda aliados de Dilma, os organizadores dos protestos eram de extrema-esquerda.
Havia a participação dos black blocs. O ápice dos protestos do segundo semestre de 2013 no Rio de Janeiro foi a greve dos professores. Eu morava no Rio de Janeiro naquele tempo e me lembro de que naquele momento, muita gente achava que Lindbergh seria eleito governador em 2014. Tanto quem queria, quanto quem não queria que isto acontecesse pensava assim. Imaginava-se também que Dilma não teria dificuldades para ser reeleita. Sua popularidade, depois de forte queda logo depois dos protestos, se recuperava lentamente ao longo do segundo semestre.
Operação Lava Jato
A equipe da Operação Lava Jato. De acordo com os estudos de Ricardo C. de Oliveira, professor de Sociologia da Universidade Federal do Paraná, os integrantes da Lava Jato vivem na “mesma bolha“.
Somente no início de 2014 veio o terremoto que foi o maior impulsionador do choque no Brasil: a Operação Lava Jato. As revelações feitas antes da eleição não foram suficientes para evitar a vitória de Dilma, mas foram suficientes para reduzir a bancada do PT, eleger o Congresso mais conservador da Nova República, incluindo lideranças de direita atingidas posteriormente pelas investigações. Dessa forma, foi possível eleger os dois terços necessários para o impeachment. Notável também foi a votação de Jair Bolsonaro. De 1994 a 2010, tinha habitualmente 100 mil votos. Em 2014, teve 350 mil votos e foi o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro.
A Lava Jato teve um papel muito forte para levar o Brasil para a direita. Algumas pessoas discordariam desta afirmação e responderiam: “pare com essa história, isso é papo do PT para defender seus corruptos, a Lava Jato também atingiu PMDB, PP, PSDB e DEM, principalmente depois que a Dilma caiu”. Sim, a Lava Jato também atingiu políticos conservadores. Mas é importante lembrar que a bala de prata chamada JBS, atirada por Janot em Temer e Aécio em maio de 2017, partiu de Brasília, e não de Curitiba. Muitos tiros em Eduardo Cunha também partiram de Brasília. Se dependesse apenas da “República de Curitiba”, composta por policiais federais, procuradores e juízes locais, apenas lideranças do PT seriam decapitadas.
Além disso, é importante lembrar ainda que Dilma foi derrubada e Lula foi impedido de concorrer em 2018. Enquanto isso, os líderes conservadores só foram decapitados quando perderam a relevância. Eduardo Cunha caiu apenas depois de ter feito o serviço, Aécio teve a carreira política arruinada apenas depois de ter perdido a eleição e Temer só levou o tiro depois de 1º de janeiro de 2017, quando só poderia ser substituído por um presidente eleito por eleição indireta pelo Congresso, e dada a composição do Congresso, um governo conservador já estava garantido para o mínimo até dezembro de 2018.
Mas a maior contribuição da Lava Jato para levar o Brasil para a direita não foi ter atingido políticos, e sim ter atingido a economia. Ajudou a arruinar os setores de petróleo e gás e de construção civil, contribuindo para o tombo de quase 10% do PIB em 2015 e 2016, e fomentando a narrativa de que “o PT quebrou o Brasil; a nova matriz econômica da Dilma quebrou o Brasil”, e com isso favorecendo o discurso liberal. Como consequência, o tombo do PIB causou um tombo da receita até mesmo dos estados e dos municípios, forçando governadores e prefeitos a passar a tesoura, extinguindo até mesmo órgãos públicos.
Para quem tentar contra-argumentar dizendo que relacionar a Lava Jato com a crise econômica é favorecer os corruptos, eu respondo que ciência não é moralista, e que mesmo se disser que a Lava Jato derrubou o PIB favorecesse os corruptos, isto não faz a afirmativa ser falsa.
Outra grande contribuição da Lava Jato para fomentar uma agenda liberal, privatista, foi a ordem cronológica em que a história foi contada. A Lava Jato contou uma história verdadeira: que houve um mega escândalo de corrupção na Petrobras no tempo em que Lula era presidente do Brasil e Gabrielli era presidente da empresa. Durante muito tempo, a privatização da Petrobras foi uma bandeira impopular. Como o escândalo da Petrobras apareceu primeiro, foi fomentada a ideia que “tem que privatizar e que o PT não quer privatizar porque quer ter as empresas públicas para roubar”.
Foi muito repetido também o “imaginem quando abrirem a caixa preta do BNDES”. Depois que a Dilma caiu, apareceu que não houve apenas um escândalo da Petrobras. Havia uma prática generalizada de superfaturamento e propina em obras públicas, incluindo aquelas realizadas por governos estaduais do PSDB, PMDB e PSB.
O avanço conservador

Manifestantes associando Paulo Freire com doutrinação comunista.
Em 2014 não teve apenas a Lava Jato para levar o Brasil para a direita. A Justiça do Rio de Janeiro decidiu fazer estardalhaço com a condenação de militantes suspeitos de serem vândalos do movimento black bloc e ainda relacionar o cachorro do vizinho da sogra do primo do Marcelo Freixo com o black bloc.
Foi um fato relevante para a esquerda brasileira, porque a partir daquele momento as vozes mais anti-PT dentro do PSOL passaram a ser minoria dentro do partido. A maioria do partido percebeu que era mais conveniente não se confundir com o discurso anti-PT da direita, já que estava atingindo a esquerda inteira.
Ainda em 2014, teve grande audiência no Facebook uma página chamada TV Revolta, que nada mais era do que uma divulgação de charges reproduzindo o palavrório conservador para pessoas despolitizadas: sátiras aos corruptos (somente tendo petistas como alvo), defesa da violência policial, incitação do preconceito classista ao funk carioca.
A campanha eleitoral de 2014 foi a mais violenta da Nova República até então. Teve violência nas ruas, boato sobre os haitianos que receberam título de eleitor, boato sobre o Youssef envenenado, boato sobre as urnas eletrônicas fraudadas.
Em 2014, o crescimento do PIB brasileiro foi próximo de zero. A inflação crescia, mas ainda estava dentro da meta porque era reprimida pelos preços da energia elétrica e dos combustíveis. Aquele ano foi o primeiro de déficit primário do setor público depois de mais de 15 anos, mas este déficit ainda foi pequeno. O desemprego aberto era de 5%, menor do que em todos os anos de Fernando Henrique Cardoso e todos os anos de Lula. A economia não estava completamente bem, alguns desequilíbrios, como a inflação crescente, o déficit primário e os preços represados, sinalizavam a necessidade de algum ajuste para o mandato seguinte.
Mas o pessimismo militante de Empiricus, agências classificadoras de risco, consultorias, economistas do mercado financeiro e oligopólios de mídia acabou por contribuir para o agravamento da crise. A economia ficou pior quando as equipes econômicas do Ministério da Fazenda passaram a ser compostas por membros que desfrutavam simpatia destes atores mencionados do que estava quando estes atores mencionados estavam praticando o pessimismo militante.

Receitas e despesas primárias reais da União.
Logo depois que Dilma foi reeleita, ela nomeou um ministério conservador, incluindo Joaquim Levy, Kátia Abreu e Gilberto Kassab, contrariando o discurso da campanha. Dilma autorizou Levy fazer um ajuste mais brusco possível, que incluiu corte violento de despesa pública, correção imediata dos preços represados, elevação da taxa Selic e desvalorização enorme do real. Assim, Dilma esperava que receberia tolerância do topo da pirâmide social do Brasil e que o impeachment pudesse ser evitado. Esperava também a chegada da fadinha da confiança: que a sinalização de políticas conservadoras incentivaria os empresários a investirem.
Lê-se no cartaz: porquê (sic) não mataram todos em 64.
Não foi isso que aconteceu. A fadinha da confiança não veio. Quando finalmente um austero assumiu o Ministério da Fazenda, o déficit primário da União disparou. A despesa foi reduzida, mas a receita foi ainda mais reduzida por causa do tombo do PIB.
A tolerância do topo da pirâmide social não veio. Logo em março de 2015, ocorreram enormes manifestações em todas as cidades grandes brasileiras. Entre as mensagens de manifestantes, apresentadas em cartazes e discursos proferidos em caminhões de som, estavam pedidos de intervenção militar, pedidos de extinção do STF, questionamento sobre “porquê (sic) não mataram todos em 1964?” e pedidos de “basta de Paulo Freire, pelo fim da doutrinação comunista nas escolas”.
Os principais movimentos organizadores das manifestações foram o Vem Pra Rua (hoje é aliado do Partido Novo), o Revoltados Online (anda sumido) e o Movimento Brasil Livre – MBL, sobre o qual é importante falar um pouco.
A “nova direita”

O MBL com políticos corruptos contra a corrupção.
O MBL apareceu em 2014 se autodeclarando um movimento apartidário de defesa do liberalismo econômico e de combate à corrupção. Em 2015, tirou a famosa foto segurando uma mensagem anti-corrupção ao lado de Eduardo Cunha. Em maio de 2017, quando estourou o escândalo JBS, inicialmente o MBL se posicionou contra Temer, mas no dia seguinte mudou de ideia.
O MBL conta com braços de comunicação, como a página do Facebook Corrupção Brasileira Memes (CBM) e o Mamãefalei. A CBM chegou a postar até mesmo memes xenofóbicos, como um que tinha a bandeira da Alemanha que incluía a bandeira da Turquia na faixa vermelha.
O “livre” do MBL se refere apenas ao capital. O MBL já exaltou violência militar, já defendeu a censura à atividade docente através do Escola Sem Partido, já tentou censurar exposições artísticas, como a Queermuseu.
Alguns dos maiores absurdos já defendidos pelo MBL podem ser conferidos aqui. As principais falácias e mentiras do Arthur do Val, ou o “Mamãefalei”, que está mais para “Mamãementi”, foram rebatidas aqui. O Vice tratou sobre como o MBL adquiriu uma máquina de difusão de memes. El País e o Intercept falam das obscuras fontes de financiamento do MBL.
Durante a campanha eleitoral de 2018, o Facebook retirou do ar páginas anônimas ligadas ao MBL, que poderiam ser utilizadas para difundir fake news. Depois dessa decisão, os liberais brasileiros foram atrás do Ministério Público, uma instituição estatal, para tentar forçar o Facebook, uma empresa privada, a voltar atrás.
A burrice difundida nas redes sociais no Brasil chamou atenção até de estrangeiros. Em 2018, o embaixador da Alemanha no Brasil chegou a dizer que em seu país de origem, ele nunca viu a discussão sobre se Hitler era de direita ou de esquerda. Lá, todos sabem que Hitler era de direita.
Crise do petismo e aumento da pobreza durante governo Temer
O ano de 2015 começou com a eleição de Eduardo Cunha para presidente da Câmara. Foi o primeiro nome do Congresso que representou fortemente as três bancadas conservadoras: religiosa (Bíblia), ruralista (Boi) e militarista (Bala).
Inicialmente, os oligopólios de mídia transmitiam uma visão favorável do novo presidente da Câmara. E os manifestantes de camisa verde e amarela expressavam posição favorável. Durante muito tempo, a classe média católica não praticante torceu o nariz para políticos evangélicos. Agora, passou a enxergar como um incômodo aliado necessário.
Com Eduardo Cunha no cargo, aconteceu uma situação inédita: oposição querendo diminuir direitos dos trabalhadores, bancada governista tentando evitar. Às vezes, até mesmo quando o governo é de esquerda e a oposição é de direita, o governo se vê obrigado em algum momento a tomar alguma medida antipopular e a oposição aproveita para se mostrar mais popular. Não foi isso que aconteceu no primeiro semestre de 2015, quando PMDB, PSDB e DEM votaram a favor da liberação da terceirização para atividades fim, e a bancada do PT e do PCdoB votou contra.
Depois do aparente massacre da direita no primeiro semestre de 2015, parecia que a esquerda conseguira voltar a ter alguma iniciativa no segundo semestre daquele ano. As contas de Cunha na Suíça foram descobertas, as manifestações anti-impeachment passaram a ter público parecido com o das manifestações pró-impeachment. A aversão ao projeto de Cunha que dificultava o aborto para vítimas de estupro levou manifestações feministas para as ruas. Em São Paulo, houve um forte movimento estudantil de ocupação das escolas por causa da decisão de Alckmin de fechar algumas escolas. Quando Cunha acolheu o pedido de impeachment em dezembro, houve especulações na imprensa de que não haveria votos suficientes para atingir os dois terços.
No início de 2016, a “República de Curitiba” mandou novas bombas. Prisão do João Santana e sua esposa. Delações colocaram o PT novamente no centro do noticiário sobre escândalos de corrupção. As manifestações pró-impeachment de março de 2016 foram ainda maiores do que as de 2015. O PT ainda cometeu um erro terrível de achar que Lula como Ministro da Casa Civil salvaria o governo. Sérgio Moro vazou ilegalmente a conversa entre Dilma e Lula. O impeachment de Dilma ocorre e seu vice Michel Temer se torna presidente.
Michel Temer tentou implementar a agenda do candidato derrotado Aécio Neves. Pensou que dessa forma, a fadinha da confiança apareceria, e a economia se recuperaria. Uma das primeiras medidas do novo governo foi a aprovação de uma emenda constitucional que proibia aumento da despesa da União nos 20 anos seguintes. Utilizou-se o pânico da população decorrente do déficit primário elevado e a relação dívida PIB crescente para impor um setor público reduzido no longo prazo. No ano seguinte, foi aprovada uma “deforma” trabalhista que praticamente acabava com o acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho.
Mais uma vez, a fadinha da confiança não veio. Em 2018, o PIB foi 4,5% menor do que era no tempo em que o ministro Guido Mantega foi embora, quatro anos antes. A pobreza, depois de muito ter caído entre 2002 e 2014, não parou mais de crescer. O desemprego, depois do auge em 2017, teve um leve declínio (ver Figura 4), mas este declínio ocorreu por causa do aumento dos postos de trabalho informais. Não houve mais aumento do emprego formal.
Foi visível o aumento da população morando nas ruas a partir de 2015. É possível atribuir parte do fracasso econômico do governo Temer à bala de prata lançada por Janot em maio de 2017? Sim, mas quem nega que a Lava Jato tenha contribuído em grande parte para derrubar o PIB em 2015 certamente não pode utilizar este argumento. Além disso, uma ressalva precisa ser feita: o PIB não estava se recuperando antes da bala de prata de Janot.
Temer assumiu no segundo trimestre de 2016. O PIB teve um desempenho fraquíssimo no terceiro e no quarto trimestre daquele ano. Apenas indicadores do mercado financeiro tiveram melhoria, porque o pessimismo militante de 2014 deu lugar ao otimismo militante de 2016.
Nas eleições municipais de 2016, Temer, mesmo com popularidade baixa, conseguiu ver os partidos de sua base terem excelente desempenho. Enquanto isso, o PT sofreu uma enorme derrota e o PSOL não conseguiu ter grande crescimento.
Embora não tenha sido determinante para os resultados, é importante destacar que Guido Mantega foi preso a poucos dias do pleito, e até hoje não se sabe por que ele foi preso. Quando Freixo passou para o segundo turno no Rio de Janeiro, apareceu uma grande boataria de Whatsapp, incluindo “notícias” de que Jean Wyllys seria Secretário de Educação (“para ensinar os meninos a virarem gays”?), e surgiu até mesmo uma gravação em que alguém imitava a voz de Freixo fazendo um discurso contra os taxistas.
Um pouco antes do impeachment, quando Lula passou pela condução coercitiva, sua popularidade teve pico de baixa. Tinha menos de 20% das intenções de voto e perdia para Alckmin em simulação de segundo turno. Depois do impeachment e por causa do fiasco de Temer, Lula foi recuperando popularidade, e passou a superar adversários em simulações de segundo turno. Foi necessário tirá-lo da disputa no tapetão, com sua condenação pelo TRF-4 em janeiro de 2018.
O início de 2018 foi marcado por uma grande tragédia no Brasil. O assassinato da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, Marielle Franco. Logo depois de seu assassinato, foram difundidos muitos boatos através da Internet e do Whatsapp. Até mesmo uma desembargadora ajudou a difundir calúnias, associando a vereadora a criminosos. A já mencionada CBM fez meme zombando a vereadora assassinada.
A revanche da direita “brucutu”
O auto-intitulado filósofo Olavo de Carvalho, que se tornou o guru do atual governo.
À medida em que a eleição se aproximava, se tornava mais óbvio que qualquer candidato que representasse a continuidade de Temer não teria chance. Ou seja, candidato do PSDB, do PMDB e do DEM não teriam chance. Como ainda se esperava que Bolsonaro não conseguiria ganhar de ninguém no segundo turno, o Ciro Gomes ou o candidato do PT indicado por Lula eram os favoritos. Até o mercado financeiro reconhecia isso.
Houve queda da Bovespa e elevação do dólar em julho. Os oligopólios de mídia e o PSDB tentaram alavancar Alckmin renomeando a velha direita de centro: diziam que Alckmin era o candidato de centro, contra os “extremos”. Bolsonaro seria o extremo de direita. Haddad e até Ciro, segundo eles, seriam os extremos de esquerda.
A imprensa internacional estava horrorizada apenas com Bolsonaro, mas a imprensa brasileira tentava encontrar pelo em ovo para enxergar algum extremismo em Haddad semelhante ao extremismo de Bolsonaro.
Durante muito tempo, a mídia de orientação liberal encarou Bolsonaro como ameaça. Tinha medo que sua antiga visão estatizante sobre economia retornasse. Para ela, homenagear torturador, pregar assassinato de adversários políticos e estimular violência contra gays pareciam não ser os maiores defeitos do ex-capitão; fazer tudo isso, mas ser liberal em economia parecia ser aceitável.
Por fim, liberais que antes criticavam Bolsonaro acabaram fechando com ele no segundo turno contra o moderadíssimo Haddad. Fake news sobre “kit gay” e “mamadeira de piroca” difundidas por Whatsapp estimularam evangélicos pobres a votar em peso no Bolsonaro, e ele acabou sendo eleito.
O guru do novo presidente, que sugeriu a indicação do ministro da Educação e das Relações Exteriores é Olavo de Carvalho. Ele é ignorado no meio acadêmico brasileiro e seu rebanho diz que isso é resultado de um viés ideológico de esquerda no meio acadêmico brasileiro. Mas Olavo de Carvalho reside nos Estados Unidos há 14 anos e é completamente ignorado pelo meio acadêmico norte-americano. A ignorância de Olavo de Carvalho em temas como economia e ciências naturais pode ser verificada neste e neste texto.
Outro grande “intelectual” brasileiro que contribui para deixar o Brasil mais burro e preconceituoso foi o “historiador” Leandro Narloch. Alegando a existência de uma versão enviesada esquerdista da história do Brasil e do mundo ensinada nas escolas, Narloch criou uma versão enviesada direitista.
O que ele escreveu sobre africanos e nativos americanos, além de ajudar a fomentar o racismo, foi feito sem qualquer rigor científico, e teve como principal base relatos de perseguidores destes povos. Seu texto sobre o golpe do Chile de 1973 teve como principal fonte um panfleto de propaganda do Pinochet. Além disso, Narloch cometeu um erro grotesco ao falar que em sua tese de medicina, Allende estava defendendo Lombroso, quando na verdade estava apenas o citando para criticá-lo.
Narloch, assim como Gentili, ajudou a difundir o mito do “politicamente incorreto” que torna a mesma opinião que a tinha os nossos bisavós sobre etnia, gênero, sexualidade, religião e classes sociais em algo subversivo, questionador, rebelde, “punk”, contra o establishment.
Logo no início do governo Bolsonaro, o ministro da Educação já prometeu eliminar a influência de Paulo Freire na educação brasileira. O problema é que esta influência não existe. E hostilizar o único brasileiro entre os 100 autores mais lidos nas universidades de língua inglesa diz muito sobre este novo governo.
Considerações Finais
É importante dizer: o Brasil nunca foi um país onde todos tiveram vida digna, mas durante algum tempo, havia a sensação de que o presente era melhor do que o passado e que o futuro seria melhor do que o presente. Mas depois de Instituto Millenium, MBL, Endireita Brasil, Empiricus, XP Investimentos, Operação Lava Jato, Olavo de Carvalho, Leandro Narloch, Rádio Jovem Pan e bancada de comentaristas do canal televisivo Globo News, o Brasil se tornou um país mais pobre, mais burro, mais violento e mais intolerante.
O que dizer da esquerda? Líderes, intelectuais, políticos, partidos e jornalistas de sites de esquerda, cometeram muitos erros de avaliação de conjuntura e de estratégia. Imaginaram erroneamente durante quase todo esse período que a elite jamais embarcaria no Bolsonaro, que a base de apoio do ex-capitão se restringia a nichos como baixos oficiais das forças armadas, polícias, ruralistas e evangélicos. Isso é muito estranho para quem sempre diz que “a elite brasileira é perversa”, pois, já que encaram a elite brasileira como perversa, já deveriam ter se antecipado a probabilidade dessa elite fechar com Bolsonaro. A esquerda ignorou o Bolsonaro, preferindo se dedicar ao enfrentamento contra Alckmin nas eleições presidenciais.
Outro erro de avaliação que alguns comentaristas de esquerda tiveram foi de acreditar na bobagem de que a eleição de 2018 seria adiada ou cancelada. É muito esquizofrênico acreditar que a elite brasileira seria capaz até de cancelar uma eleição, mas que jamais embarcaria no Bolsonaro. É muito mais fácil ajudar a eleger um candidato tosco do que cancelar uma eleição.
Outro erro da esquerda foi ter pensado que bastava o Temer permanecer até o final de 2018, pois, queimado devido às suas reformas impopulares, era uma questão de tempo para a esquerda voltar ao poder. Depois da bala de prata do Janot em maio de 2017, a esquerda substituiu o “Fora Temer” informalmente por um “Fica Temer”. Tentou fazer um movimento para antecipar a eleição direta para 2017, mas sempre considerou a substituição de Temer por um eleito pelo Congresso como algo pior do que a permanência de Temer. Alguns chamaram de “o golpe dentro do golpe”. Outros diziam que derrubar o Temer seria fazer o jogo da Globo, que queria colocar o Rodrigo Maia.
Ao longo de 2017, alguns militantes virtuais do PT perderam tempo em uma inútil guerrinha virtual contra o PSOL. Esta guerrinha felizmente terminou quando o PSOL escolheu Guilherme Boulos como candidato.
Uma ressalva que precisa ser feita ao discurso da esquerda é o da insistência em afirmar que o impeachment da Dilma e a prisão de Lula são ataques à democracia. Sim, são mesmo, isto não é mentira. Mas o cuidado que precisa ser feito com esse discurso é o risco de construir uma narrativa errônea de que uma agenda conservadora está sendo imposta no país à força, sem convencimento da população. Sim, o impeachment de Dilma de 2016 pode ser considerado um golpe parlamentar, mas os partidos que se opuseram ao impeachment tiveram derrota esmagadora nas eleições municipais daquele ano. O povo não teve a oportunidade de votar no Lula, mas teve oportunidade de votar no Ciro, no Haddad, no Boulos, na Vera Lúcia e no Goulart Filho, e quem ganhou foi o Bolsonaro.
Lula venceria se tivesse tido a oportunidade de disputar? Provavelmente sim, mas não disparado no primeiro turno como algumas pessoas fora da realidade afirmam. Considerando que os números de Lula nas pesquisas de 2018 eram semelhantes aos números de Dilma nas pesquisas de 2014, provavelmente Lula venceria apertado no segundo turno. E ganharia por causa da lembrança de dias melhores nos tempos de Lula, e não por causa de adesão da população a uma orientação de esquerda.
Sim, o topo da pirâmide social brasileira está usando um pouco de força para impor a sua agenda. Tem condenação judicial a políticos de esquerda, violência contra políticos e líderes de movimentos sociais de esquerda com leniência das autoridades. Mas também está usando convencimento. Existem sim pessoas pobres que estão concordando com a agenda dos ricos. Este convencimento não pode ser negado. Este convencimento precisa ser combatido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12