sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

NEGACIONISMO - As rachaduras da liberdade

Vacinação de crianças indígenas na UBS Aldeia Jaragua Kwaray Djekupe (Foto Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

por Eugênio Trivinho
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O direito à liberdade reivindicado pelo negacionismo vacinatório em meio à pandemia é um exercício hedonista de arruinamento da liberdade alheia

O início de 2022 encontrou os Estados Unidos em novo drama pandêmico. Sob predominância da variante ômicron em fevereiro, o país atingiu novo pico de contaminação por Covid-19. A Johns Hopkins University, que monitora a pandemia no mundo, registrou, em sua plataforma online, mais de 1 milhão de casos confirmados num único dia.1 A cifra dobrou em pouco mais de um mês. O recorde diário anterior, no final de dezembro de 2021, estava no patamar de 500 mil casos.2 A maioria dos cidadãos hospitalizados integravam a legião de não-vacinados. Pela primeira vez, a pandemia agrediu a faixa etária infantil e adolescente. Em janeiro, a curva acumulada passou de cerca de 600 mil para mais de 1 milhão de casos.3

Como essa conjunção de indicadores flagelantes, somada a furacões e incêndios de grandes proporções, pôde acontecer num país tão economicamente desenvolvido como os Estados Unidos?

Que a mais poderosa nação dentre as detentoras de ogivas nucleares seja locus de agressões terroristas, como a ocorrida contra as torres gêmeas de Nova York em 2001, explica-se, de certa forma, pela lógica banal da guerra, que sempre inclui represália dos inimigos. Que o solo estadunidense seja de ótima condutibilidade para cepas pandêmicas colhe na surpresa a mesma atenção fissurada em relação às vulnerabilidades de segurança interna que permitiram a tragédia em 2001, com uso de quatro aviões comerciais de companhias do próprio país.

Particularmente no que tange à curva de óbitos, o alerta ligado às causas do sinistro pandêmico nessa região do mundo carreia ensinamentos instrutivos.

1. Para além de condições hemisfério-climáticas, tipificação genética e estações do ano, o “sistema” de saúde estadunidense, baseado na adesão a seguros, é, como se sabe, bastante insatisfatório em matéria de cobertura universal e integrada. Até 2010, o país não dispunha de mecanismos federalizados para atender as necessidades de todas as faixas etárias e de renda. Ao longo do século XX, a autonomia jurídica dos 50 Estados conviveu, na área da saúde, com apenas dois programas federais, legados pelo keynesianismo pós-crise de 1929 e destinados, a partir da década de 1960, a assistir somente famílias pobres (Medicaid) e idosos acima de 65 anos (Medicare). No início de seu primeiro mandato (2009-2013), Barack Obama propôs medidas estruturais – e polêmicas – para corrigir, aperfeiçoar e expandir o sistema. A política dos Democratas, almejando tornar os mecanismos estatais mais equitativos, articulou, com resistente apoio do Congresso, um compromisso entre administração federal, capital corporativo (sobretudo o das seguradoras de saúde) e cidadãos em torno de direitos e deveres, vantagens e despesas mútuos, sob acompanhamento da primeira instância.

O neoliberalismo nacionalista de Donald Trump, com apoio majoritário dos Republicanos, prejudicou dolosamente os resultados dos oito anos de esforços do predecessor, voltados para a consolidação do sistema previsto. O governo ultraconservador de Trump, pretendendo desmantelá-lo e substituí-lo, desregulamentou obrigações civis (por parte dos cidadãos) que sustentavam minimamente o potencial de universalização razoável dos seguros de saúde. O estrago estrutural foi herdado por Joe Biden, vice de Obama à época. A tendência aparentemente nacionalista-iluminista dos Democratas hoje na Casa Branca abriga a chance de aperfeiçoar o projeto original de federalização das garantias securitárias a todos os habitantes do país, a preços acessíveis e com maior diapasão de atendimento e tratamento.

2. A privatização da saúde prevalece generalizada e assimétrica nos 50 Estados. A mão anônima e impessoal do “mercado”, cânone, regula legalmente as desigualdades de acesso a seguros.

3. A esse traço econômico-financeiro na área da saúde acresce um fator cultural historicamente conhecido, mas com tinturas renovadas. A taxa de negacionismo antiocidental e de outras formas de recusa civil em relação à vacina antipandêmica revelou-se altíssima. Aproxima-se de 40%. A população dos Estados Unidos é de 331 milhões (na referência de dezembro de 2021). Cerca de 130 milhões propagam as (e sofrem mais a gravidade das) cepas de Covid-19.

4. A Constituição dos Estados Unidos protege a liberdade do indivíduo como valor inviolável. Ao longo dos últimos dois séculos e meio, essa notável premissa, a ratificação sistemática de seu reconhecimento político e sua sempre controversa aplicação judicial salvaguardaram, com ressalvas de raça, gênero e orientação sexual, a autodeterminação de cada cidadão nativo e imigrante legal, naturalizado ou não. Depois que o vírus foi oficialmente detectado no país, em janeiro de 2020, a liberdade avocou para si o direito à recusa da oferta vacinatória e à extensão desse descarte a familiares, especialmente menores de idade.

As condições explosivas para o vírus

Esse mosaico de fatores, recorte de extenso rol, torna os Estados Unidos um celeiro explosivo para o vírus. A grave condutibilidade da pandemia em todos os condados expôs o calcanhar de Aquiles do sistema jurídico, do corpus axiológico (de valores predominantes) e das regras consuetudinárias estadunidenses (sobretudo em matéria comportamental e de sociabilidade). Mimetizando efeitos de ameaça bélica estrangeira, o vírus representa gigantesco desafio a esse modelo jurídico-político estrutural de capitalismo pós-industrializado, há bom tempo em fase majoritária de automação de processos por inteligência artificial e sob algoritmização generalizada. Os esforços missionários do democrata Biden, praticamente todos os dias implorando atenção ao lema Get vaccinated na visibilidade multimediática, causam um misto de compaixão e desesperança: o presidente fala para uma muralha aparentemente intransponível, sustentada por milhões de amantes da liberdade avessos à picada bilionária oferecida pelos laboratórios farmacológicos globais. A superação da pandemia depende, em grande parte, do sucesso da tarefa de convencer pessoas livres a adotar todos os protocolos médico-sanitários requeridos, incluindo a adesão aos ciclos de vacinação.

O adiamento diuturno da solução satisfatória a essa conjuntura desfavorável tende a tornar, sabe-se lá quantas vezes, os Estados Unidos candidato à desonrosa posição de epicentro pandêmico do mundo. (Desde o início de 2022, a berlinda voltou a ser a Europa.)4

Essa conjectura, que em tese vale para qualquer país ocidentalizado e ainda sob drama pandêmico, encontra hoje esteio em indicadores sociopolíticos elementares. O desempenho contaminador e letal do Sars-Cov-2 é mais eficaz em territórios marcados por cerca de dez vórtices integrados (não na mesma ordem): (1) regimes de Estado e/ou de governo (em todos os escalões) estruturalmente desorganizados e/ou desarmônicos; (2) setor da saúde pública defasado, desaparelhado, despreparado e/ou não-igualitário; (3) governos federal e/ou regionais ineficientes; (4) lentidão nacional do processo vacinatório; (5) mobilidade urbana sob condições precárias e/ou aglomerantes; (6) histórico cultural leniente no que tange ao cumprimento de protocolos autoprotetivos e de corresponsabilidade solidária com a vida alheia; (7) flexibilização governamental precipitada das restrições de segurança sanitária; (8) adesão significativa da população à desinformação e (9) alto percentual de obstinação anticiência e/ou antivacina.

De uma forma ou outra, os Estados Unidos, como inúmeros países da América Latina e da Europa, demonstraram – e continuam demonstrando – conduta comprometedora em parte dos quesitos.

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) salvou a população de sofrer catástrofe pandêmica incomensuravelmente maior. Como estrutura pública e federalizada de atendimento universal e gratuito para uma população de mais de 215 milhões, o SUS foi a pedra angular da aceleração do processo vacinatório e do esperado controle (ainda não total) da pandemia no país. Esse êxito ocorreu após o Ministério da Saúde atrasar, criminosamente, ao longo de 2020, a aquisição dos fármacos para distribuição aos Estados e Municípios. O resultado positivo de conjunto só aconteceu, no entanto, por um fator crucial: a aderência maior que 80% da população às campanhas de vacinação.

Liberdade para arruinar a liberdade alheia

Evidências robustas e espalhadas autorizam inferências políticas compatíveis, que desnudam um pouco mais o cenário descrito sobre os Estados Unidos: o sintoma é mais vasto.

1. O profuso vitral de rachaduras e limitações de alcance durante a execução de estratégias de combate ao Sars-Cov-2 coincide, no mundo ocidental, com o espelho de fragilidades sanitárias, corrosões político-axiológicas e defecções comunicacionais tanto das formas republicano-democráticas de Estado nacional, fundadas no valor inquestionável da liberdade individual (legalmente condicionada), quanto da própria história cultural dos respectivos povos.

Não sem arrogante nitidez, a pandemia joga na mesa de discussão de países com alta taxa de negacionismo antivacinatório o modo pelo qual um valor essencial à respiração política desde o reduto individual (e, em especial, na relação com o Estado) acabou se tornando um entrave estrutural para a erradicação veloz, eficaz e permanente da letalidade virótica.

O que as falhas de anticorpos acarretam de perigo patogênico para a imunidade do organismo humano as impotências institucionais e administrativas de combate ao bioinimigo invisível podem similarmente fazê-lo em relação aos modelos de Estado e de governo. Não se sabe ainda o tamanho, o alcance e a longevidade daquilo com o que, desde as vísceras da natureza, a espécie humana está lidando, com enorme empenho de recursos tecnocientíficos, expectativas experimentais a céu aberto, sacrifício enlutado, disposições de medo e, o mais tocante, renovação de esperanças. Igualmente, não se sabe qual a envergadura das reverberações futuras desse combate antipandêmico (falho ou exitoso) no redesenho nacional e transnacional das formas políticas e socioeconômicas de Estado. A matéria remanesce aberta: a nulidade de repercussões estruturais vale tanto quanto a urgência de mudanças substanciais e/ou inesperadas.

2. O desafio político-sanitário dentro das fronteiras nacionais envolve combinar duas metas fundamentais (e difíceis): alcançar, no mais breve prazo, 100% de imunização permanente da população e, em conjunto, aperfeiçoar a democracia como regime de Estado e de governo, na direção de sua concretização e enraizamento nas relações sociais cotidianas. Mais além, essa sincronização, aproveitando-se do estágio insidioso de “defensoria do inferno” por parte do vírus, implica corrigir, expandir e consolidar mecanismos republicano-democráticos de universalização eficiente e qualitativa da saúde pública (isolado, portanto, qualquer laivo estatal autoritário, travestido de vacinação compulsória); e, sob o lastro desse fortalecimento da tradição democrática, desidratar – até a menor margem política e social possível – o periculoso tripé em curso: negacionismo anticientífico, desinformação estrutural (com ou sem fake news e lawfare) e extremismo neofascista.

3. A história social das vacinas, em particular o curto estirão contra a Covid-19, é suficiente para mostrar, com indicadores refutáveis apenas pela estultícia e pelo desaviso, que o legítimo direito à liberdade de recusa a receber doses do fármaco em meio a uma pandemia letal representa, em verdade de contrassenso, um ato de celebração do direito de arruinar a liberdade alheia: por mais que as vacinas ofereçam, sem garantia total, percentuais elevados de proteção contra o agravamento dos sintomas, a renitência a vacinar-se, como a liberdade de ódio, põe voluntariamente em risco não somente a vida do negacionista, mas também a dos demais (parceiros ou adversários de ponto de vista).

Essa é a dimensão política da experiência histórica paradoxal e, em alguns casos, aporética (sem linha de fuga) trazida pela pandemia. O exercício da liberdade de expor-se à morte, na medida potencial do risco exportado a outrem, atenta, com luto prévio, contra a liberdade de escolha alheia, diametralmente oposta, em favor de um processo de vida sem perturbações exógenas. Segundo informações laboratoriais correntes, a variante ômicron, contaminando 100 corpos, propaga-se, em poucos dias, para quase 200. No Brasil, o ato de contaminação dolosa ou culposa – de uma só pessoa – configura crime.

3.1. A gravidade do paradoxo ou aporia citada recomenda grifo ampliado: o antigesto negacionista, à sombra deturpada da liberdade, atinge, pura e simplesmente, a liberdade de viver como direito natural e universal. Ao agredir, de modo fortuito, sobretudo quem, aos milhões, não concorda em vigorar como alvo, a grosseria lesa-humanidade evoca descaminhos horrendos da razão ocidental, que insistem em não passar: para os nazistas, liberdade genuína era somente a deles, e esta prerrogativa, arbitrariamente autoatribuída, combinava com imposição de morte exceto a pares.

O negacionismo equivale a um punhal desaforado dirigido à queima-roupa ao peito alheio. Um lado da lâmina afia renitência até o hedonismo indiferente; o outro, a puerilidade típica da visão rústica sobre a vida em comum. Este último aspecto sulca um corte ainda mais inadmissível, à luz dos afetos gregários: no todo, a arma, que, aliás, o negacionista, quando neofascista, substitui facilmente por revólver, expõe uma dinâmica egóica com índice zero de pertencimento solidário à espécie. A importância adulterada (e não inconsciente) sobre o valor da vida própria nubla o contágio mortífero aos lados. A ausência de empatia alcança a insensibilidade necrosada.

Surpreende pouco o fato de o laicismo do punho que segura a arma fazer eco de empáfia com a outra mão, orgulhosa da vertente religiosa que eventualmente cultua para justificar a atitude perante o mundo. Entre tantas inclinações excêntricas, o negacionismo não esconde, desde a bile figadal, aquela ignorância contraditória desacompanhada de autopercepção de suas próprias contradições.

3.2. Esse sucinto delineamento da subjetividade negacionista não descreve, nas entrelinhas, qualquer decadência ou destruição hodierna do modelo civilizatório de respeito liberal pelos outros. A leitura sociofenomenológica revela que, ao longo da história do capitalismo, o modelo liberal de respeito, antifeudal e anti-imperial, sofreu forte viravolta dialética: tornou-se sistemicamente compatível com o alastramento e/ou segregação da desnutrição e da fome, da miséria e do analfabetismo. Esse tipo de respeito é insuficiente por natureza. Sua contiguidade, desde as raízes, com a realidade desigualitária grita às escâncaras, nas praças, nos campos, debaixo de pontes e marquises – o tópos dos olvidados é infindo. Os preceitos humanitários desse cuidado econômico-ideológico (ligado à tradição do liberalismo europeu) para com a alteridade – em particular, com os pobres, índios, negros, homossexuais e periféricos – repousam, com galhardia, em sumas pós-oitocentistas do idealismo anglo-saxônico e neolatino. As legislações progressistas, acertadamente, os abrigam. (Salvo melhor juízo em contrário, muitos liberais e afins os descumprem, exceto em relação a pares de classe de renda e/ou categoria profissional.) É fundamental, porém, concretizar, universalizar e cotidianizar esses preceitos, esgarçando-os e convertendo-os, portanto, em potência diversa (ou, se se quiser, anĭma, do latim “sopro”, “alma”), na direção laica de uma solidariedade de tendência compassiva. A serenidade radicalmente oposta a qualquer sujeição ou vassalagem indaga: quem tem medo da socialização ampla, geral e irrestrita de uma philia e de uma hospitalidade rigorosamente empáticas ao zeramento de riscos e danos ao outro?; quem tem medo da transformação desse princípio em políticas públicas de Estado, até que um dia elas não sejam mais necessárias?


Referências

1. Em 4 de janeiro passado, a “unidade de tempo” do recorde era a semana. Veja-se a notícia da NPR em https://www.npr.org/2022/01/04/1070218466/1-million-us-covid-cases-omicron-surge. Sete dias depois, a “unidade de tempo” era o dia, sinalizando altíssima velocidade de propagação da cepa, conforme notícia da Reuters em https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/us-reports-least-11-mln-covid-cases-day-shattering-global-record-2022-01-11. Os dados da Johns Hopkins University estão em https://coronavirus.jhu.edu/us-map.




* Dedicado a Angela Pintor dos Reis ao Dr. Fernando Antonio de Almeida

Eugênio Trivinho é professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

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