terça-feira, 29 de setembro de 2020

Nietzsche segundo Losurdo

Elyeser Szturm, da série Céus

Por IVO DA SILVA JÚNIOR*

Comentário sobre o livro “Nietzsche: o rebelde aristocrata”, de Domenico Losurdo

Nietzsche é um filósofo inteiramente político. Assim compreende Domenico Losurdo – como muitos, aliás – a filosofia nietzschiana. De linhagem marxista, o autor de Nietzsche: o rebelde aristocrata não se põe de acordo, entretanto, com aqueles que também colocam o filósofo numa chave política. E o ponto de desacordo reside, sobretudo, numa questão metodológica.

Losurdo realiza seu trabalho em filosofia sem priorizar a análise imanente do discurso. Não fazendo stricto sensu história da filosofia, ele se aproxima de seu objeto de estudo por meio do método histórico-dialético. Lança mão da análise conceitual ao mesmo tempo em que se indaga pelas relações políticas e sociais das quais os conceitos provieram ou se declinaram. Estabelece assim uma relação dialética entre estas duas dimensões, a conceitual e a materialmente dada, a filosófica e a histórica.

Perseguindo esta via de trabalho, Losurdo pode compreender Nietzsche como um pensador político no sentido pleno do termo. Afasta-se assim daquelas leituras políticas que, de um lado, com Lukács e Nolte consideraram o filósofo um pensador irracionalista e precursor do nazismo e, de outro, com os comentadores franceses (em particular os marcados por Foucault) e Ottmann que consideraram Nietzsche, numa simples troca de sinais, um pensador apolítico.

As leituras que apontam para a periculosidade de Nietzsche, seja pela presença do elemento irracional em sua obra, seja por conter uma semente proto-nazista, pecam, segundo Losurdo, por não recorrerem corretamente à história. Ao estabelecerem uma continuidade intelectual entre o pensamento nietzschiano e os movimentos nazistas sem reconstruir o conturbado fim do século XIX e início do XX, ignoram a enorme distância que há entre as afirmações do filósofo e a formação dos movimentos de extrema direita após a Primeira Guerra Mundial. Se reconstruíssem, não encontrariam a tão propalada continuidade; não aproximariam a filosofia de Nietzsche de eventos estritamente circunscritos ao século XX.

Assim, quando Nietzsche tece, por exemplo, elogios à escravidão, essas interpretações não levam em conta a repercussão e o impacto na Alemanha que tiveram acontecimentos tais como o fim da escravidão nos Estados Unidos, a abolição da servidão da gleba na Rússia etc.; fatos estes que circunscrevem a letra de Nietzsche a um espaço e tempo bem determinados.

Já as leituras que recusam essa periculosidade consideram Nietzsche um hermeneuta inocente. Ao transformar muitas das afirmações polêmicas em metáforas, contribuem para construir a imagem pós-moderna do filósofo. Assim, no que tange a este elogio da escravidão, essas interpretações transformam imediata e definitivamente uma questão sócio-política numa metáfora que se referiria à moral ou psicologia de indivíduos particulares. Algo que os estudiosos franceses, principalmente, fizeram e ainda fazem com maestria.

Assim, tanto aqueles que consideram Nietzsche como profeta do Terceiro Reich, como aqueles que, “bem intencionados”, procuram combater a imagem nazista do filósofo suprimindo, para tanto, o elemento factual de suas afirmações, fazem a abstração do momento histórico novecentista. Para não cometer o mesmo erro, Losurdo opta por uma metodologia que o exima de ter de criticar/demonizar ou de salvaguardar/endeusar Nietzsche.

No fundo desta querela há apenas uma questão metodológica? Certamente não. Há algo mais em jogo, como Losurdo deixa entrever. Se Nietzsche não é um pensador perigoso, nem é um inocente hermeneuta, quem é ele? Nietzsche é, como bem indica o título do livro, um rebelde aristocrata, ou se quisermos, ao mesmo tempo perigoso e inocente, mas num outro sentido. Losurdo faz coexistir dialeticamente, de um lado, a crítica radical que Nietzsche faz à nova Alemanha que então surgia após a vitória na Guerra Franco-prussiana de 1871, que abria definitivamente a “via prussiana” para o desenvolvimento alemão, e, de outro lado, as posições aristocráticas do filósofo cujo fundamento, mais do que anacrônico, era encontrado na Grécia antiga.

Mostra assim a tensão existente entre o Nietzsche burguês e o Nietzsche aristocrata do espírito: apenas sendo muito rebelde, o filósofo teria como se voltar contra seu extrato social ( burguês); apenas tornando-se um aristocrata do espírito, teria como manter atual um segmento social que estava em vias de extinção (a aristocracia). Em suma, Losurdo bem nos mostra que Nietzsche está longe não só do Terceiro Reich, mas também do pós-modernismo que relativiza e interpreta sem cessar.

Num trabalho sistemático, que discute inclusive o estabelecimento crítico da obra, Losurdo apresenta-nos um filósofo que seria até mais radicalmente político que Marx. Por trabalhar na contramão dos demais especialistas, o autor infelizmente não encontrará – acredito – o lugar que lhe cabe junto às sociedades nietzschianas. Basta vermos a repercussão que, de início, este livro de 2002, teve entre os especialistas estrangeiros. Um Nietzsche fora de seu tempo ou um verdadeiro hermeneuta da inocência parece estar mais em sintonia com o nosso tempo; parecer ser muito mais palatável à nossa ideológica falta de gosto. Este é, aliás, o ponto que apenas fica entrevisto neste instigante e importante trabalho que, com certeza, não deixará de ser festejado por muitos outros.

*Ivo da Silva Júnior é professor de filosofia na Unifesp. Autor, entre outros livros, de Em busca de um lugar ao sol – Nietzsche e a cultura alemã (Discurso Editorial, Editora Unijuí).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 10, novembro de 2010

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