sábado, 23 de outubro de 2021

Os sinais de diversidade sexual, no Brasil pré-europeu


Da poligamia à homossexualidade, transexualidade e não-binarismo. Um novo estudo traz registros e relatos das diferentes formas de sexualidade dos povos originários – uma história apagada pela colonização dos corpos indígenas

Por Helô D’Angelo, na Revista Cult

A diversidade sexual no Brasil pode parecer uma pauta nascida na atualidade, mas é muito mais antiga: ela existe, pelo menos, desde antes da época colonial. É o que mostram os antropólogos Estevão Rafael Fernandes e Barbara Arisi no estudo Gay Indians in Brazil: Untold Stories of the Colonization of Indigenous Sexualities (“Índios gays no Brasil: Histórias não contadas da colonização das sexualidades indígenas”).

Analisando dezenas de registros das diferentes formas de sexualidade e de relacionamentos entre os índios brasileiros no período colonial, a dupla concluiu que foi a homofobia, e não a homossexualidade, que desembarcou na América com os colonizadores europeus.

Recém-publicada em inglês pela editora alemã Springer, a pesquisa traz exemplos da diversidade de práticas sexuais que datam de muito antes dos processos de colonização: homossexualidade, poligamia e até mesmo algo semelhante à transgeneridade e ao não-binarismo. “As famílias tradicionais brasileiras que os portugueses encontraram quando desembarcaram aqui não eram homofóbicas”, afirma o antropólogo Estevão Rafael Fernandes.

Os pesquisadores partiram de relatos e crônicas históricas dos exploradores europeus. Encontraram um grande número de acusações de “perversão sexual”, “sodomia” e “pederastia”. “São histórias de como a Cruz, a Coroa e o Estado tentaram (e tentam) controlar os corpos indígenas, e de como eles resistem e persistem”, define Barbara Arisi.

Segundo Fernandes, é possível afirmar que a liberdade sexual não costumava ser motivo de preconceito entre os próprios indígenas até a chegada dos colonizadores. É o que mostram casos como o de um nativo que, tido como “hermafrodita” pelos europeus, foi amarrado à boca de um canhão prestes a ser disparado.

Uma vez que a proposta dos autores não era a de publicar uma leitura “exótica” dos costumes sexuais indígenas, a pesquisa investigou principalmente como se deu a colonização sexual e corporal dessas comunidades – e como sua diversidade vem sendo apagada e reestruturada desde a chegada dos europeus no continente americano até os dias de hoje.

De acordo com os antropólogos, os processos de colonização vão muito além dos aparatos burocrático e administrativo, englobando também “o manejo da subjetividade, da afetividade e da corporalidade”, nas palavras de Arisi. A colonização, portanto, se fez muito mais no cotidiano do que em nível de governo, cortando, pouco a pouco, costumes, crenças e práticas culturais dos povos indígenas.

“A colonização baseia-se em um conjunto de relações de poder que opera em relação a noções como raça, gênero e povo, por exemplo, e a partir de práticas desde as quais estas noções são construídas e mantidas justamente para manutenção destas relações de poder”, afirma Fernandes.

Ecos da colonização

Partindo da colonização sexual, os autores abordam também a sexualidade indígena atual, mostrando que os processos de colonização jamais pararam de acontecer: “Se falar em ‘homossexualidade indígena’ choca nos dias de hoje, é necessário ter em mente que tanto a questão da sexualidade quanto a da etnicidade são moldadas historicamente”, diz Fernandes.

Os autores afirmam que existe atualmente uma visão preconceituosa de que o homem branco teria “corrompido” as populações indígenas ao apresentar outras formas de interação sexual e amorosa além da heterossexual e monogâmica.

Essa noção teria começado a circular no Brasil nos anos 1970, quando se consolidou de forma mais organizada o movimento pelos direitos indígenas no país. “É um discurso de que a homossexualidade equivaleria à ‘perda da cultura’, ou seja, de que o indígena LGBT seria ‘menos indígena’ do que o heterossexual”, afirma o pesquisador.

A ideia foi incorporada, inclusive, pelos próprios líderes das aldeias ao longo do processo de colonização, discurso que segundo o antropólogo se relaciona com ideias que ainda hoje chegam às aldeias por meio de agentes de instituições oficiais ou de igrejas. “É como se a homossexualidade se transmitisse por contágio, como doença, levando à perda da identidade cultural”, diz.

O resultado: altas taxas de suicídio entre os índios LGBT, assassinatos por homofobia e pouca visibilidade para o assunto, já que muitos preferem calar do que lutar, prezando pela própria segurança. “Hoje, afirmar-se índio e gay é uma dupla luta pela sobrevivência”, pontua Fernandes.


CULT

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