Defesa de Lula utiliza diálogos vazados entre procuradores para expor que Erika Marena, delegada-chave na operação, teria fingido ouvir um colaborador, com a conivência do MPF. Tese foi desmentida pela suposta vítima, o delator Fernando Moura, em 2016, mas dúvida chega ao STF
REGIANE OLIVEIRA - São Paulo
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O procurador Deltan Dallagnol durante evento em Brasília em março de 2020. RODOLFO BUHRER / REUTERS
A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a lançar uma bomba de desconfiança sobre o trabalho da força-tarefa da Operação Lava Jato. Em manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) na segunda-feira, os advogados do petista denunciam que procuradores tiveram conhecimento de que uma delegada da Polícia Federal forjou depoimentos. A delegada em questão é Érika Marena, uma das principais na Lava Jato e que trabalhou no gabinete de Sergio Moro quando ele foi ministro da Justiça ―hoje atua em Santa Catarina. “Como expõe a Erika: ela entendeu que era pedido nosso e lavrou termo de depoimento como se tivesse ouvido o cara, com escrivão e tudo, quando não ouviu nada....”, diz em trecho dos diálogos. Segundo as mensagens, ao invés de denunciar a prática, os procuradores atuaram para encobri-la.
Os advogados de Lula escavaram nos diálogos entre os procuradores, apreendidos na Operação Spoofing ―que investiga a invasão de celulares de autoridades por hackers ―, um personagem icônico da Lava Jato, o delator Fernando Moura, um empresário apontado como lobista, acusado de corrupção, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Conhecido como “o amigo de José Dirceu”, Moura foi o primeiro colaborador a perder os benefícios da delação premiada e voltar a ser preso, após mudar sua versão na Justiça, ainda no auge das investigações, em janeiro de 2016.
Moura disse inicialmente em depoimento que Dirceu foi o responsável por indicar Renato Duque para a diretoria de Serviços da Petrobras, um cargo-chave para garantir contratos na estatal, e cobrar propinas sobre negócios feitos. Na frente do juiz Sergio Moro, no entanto, ele mudou a versão. “Assinei isso? (...) Devem ter preenchido um pouquinho mais do que eu tinha falado”, disse o delator à época, dando a entender que seu depoimento foi forjado e que Dirceu era inocente. O réu chegou a afirmar que havia sido ameaçado por alguém no dia anterior ao seu depoimento. O episódio abriu uma crise que levou à demissão coletiva de todos os advogados da equipe do advogado Pedro Ivo Gricoli Iokoi, que representava Moura nas negociações da delação.
Passados cinco anos, as mensagens captadas na operação Spoofing revelam em quatro parágrafos de conversas dos procuradores Deltan Dallagnol e Orlando Martello Júnior como eles receberam a mudança no depoimento de Moura. Nos trechos selecionados pelos advogados do ex-presidente, com base em análise feita por um perito nas mensagens liberadas pelo STF, Dallagnol afirma que uma delegada da PF chamada Erika ―em referência a Érika Marena, que coordenou investigações―, teria “lavrado termo de depoimento” sem ouvir Fernando Moura.
“Como expõe a Erika: ela entendeu que era pedido nosso e lavrou termo de depoimento como se tivesse ouvido o cara, com escrivão e tudo, quando não ouviu nada... dá no mínimo uma falsidade... DPFs [depoimentos falsos] são facilmente expostos a problemas administrativos”, escreveu Dallagnol no Telegram em 25 de janeiro de 2016.
A resposta de Martello, segundo as mensagens, é tão ou mais surpreendente que a afirmação anterior. Ele dá a entender que seria melhor combinar com a delegada de realizar novamente o depoimento: “Podemos combinar com ela de ela nos provocar diante das notícias do jornal para reinquiri-lo ou algo parecido. Podemos conversar com ela e ver qual estratégia ela prefere. Talvez até, diante da notícia, reinquiri-lo de tudo. Se não fizermos algo, cairemos em descrédito. O mesmo ocorreu com padilha e outros. Temos q chamar esse pessoal aqui e reinquiri-los. Já disse, a culpa maior é nossa. Fomos displicentes!!! Todos nós, onde me incluo. Era uma coisa óbvia q não vimos. Confiamos nos advs e nos colaboradores. Erramos mesmo!”. [a grafia está transcrita conforme as mensagens originais]
O procurador admite que “o mesmo ocorreu com padilha e outros” ―possivelmente em referência ao lobista Hamylton Padilha, que também fechou delação onde afirmou ter pago propina a ex-diretores da Petrobras para que seus clientes fossem contratados. Essa afirmação abre novos questionamentos: quantas vezes os réus acusaram seus depoimentos de terem sido forjados? Por que os procuradores não parecem surpresos com o fato de uma delegada ter supostamente admitido ter lavrado um depoimento, “com escrivão e tudo”, sem ter ouvido o réu? Por que a opção por encobrir o fato e não denunciar a delegada?
Consultada, a força-tarefa da Lava Jato afirmou que o caso de Moura foi o único em que um réu mudou sua versão e depois voltou atrás. De acordo com os procuradores, Moura confessou seus crimes em acordo de colaboração premiada e depoimento na PF, porém ele negou os fatos perante a Justiça Federal em depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2016. “Naquela ocasião, ele questionou se de fato tinha feito as afirmações que constavam em seu termo colhido perante a Polícia Federal”, admite o MPF.
A força-tarefa jamais reconheceu a veracidade das mensagens encontradas pelos hackers, hoje presos, que deram origem à série de investigações da Vaza Jato, aberta pelo jornal The Intercept Brasil. Segundo os procuradores, “foram editadas ou deturpadas para fazer falsas acusações que não têm base na realidade”. Porém, afirmam agora que, mesmo que os diálogos tivessem ocorrido da forma como apresentados pela defesa de Lula, eles estão fora de contexto. Em nota, explicam que é natural que os procuradores questionem e especulem se foram tomados todos os cuidados no depoimento de Fernando Moura. “Isso mostra apenas preocupação com a absoluta correção formal e transparência dos procedimentos ―que, se estivessem equivocados, o que jamais se constatou nas apurações que seguiram, precisariam ser corrigidos, com a adoção das providências pertinentes”, informa o MPF.
A PF também esclareceu em nota que todas as ações da polícia judiciária, como depoimentos e interrogatórios, são disponibilizadas aos investigados e advogados que atuam junto às investigações. “Os termos prestados são conferidos e assinados pelo depoente, pela autoridade policial e advogados eventualmente presentes”, informou à reportagem. A força-tarefa compartilhou ainda trecho em um vídeo de dois minutos com um depoimento de Moura em um procedimento administrativo instaurado para apurar a violação do acordo de colaboração premiada em que o próprio réu admite que mentiu em Juízo, à revelia de seus advogados. “Todo o acordo de delação premiada que eu assinei, que eu vi, ele integralmente está correto”, disse Moura. Ou seja, segundo o MPF, “não houve depoimento lavrado por advogado como se tivesse sido lavrado pela Polícia Federal”.
A semente da dúvida, porém, já está plantada e a defesa de Lula jogou mais combustível na crença de que a Lava Jato violou o devido processo legal. Segundo a Folha de S. Paulo, o ministro da Justiça, André Mendonça, ao qual a PF está subordinada, foi questionado por ministros do Supremo sobre a denúncia contra a delegada Érika Marena, e disse que vai averiguar os fatos.
Moura, por sua vez, após confirmar a delação que havia negado conseguiu uma pequena redução de pena nesse acordo. Seu tempo de prisão passou de 16 anos e 2 meses para 12 anos e seis meses. Acabou saindo em novembro de 2019, quando o Supremo mudou o entendimento sobre a prisão em segunda instância e agora espera o trânsito em julgado.
Carona nas mensagens
A exposição de diálogos da Lava Jato pela defesa de Lula tem feito outros condenados pela Lava Jato terem acesso às mensagens da Operação Spoofing. Por enquanto, o ministro Ricardo Lewandowski tem bloqueado as demandas que acontecem fora do escopo da reclamação inicial do ex-presidente ―acesso à leniência da Odebrecht bem como documentos sobre as tratativas da Lava Jato com órgãos estrangeiros, relacionados ao processo do caso do Instituto Lula, parado em primeira instância. É o que aconteceu com os pedidos da Ordem dos Advogados do Brasil; do deputado federal Rui Goethe da Costa Falcão (PT-SP), do ex-governador do Rio Sergio Cabral; do ex-tesoureiro do PT João Vaccarino Neto; do ex-presidente da Eletronuclear Othon Luiz Pinheiro da Silva; e do administrador da Rio Tibagi Leonardo Guerra.
Não está claro o que grupos e condenados pela Lava Jato esperam conseguir ao espiar os diálogos. Mesmo a defesa de Lula, de quem inicialmente esperava-se que utilizasse as mensagens para engrossar o argumento do habeas corpus que pede a suspeição de Sergio Moro ― parado na mesa do ministro Gilmar Mendes―, vem incluindo as mensagens apenas nos autos da reclamação sobre o caso do acesso à leniência da Odebrecht. Mas as manifestações recentes dos advogados de Lula são recheadas de denúncias que não têm relação com o caso em disputa, mas que despertam desconfianças sobre os métodos da Lava Jato. E a dúvida, na Justiça brasileira, sempre beneficia os réus ao invocar a presunção da inocência: in dubio, pro reo.
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