segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Forças armadas e política no Brasil, por Ivan Colangelo Salomão


Forças armadas e política no Brasil

Chaga histórica a acometer diversas nações ditas em desenvolvimento, a intromissão indevida das Forças Armadas no universo político reflete o grau de (in)civilidade a que chegaram diversas daquelas sociedades.

por Ivan Colangelo Salomão
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Contra minha vontade, retomo o assunto da última coluna. Não gostaria de fazer do tema uma obsessão, mas quando o destino de um país depende do juízo e da boa vontade de um grupo de 15 senhores armados, é porque o fundo do poço encontra-se diversos palmos acima. Eis a situação do Brasil em 2022.

Chaga histórica a acometer diversas nações ditas em desenvolvimento, a intromissão indevida das Forças Armadas no universo político reflete o grau de (in)civilidade a que chegaram diversas daquelas sociedades. Menos devido a eventuais interesses escusos e práticas condenáveis do que à impossibilidade de se domesticar um dos nossos mais primitivos, e condenáveis, instintos animais: o recurso à violência física como meio de resolução de conflitos. Trata-se, em alguma medida, do mais relevante divisor entre a meia-dúzia de países que atingiram o andar de cima do desenvolvimento institucional e os que vivemos na barbárie.

Se, a rigor, não foi exatamente a porta de entrada das Forças Armadas na política brasileira, a Guerra do Paraguai (1864-1870) consumou o desposar dessa relação tóxica. Resultado da confluência de interesses da burguesia mercantil de Buenos Aires com devaneios tétricos de D. Pedro II, o aprofundamento do conflito sul-americano foi um dos maiores erros da história brasileira no século XIX. A um custo econômico incalculável e de mais de 400 mil vidas – das quais, quase 100 mil compatriotas –, a conflagração colocou o Exército brasileiro no centro da arena política a partir da década de 1870.

Se a guerra avivou a causa republicana entre os militares, o abolicionismo concorreu para corroer por dentro o apoio das forças ao regime imperial. Utilizados como bucha de canhão, os ex-combatentes negros posteriormente alforriados cerraram fileiras na trincheira verdadeiramente importante de seu tempo: a extinção do cativeiro. Ao lutarem ao lado de uruguaios e argentinos negros e livres, os escravizados brasileiros fizeram de sua causa mais legítima a cama de gato do edifício monárquico. Bandeiras nem sempre interligadas, o republicanismo e o abolicionismo, juntos, consagraram a posição do Exército como interlocutor obrigatório. Instados num dos momentos mais importantes da história contemporânea do país, os militares ali adentraram a cena política brasileira para dela nunca mais se retirarem.

Atuantes em todos os momentos fulcrais da nossa experiência republicana, as forças fizeram-se presentes na proclamação da República, na Guerra de Canudos, na Guerra do Contestado, no movimento tenentista e na Coluna Prestes. Na Revolução de 1930, na caça a Lampião, na intentona Comunista, no Plano Cohen e no golpe do Estado Novo. Na deposição de Vargas, no suicídio de Vargas, na deposição de Carlos Luz e na posse de Juscelino. Em Aragarças e Jacareacanga, na posse parlamentarista de Goulart e no golpe militar contra Goulart. O resto é história.

Sucumbida a ditadura, o marco mais relevante na área veio da pena de FHC. A criação do Ministério da Defesa, em 1999, foi um duplo twist carpado que colocou as Forças Armadas no local de que não costumam sair nos países civilizados. Reunindo as 3 armas sob o comando de um civil, o arranjo funcionou a contento por quase duas décadas.

Até que um presidente ilegítimo viu-se obrigado a ceder e resolveu decretar intervenção na segurança pública do estado do Rio de Janeiro em fevereiro de 2018. Assistia-se ali à oficialização de um movimento de raízes mais longas, porém. A Guerra do Paraguai do século XXI responde por designação tão legítima quanto eufêmica: Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah), iniciada em 2004.

Se os custos humano e econômico foram inferiores ao do massacre paraguaio – 24 brasileiros em uma operação financiada, majoritariamente, pela ONU –, o efeito político colateral da operação foi indiscutivelmente menos alvissareiro. A lista de 4 dos 11 comandantes brasileiros retrata de forma lacônica e cabal o imbróglio que a Minustah nos legou: Augusto Heleno Ribeiro Pereira, Carlos Alberto dos Santos Cruz, Floriano Peixoto Vieira Neto e Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira.

O famigerado tuíte publicado na véspera de uma votação no STF que poderia impedir a controversa prisão do ex-presidente Lula foi apenas a mais ousada, mas nem de longe a mais relevante intromissão militar na vida política nacional da atualidade. A longa noite por que passa o país não desanuviará sem traumas profundos. Mais uma vez, a sorte da democracia brasileira parece depender mais da força do que da razão.

Vida longa às Forças Armadas! O Brasil precisa de vocês. Nos quartéis, nas fronteiras, nos ares e nos mares; jamais nos gabinetes.


Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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