
Fontes: IHU UNISINOS [Imagem: Marielle vive. Créditos: Colagem da revista Elástica (2020)]
https://rebelion.org/
Seu assassinato há quatro anos expôs o sequestro da democracia e a presença de milícias na clandestinidade do estado. Mas sua vida se tornou uma semente e inspira o hacking da política, mandatos coletivos e rebeliões nas periferias.
São quatro anos sem o sorriso, a audácia, a garra em defesa da justiça social, a luta para transformar costumes repressivos e poderes podres por meio de políticas inclusivas; quatro anos sem Marielle Franco, brutalmente assassinada em 14 de março de 2018, junto com seu motorista Anderson Gomes. O fato de até agora não se saber quem foi o principal responsável por seu assassinato é um fato poderoso de como as instituições brasileiras trabalham em favor de pessoas e grupos criminosos considerados intocáveis e inimputáveis, corrompendo os agentes públicos, separando de suas funções àquelas que cumprem o dever de buscar a verdade nas investigações, eliminando provas e ameaçando testemunhas.
O silêncio culpado
Este é um caso exemplar que revela a existência de redes de assassinos e bandidos com uma proximidade peculiar aos grupos que disputam o domínio da política no Rio de Janeiro e no país, atuando no sigilo das instituições republicanas. Esses rizomas, redes políticas de ilegalidades, incluem assassinos profissionais como o ex-deputado Ronnie Lessa, reconhecido como máquina de matar, atuante na guerra dos bicheiros e que, apesar de sua modesta renda, tornou-se um vizinho do presidente em um condomínio na praia da Barra da Tijuca. Acusado de ser o assassino de Marielle, juntamente com Élcio Vieira Queiroz, foi encontrado em seu poder um arsenal com 117 fuzis que estava sendo montado.
A rede de ilegalidades também inclui integrantes de quadrilhas ligadas ao tráfico internacional e ao roubo de armas da polícia e das forças armadas, milicianos como o ex-capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) Adriano Nóbrega, líder do Gabinete do Crime, praticantes de extorsão, grilagem de terras e homicídios. Durante seu tempo na prisão, Adriano recebeu a Medalha Tiradentes, a mais alta distinção da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, do deputado Flávio Bolsonaro, que também contratou membros de sua família como assessores parlamentares. Adriano acabou assassinado em 2020, depois de expressar seu medo de ser vítima de uma "queimada de arquivo".
Tantos anos se passaram e apesar do fato de que, naquela época, o Rio de Janeiro estava sob intervenção militar, comandada pelo general do Exército Walter Braga Neto - atual ministro da Defesa e provável vice-presidente na fórmula de Jair Bolsonaro -, até o dia de hoje não há respostas para 14 perguntas elencadas pelo Instituto Marielle Franco, relativas a:
– CRIME: principal responsável e motivação do crime; relação entre a clonagem de carros e o Crime Bureau; perda de munições e armas utilizadas no crime; autoria da desativação das câmeras do percurso do carro.
– INVESTIGAÇÃO: falta de articulação entre órgãos estaduais e federais; não envio pelo Google dos dados solicitados pelo MPRJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) e pela Polícia Civil; inúmeras trocas de comando na Delegacia de Homicídios responsável pelo caso; tentativas de fraude; mudança do superintendente da Polícia Federal que investiga a interferência na investigação; alteração do depoimento do porteiro do condomínio onde moravam Jair Bolsonaro e Ronnie Lessa (um dos assassinos).
– A AÇÃO DOS ÓRGÃOS EXTERNOS: as informações solicitadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos não foram enviadas e as recomendações da Comissão Externa no Congresso Nacional em 2018 não foram aplicadas.
O silêncio culposo é acompanhado por ações que perpetram a violência tanto simbolicamente, como o rompimento da placa em homenagem a Marielle pelo deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) - preso por ataques ao STF (Supremo Tribunal Federal) e apoiado como possível candidato a no Senado pela família Bolsonaro - como por meio do extermínio e repressão da juventude negra nas favelas, como o massacre do Jacarezinho e as prisões arbitrárias de "elementos suspeitos" por serem, nas palavras do deputado, "à época errados" no lugar errado”, como padarias ou shopping centers. Só em 2021, a Polícia Militar matou 109 pessoas a mais no Rio de Janeiro do que em 2020.
O símbolo
É de se perguntar o que levou milhares de pessoas, principalmente jovens, a saírem às ruas para lamentar a morte da vereadora, em uma cena que se repete em várias cidades, países e datas desde o assassinato, entoando slogans como "Marielle! presente, tornou-se semente!”
Marielle foi eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016, aos 37 anos, com 46.502 votos, sendo a quinta parlamentar mais votada nessas eleições. Apresentando-se como mulher, negra, mãe, socióloga, moradora da favela da Maré, defensora dos direitos humanos e da população LGBTIA+, Marielle sintetizou uma trajetória pessoal e coletiva de lutas e conquistas da população das favelas e periferias e de identidade movimentos.
Tendo se tornado mãe aos 19 anos, ela fez parte das estatísticas de gravidez na adolescência nas favelas, o que a levou a interromper os estudos, para depois voltar a estudar no pré-vestibular comunitário do Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM). ). Em 2002, ingressou no curso de Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica PUC/Rio de Janeiro, obtendo bolsa integral do Programa Universidade para Todos (Prouni). Em 2014 tornou-se Mestre em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense, com a dissertação intitulada “UPP- A redução da favela a três letras”.
Sua trajetória nos diz muito sobre o processo de transformações sociais que vem ocorrendo no país, principalmente nas favelas e periferias, que foi identificado por Tiaraju D'Andrea (2020) [2] como a emergência do sujeito e da periferia assuntos. É um processo de subjetivação, fruto de processos sociais complexos, que levaram os próprios moradores das favelas e periferias, por meio de sua participação em grupos culturais e da entrada de jovens da periferia na Universidade, a significar de forma poderosa e identidade positiva e pertencimento à periferia. Em meio à escalada de violência decorrente da guerra às drogas, moradores de favelas, como a família de Marielle, Dona Marinete e Seu Toninho,
A entrada de jovens da favela e da periferia nas universidades é fruto da insurgência dos jovens contra o lugar de exclusão que a sociedade lhes atribui, em um ambiente de individualismo e competitividade, no qual as promessas de sucesso por meio do empreendedorismo eles acabam culpando aqueles que não conseguem. Diante da hegemonia dos valores neoliberais, é importante reconhecer na emergência e proliferação dos Coletivos Culturais nas periferias um aspecto da disputa contra-hegemônica que resgata a importância do comum, do coletivo, da cultura, da memória, de pertencimento, como formas de destronamento do individualismo sacralizado.
As iniciativas de organização e promoção de cursos comunitários pré-universitários, centros culturais, museus como o Museo de la Maré, têm sido cruciais nesse processo de democratização do acesso ao ensino superior, juntamente com o conjunto de políticas públicas como cotas e as formas de financiamento estudantil -Prouni, Fies- que modificaram a composição elitista da universidade brasileira. A partir de 2019, a maioria dos alunos das universidades federais é negra e vem de escolas públicas. Además de permitir una mayor movilidad social con la entrada de personas con niveles de renta más bajos, ha proporcionado la desvinculación de la educación superior, con el esfuerzo de grupos como Educafro para superar la exclusión de los jóvenes negros por la negación del acceso a la Educação de qualidade.
Marielle tornou-se símbolo das lutas identitárias de mulheres, negros e da população LGBTIA+, que hoje tocam corações e mentes de jovens de todas as camadas sociais. Longe da visão simplista, que considera as lutas identitárias como uma falsa consciência que impede que a luta de classes seja problematizada, a atuação de Marielle como parlamentar e ativista de direitos humanos junto aos movimentos sociais sempre vinculou as diferentes formas de exploração à reprodução da dominação e exclusão social . Esses novos sujeitos quebram a divisão liberal entre o cidadão como dimensão pública e o indivíduo como dimensão privada, introduzindo questões antes consideradas privadas no debate sobre justiça e direitos sociais (Fleury, 2018).
A luta pela diversidade busca mostrar que o universal é feito de infinitos particulares, e somente a consciência crítica os torna politicamente equivalentes, mas não iguais e uniformes. As diferenciações de gênero, raça e habilidade estão mais ligadas à classe do que à etnia, pois têm a ver com relações de poder, alocação de recursos e discursos hegemônicos, ensina Young [3].
A tentativa de silenciar a voz de Marielle por meio de seu assassinato nos remete à questão levantada por Spivack [4] sobre se o subalterno pode falar. A resposta pode ser encontrada na afirmação de Laclau e Mouffe [5] de que a estratégia de hegemonia socialista por meio da democracia radical busca identificar as condições discursivas em que as relações de subordinação tornam-se de opressão, constituindo um lugar de antagonismo. A violência brutal do assassinato demonstra o poder da ação de Marielle ao unir tantas vozes em sua luta por justiça social.
Semente
O slogan da campanha de Marielle, "Sou porque somos", inspirado no conceito Africano Ubuntu, anunciava sua candidatura como uma construção coletiva que se materializou no Mandato Marielle Franco. Os mandatos são uma nova forma de compor uma posição, por meio de um mandato coletivo, fruto da crescente participação popular na disputa pela representação democrática. Se antes os movimentos sociais e identitários se concentravam predominantemente na mobilização e organização de ações coletivas de reivindicação e denúncia, ultimamente tem proliferado no país a ocupação das assembleias legislativas por representantes populares e/ou grupos discriminados e excluídos das eleições. esferas de poder

Os mandatos são uma inovação no exercício da representação, fruto da experiência coletivista em lutas populares e movimentos sociais. Embora a legislação eleitoral apenas permita a apresentação de candidatura, o dispositivo criado pelo mandato permite o exercício conjunto da representação. Esse é o “pé na porta” inicial, expressão muito utilizada por Marielle, no exercício da política como representação. A proliferação de mandatos mostra que essa é uma inovação que veio para ficar.
Outras transformações são exigidas no exercício da representação, tradicionalmente exercido por homens brancos ou não tão brancos, circulando em seus ternos escuros nas Câmaras Legislativas com poltronas estofadas e móveis barrocos de madeira escura que buscam dar pompa e seriedade ao trabalho dos legisladores. A mera presença de mulheres negras, trans, homossexuais, com seus corpos envoltos em panos coloridos, já perturba esse cenário de encenação do poder. Esses parlamentares são frequentemente alvo de situações de discriminação, intolerância e violência, conforme descrito pela deputada estadual Mônica Francisco (PSOL-Rio de Janeiro) em entrevista ao blog CEE/Fiocruz.
Mônica Francisco utiliza o termo hacking para identificar formas de infiltração nas estruturas de poder em sua prática legislativa. É uma longa tradição que também se identifica com o termo forjar, usado por Elizabeth Campos, em referência à resistência de Tereza de Benguela, que transformava as balas e objetos de ferro lançados contra sua comunidade em potes e objetos de trabalho e defesa.
Nas primeiras eleições, que se seguiram ao assassinato de Marielle, três mulheres negras do mandato de Marielle foram eleitas deputadas estaduais pelo PSOL no Rio de Janeiro: Dani Monteiro, Renata Souza e Mónica Francisco. Além disso, Erica Maluginho, do PSOL, foi eleita para a ALESP e Benny Briolly, para a Câmara Municipal de Niterói, a primeira mulher negra e trans da Câmara. Em Joinville, a primeira vereadora negra eleita pelo PT foi Ana Lúcia Martins. O PSOL também elegeu as deputadas federais Taliria Petrone, pelo Rio de Janeiro, e Áurea Carolina, por Minas Gerais. São sementes que deram frutos e aumentaram a participação das mulheres negras na representação política como nunca antes. Mesmo assim, esses parlamentares são constantemente submetidos a ataques racistas e homofóbicos,
Sonia Fleury, pesquisadora principal do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fundação Oswaldo Cruz. Coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco do ICICT/FIOCRUZ .
Notas
[1] FRANCO, Marielle. “ UPP – Redução da favela a três letras: uma análise da Política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro ”. Dissertação de Mestrado . Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2014
[2] D'ANDREA, Tiaraju- Contribuições para a definição de dois conceitos de periferia e sujeitos e sujeitos periféricos . ESTUDO NOVO. ❙❙ CEBRAP ❙❙ SÃO PAULO ❙❙ V39n01 ❙❙ 19-36 ❙❙ JAN.–ABR. 2020
[3] JOVEM, Íris Marion. Inclusão e Democracia . Nova York: Universidade de Oxford; 2000
[4] SPIVACK, Gayatri. Pode ou subordinar Falar ? Belo Horizonte, Editora UFMG, 2014
[5] . LACLAU, Ernest; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e Estratégia Socialista: Rumo a uma Política Democrática Radical . Londres: Verso; 1985.
Tradução: Correspondência de Imprensa .
Fonte (da tradução): https://correspondenciadeprensa.com/?p=24893
Fonte (do original): https://www.ihu.unisinos.br/616910-marielle-vive
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12