quinta-feira, 30 de junho de 2022

Origens da guerra, o papel da Otan e cenários futuros na Ucrânia: uma mesa-redonda com Balibar, Federici e Löwy


Marcello Musto questiona as posições da esquerda diante da invasão da Ucrânia, o papel da Otan e as perspectivas de paz em conversa com três importantes autores da tradição marxista: Étienne Balibar, Silvia Federici e Michael Löwy.

Por Marcello Musto

A guerra na Ucrânia começou há seis meses. De acordo com o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, ela já causou a morte de mais de 4500 civis e forçou quase cinco milhões de pessoas a deixarem suas casas e tornarem-se refugiadas. Esses números não incluem as mortes militares – pelo menos 10000 ucranianos e provavelmente um número maior no lado russo – além das milhões de pessoas que foram deslocados dentro da própria Ucrânia. A invasão do país provocou a destruição em massa de cidades e da infraestrutura civil, o que levará décadas para ser reconstruído, assim como a ocorrência de graves crimes de guerra, como os que foram cometidos durante a ocupação de Mariupol, perpetrados pelas tropas russas.

Com o objetivo de oferecer um painel geral do que aconteceu desde o início da guerra, refletir sobre o papel da Otan e ainda considerar futuros cenários, conduzi uma mesa-redonda com três acadêmicos internacionalmente conhecidos de tradição marxista: Étienne Balibar, atualmente professor da Cátedra de Aniversário de Filosofia Europeia Contemporânea da Universidade de Kingston, em Londres, Silvia Federici, professora emérita de Filosofia Política da Universidade de Hofstra, em Hempstead, nos Estados Unidos (EUA), e Michael Löwy, diretor de investigações emérito do Centro Nacional de Investigação Científica, em Paris. O debate abaixo é resultado de inúmeras conversas realizadas nas últimas duas semanas, por meio de e-mails e telefonemas.

Marcello Musto: A invasão russa da Ucrânia trouxe a brutalidade da guerra de volta à Europa e confrontou o mundo com o dilema de como responder ao ataque da soberania ucraniana.

Michael Löwy: Enquanto Putin estava querendo proteger as minorias russófonas da região de Donetsk, havia uma certa racionalidade em suas políticas. O mesmo pode ser dito acerca da sua oposição à expansão da Otan na Europa Ocidental. Entretanto, a invasão brutal da Ucrânia, com os vários bombardeamentos de cidades, com milhares de vítimas civis, dentre eles idosos e crianças, não tem nenhuma justificativa.

Étienne Balibar: A guerra que vem se desenvolvendo diante de nossos olhos é “total”. ÉÉ uma guerra de destruição e terror travada pelo exército de um vizinho mais poderoso cujo governo quer anexar o outro país numa aventura imperialista sem possibilidade de voltar atrás. O imperativo urgente e imediato é que a resistência ucraniana deveria se manter e que, para isso, deveria ser e se sentir de fato apoiada por ações e não simplesmente emoções. Que ações? Aqui começa o debate tático, o cálculo da eficácia e riscos da “defensiva” e da “ofensiva”. Entretanto, “esperar para ver” não é uma opção.

MM: Junto à justificada resistência ucraniana, há a questão igualmente crítica de como a Europa pode evitar ser vista como um ator na guerra e, ao invés disso, tanto quanto possível, contribuir com uma iniciativa diplomática para trazer um fim ao conflito armado. Vide a demanda de uma parte significativa da opinião pública, a despeito da retórica belicosa dos últimos três meses, de que a Europa não deveria entrar na guerra. O primeiro objetivo disso é evitar ainda mais sofrimento para a população. Pois o perigo é que, já martirizada pelo exército russo, a nação se torne um acampamento armado que recebe armas da Otan e trava uma guerra longa em nome daqueles que, em Washington, anseiam por um enfraquecimento permanente da Rússia e uma maior dependência econômica e militar da Europa em relação aos EUA. Se isso acontecesse, o conflito iria além da defesa completa e legítima da soberania ucraniana. Aqueles que, desde o início, denunciaram a espiral perigosa de guerra que se seguiria aos carregamentos de armas pesadas para a Ucrânia certamente não estão inconscientes da violência diária perpetrada ali e não desejam abandonar esta população ao poder militar da Rússia. “Não-alinhamento” não significa neutralidade ou equidistância, como inúmeras caricaturas instrumentais sugeriram. Não se trata de pacifismo abstrato por princípio, mas sim de uma alternativa diplomática concreta. Isso implica em pesar cuidadosamente qualquer ação ou declaração para analisar se nos aproxima do objetivo chave na situação atual, ou seja, abrir negociações confiáveis para restaurar a paz.

Silvia Federici: Não há dilema. A guerra da Rússia contra a Ucrânia deve ser condenada. Nada pode justificar a destruição de cidades, a matança de pessoas inocentes, o terror no qual milhares são forçados a viver. Foram violadas muito mais coisas do que a soberania com este ato de agressão. Entretanto, eu concordo, também devemos condenar as várias manobras com as quais os EUA e a Otan têm contribuído para fomentar esta guerra e a decisão dos EUA e da União Europeia de enviar armas para a Ucrânia, o que prolongará a guerra indefinidamente. Enviar armas é particularmente questionável, considerando que a invasão da Rússia poderia ter sido interrompida se os EUA tivessem dado à Rússia a garantia de que a Otan não se estenderia para suas fronteiras.

MM: Desde o início da guerra, um dos principais pontos de discussão tem sido o tipo de ajuda a ser oferecida aos ucranianos para se defenderem contra a agressão russa, mas sem gerar as condições que levariam a uma maior destruição da Ucrânia e à expansão do conflito internacionalmente. Dentre as questões controversas nos últimos meses, estão: o pedido de Zelensky para a imposição de uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia, o nível de sanções econômicas impostas à Rússia e, de forma mais significativa, se enviar armas ao governo ucraniano seria apropriado ou não. Quais são, na sua opinião, as decisões que devem ser tomadas para reduzir o número de vítimas na Ucrânia e prevenir uma escalada da guerra?

ML: Podemos fazer muitas críticas à Ucrânia nos dias de hoje: a falta de democracia, a opressão à minoria russófona, o “ocidentalismo”, entre outras. Mas não se pode negar ao povo ucraniano o direito de se defender contra a invasão russa ao seu território em desprezo brutal e criminoso ao direito das nações à autodeterminação.

EB: Eu diria que a guerra ucraniana contra a invasão russa é uma “guerra justa”, no sentido forte do termo. Estou ciente de que essa é uma categoria questionável e de que sua longa história no ocidente não tem sido imune à manipulação e hipocrisia, ou a ilusões desastrosas, mas não encontro nenhum outro termo mais apropriado. Eu o utilizo, portanto, especificando que uma guerra “justa” é aquela na qual não é suficiente reconhecer a legitimidade dos que estão se defendendo contra a agressão – o critério de acordo com a lei internacional –, mas aquela na qual é necessário comprometer-se com o lado deles. E essa é uma guerra na qual mesmo aqueles que, como eu, para quem toda a guerra – ou toda guerra hoje em dia, no atual estado do mundo – é inaceitável ou desastrosa, não tem a escolha de permanecerem passivos. Pois a consequência disso seria ainda pior. Eu, portanto, sem nenhum entusiasmo, escolho: contra Putin.

MM: Compreendo o espírito dessas observações, mas eu me concentraria mais na necessidade de impedir um conflito geral e, portanto, na necessidade urgente de alcançar um acordo de paz. Quanto mais tempo isso levar, maiores os riscos de expansão da guerra. Ninguém está pensando em desviar o olhar e ignorar o que está acontecendo na Ucrânia. Mas precisamos perceber que, quando um poder nuclear como a Rússia está envolvido, sem nenhum movimento de paz significativo, é ilusório pensar que a guerra contra Putin pode ser “vencida”.

EB: Tenho muito medo da escalada militar – incluindo a nuclear. É aterrorizante e visivelmente não pode ser descartada. Mas pacifismo não é uma opção. A demanda imediata é auxiliar os ucranianos a resistirem. Não vamos começar a brincar de “não-intervenção” novamente. A união europeia já está envolvida na guerra, de qualquer forma. Mesmo sem mandar tropas, está entregando armas – e penso que é a coisa certa a se fazer. Essa é uma forma de intervenção.

MM: Em 9 de maio, a administração de Biden aprovou o Ukraine Democracy Defense Lend-Lease Act of 2022 [Ato de Empréstimo e Arrendamento de Defesa da Democracia Ucraniana de 2022]: um pacote de mais de 40 bilhões de dólares em auxílio militar e financeiro à Ucrânia. É uma soma colossal, à qual deve ser adicionado o auxílio de vários países da União Europeia, e parece projetada para financiar uma guerra prolongada. O próprio Biden fortaleceu essa impressão em 15 de junho, quando anunciou que os EUA estariam enviando ajuda militar no valor adicional de um bilhão de dólares. Os suprimentos cada vez maiores dos EUA e da Otan encorajam Zelensky a continuar adiando as conversações mais do que necessárias com o governo russo. Além disso, considerando-se que armas enviadas em muitas guerras no passado foram posteriormente utilizadas para outros fins, parece razoável se perguntar se essas remessas servirão apenas para expulsar as forças russas do território ucraniano.

SF: Creio que o melhor movimento seria os EUA e a União Europeia darem à Rússia a garantia de que a Ucrânia não aderirá à Otan. Isso foi prometido a Mikhail Gorbachov na época da queda do Muro de Berlim, embora não tenha sido feito por escrito. Infelizmente, não há interesse em buscar uma solução. Muitos na estrutura do poder político e militar dos EUA têm defendido e se preparado para um confronto com a Rússia há anos. E a guerra agora está sendo convenientemente utilizada para justificar um aumento gigantesco na extração de petróleo e colocar de lado todas as preocupações com o aquecimento global. Biden já voltou atrás em sua promessa eleitoral de interromper a perfuração em terras indígenas americanas. Nós também estamos vendo bilhões de dólares sendo transferidos – que poderiam ser utilizados para melhorar as vidas de milhares de americanos – para o complexo industrial-militar dos EUA, que é um dos maiores vencedores dessa guerra. A paz não virá com uma escalada das lutas.

MM: Vamos discutir as reações da esquerda à invasão russa. Algumas organizações, embora apenas uma pequena minoria, cometeram um grande erro político ao recusarem condenar claramente a “operação militar especial” da Rússia – um erro que, além de tudo, fará com que quaisquer denúncias de futuros atos de agressão pela Otan, ou outros, pareçam menos confiáveis. Isso reflete uma visão ideologicamente limitada, que só é capaz de conceber a política de forma unidimensional, como se todas as questões geopolíticas tivessem que ser avaliadas apenas em termos de tentar enfraquecer os EUA. Ao mesmo tempo, muitos na esquerda cederam à tentação de se tornarem, direta ou indiretamente, cobeligerantes nessa guerra. Não me surpreenderam as posições da Internacional Socialista, dos Verdes na Alemanha, ou dos poucos representantes progressistas do Partido Democrático nos EUA – embora conversões inesperadas ao militarismo por pessoas que, no dia anterior, declaravam-se pacifistas sempre me pareçam chocantes e estridentes. O que tenho em mente são as muitas forças da chamada esquerda “radical” que, nessas semanas, perderam qualquer voz distinta entre o coro dos pró-Zelensky. Eu acredito que, ao não se oporem à Guerra, as forças progressistas perdem uma parte essencial de sua razão de ser e acabam engolindo a ideologia do lado oposto.

ML: Eu começaria relembrando que uma das “justificativas” de Putin para a invasão da Ucrânia foi um argumento anticomunista. Em um discurso que fez antes do início da guerra, em 21 de fevereiro, ele afirmou que a Ucrânia “foi completamente criada pelos bolcheviques e pela Rússia comunista” e que Lênin fora o “autor e arquiteto” desse país. Putin declarou sua ambição de restaurar a “Rússia histórica” pré-bolchevique – ou seja, a Rússia czarista – ao anexar a Ucrânia.

EB: Putin disse que Lênin fez uma concessão desastrosa ao nacionalismo ucraniano e que se não o tivesse feito não haveria uma Ucrânia independente, uma vez que as terras ucranianas têm sido vistas por quem vive lá como uma parte da Rússia. Isso se resume a tomar uma posição pró-Stálin e contra Lênin. Naturalmente, acredito que Lênin estava correto quanto à bem conhecida questão das “nacionalidades”.

MM: Lênin escreveu que, embora a luta de uma nação para se libertar do poder imperialista possa ser utilizada por um outro poder imperialista para seus próprios interesses, isso não deveria mudar a política da esquerda em favor do direito das nações à autodeterminação. Forças progressistas têm apoiado historicamente esse princípio, defendendo o direito de Estados estabelecerem suas fronteiras baseando-se na vontade expressa da população.

ML: Não é coincidência que a grande maioria dos partidos da esquerda “radical” do mundo, incluindo mesmo aqueles mais nostálgicos pelo socialismo soviético, tais como os partidos comunistas da Grécia e do Chile, tenham condenado a invasão russa à Ucrânia. Infelizmente, na América Latina, forças importantes da esquerda e governos, tais como o venezuelano, apoiaram o lado de Putin ou se limitaram a uma espécie de posição “neutra” – como Lula, o líder do Partido dos Trabalhadores (PT), no Brasil. Para a esquerda, a escolha está entre o direito dos povos à autodeterminação – conforme defendido por Lênin – e o direito dos impérios de invadir e tentar anexar outros países. Não se pode ter os dois, pois são opções inconciliáveis.

SF: Nos EUA, os porta-vozes dos movimentos de justiça social e organizações feministas como a Code Pink condenaram a agressão russa. Observou-se, entretanto, que a defesa da democracia feita pelos EUA e a Otan é bastante seletiva, considerando-se os registros da Otan e dos EUA no Afeganistão, Iêmen, as operações da Africom no Sahel e a lista podia continuar. A hipocrisia da defesa norte-americana da democracia na Ucrânia é também evidente quando consideramos o silêncio do governo americano face à brutal ocupação da Palestina por Israel e a constante destruição de vidas palestinas. Observou-se também que os EUA abriram suas portas aos ucranianos, depois de fechá-la aos imigrantes da América Latina, embora, para muitos, fugir de seus países fosse também uma questão de vida ou morte. Em relação à esquerda, é com certeza uma vergonha que a esquerda institucional – começando por Ocasio-Cortez – tenha apoiado o envio de armas à Ucrânia. Também gostaria que a mídia radical tivesse sido mais inquisitiva em relação ao que foi dito a nível institucional. Por exemplo, porque “a África está morrendo de fome” por conta da guerra na Ucrânia? Que políticas internacionais fizeram com que os países africanos fossem dependentes dos grãos ucranianos? Por que não comentar a apropriação massiva de terras pelas mãos de companhias internacionais, que levaram muitos a falar sobre uma “nova corrida pela África”? Quero perguntar novamente: quais vidas têm valor? E por que apenas certas formas de morte geram indignação?

MM: Apesar do crescente apoio à Otan depois da invasão russa à Ucrânia – claramente demonstrado pelo pedido formal de adesão a essa organização feito pela Finlândia e Suécia –, é necessário trabalhar mais para que a opinião pública não veja a maior e mais agressiva máquina de guerra no mundo (Otan) como a solução para os problemas da segurança global. Nessa história, a Otan tem mostrado mais uma vez ser uma organização perigosa que, em seu desejo de expansão e dominação unipolar, serve para incitar tensões que levam à guerra no mundo. Há, entretanto, um paradoxo. Quase quatro meses depois do início da Guerra, nós podemos seguramente dizer que Putin não apenas errou na sua estratégia militar, mas também terminou por fortalecer, mesmo do ponto de vista do consenso internacional, o inimigo cuja esfera de influência ele queria limitar: a Otan.

EB: Eu me encontro entre aqueles que pensam que a Otan deveria ter desaparecido no final da Guerra Fria, junto com o Pacto de Varsóvia. Porém, a Otan não tinha apenas funções externas, mas também – e talvez principalmente –, a função de disciplinar, para não dizer domesticar, o campo ocidental. Tudo isso está certamente ligado ao imperialismo: a Otan faz parte dos instrumentos de garantia de que a Europa, no sentido amplo, não tenha uma real autonomia geopolítica face ao império americano. É uma das razões pela qual a Otan foi mantida depois da Guerra Fria. E concordo, as consequências têm sido desastrosas para o mundo todo. A Otan consolidou várias ditaduras na sua própria esfera de influência. Deu cobertura, ou tolerou, todos os tipos de guerras, algumas delas terrivelmente assassinas e envolvendo crimes contra a humanidade. O que está acontecendo no momento por causa da Rússia não mudou minha opinião sobre a Otan.

ML: A Otan é uma organização imperialista, dominada pelos EUA e responsável por inúmeras guerras de agressão. O desmantelamento desse monstro político-militar, criado pela Guerra Fria, é uma exigência democrática fundamental. O seu enfraquecimento nos últimos anos levou o presidente neoliberal da França, Macron, a declarar em 2019, que a organização sofreu uma “morte cerebral”. Infelizmente, a invasão criminosa da Rússia ressuscitou a Otan. Vários países neutros, como a Suécia e a Finlândia, decidiram agora integrá-la. As tropas americanas estão estacionadas na Europa em grande número. A Alemanha, que há dois anos recusou aumentar o seu orçamento militar, apesar da pressão brutal de Trump, decidiu recentemente investir 100 bilhões de euros em rearmamento. Putin salvou a Otan do seu declínio lento, ou talvez do seu desaparecimento.

SF: É preocupante que a guerra da Rússia na Ucrânia tenha produzido uma grande amnésia sobre o expansionismo da Otan e seu apoio à política imperialista da União Europeia e dos EUA. É tempo de reler NATO’s Secret Armies [As armas secretas da Otan], de Daniel Ganser, e refrescar nossa memória sobre o bombardeiro da Otan na Iugoslávia, seu papel no Iraque, sua liderança no bombardeamento e desintegração da Líbia, apenas para mencionar algumas das suas mais recentes operações. Os exemplos do total e constitucional desrespeito da Otan pela democracia, que agora finge defender, são numerosos demais para se contar. Eu não acredito que a Otan estivesse moribunda antes da invasão russa à Ucrânia. Muito pelo contrário. A sua marcha através da Europa ocidental e sua presença na África demonstram o oposto.

MM: Essa amnésia parece ter afetado muitas forças de esquerda no governo. Contrariando seus princípios históricos, a maioria parlamentar da Aliança de Esquerda na Finlândia votou recentemente por aderir à Otan. Na Espanha, grande parte do Unidas Podemos juntou-se ao coro do espectro parlamentar a favor de enviar armas ao exército ucraniano e apoiar o imenso aumento nos gastos militares que irão acompanhar a cúpula da OTAN em Madrid, que será realizada em 29 e 30 de junho. Se um partido não tem a coragem de declarar-se publicamente contra tais políticas, termina por contribuir com a expansão do militarismo americano na Europa. Tal conduta política subalterna já puniu vários partidos de esquerda no passado, inclusive eleitoralmente, assim que surgiu a oportunidade.

EB: O melhor seria que a Europa fosse forte o suficiente para proteger o seu próprio território e que houvesse um sistema efetivo de segurança internacional, ou seja, que as Nações Unidas fossem democraticamente reformuladas e libertadas do direito de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Mas, quanto mais a Otan se levanta como um sistema de segurança, mais as Nações Unidas declinam. Em Kosovo, Líbia e, sobretudo em 2013, no Iraque, o objetivo dos EUA e da Otan no início foi degradar a capacidades de mediação, regulação e justiça internacional das Nações Unidas.

MM: A história que ouvimos da mídia tem sido completamente diferente, mostrando a Otan como a única salvação para a violência e instabilidade política. E, além disso, a russofobia se espalhou por toda a Europa, expondo cidadãos russos à hostilidade e discriminação.

EB: Um grande perigo – talvez o principal relacionado ao que Clausewitz chamou de “fator moral” na guerra – está na tentação de mobilizar a opinião pública, que corretamente simpatiza com os ucranianos, para uma espécie de russofobia. A mídia tem apoiado isso com meias-verdades sobre história russa e soviética e, intencionalmente ou sem querer, tem confundido os sentimentos do povo russo com a ideologia do atual regime oligárquico. Uma coisa é propor sanções e boicotes contra artistas e instituições culturais ou acadêmicas cujas ligações com o regime e sua liderança tenham sido confirmadas. Mas estigmatizar a cultura russa como um todo é uma aberração, até porque uma das poucas chances de escapar do desastre reside na própria opinião pública russa.

MM: Várias das sanções individuais têm sido particularmente duras e contraproducentes. Algumas pessoas que nunca expressaram apoio às políticas do governo russo estão sendo alvo simplesmente porque nasceram na Rússia, qualquer que seja sua opinião sobre a guerra. Tais medidas oferecem combustível para a propaganda nacionalista de Putin e podem impelir os cidadãos russos ao alinhamento com seu governo.

EB: É uma obscenidade, sinceramente, pedir aos cidadãos de uma ditadura policial como a Rússia de Putin que “tomem uma posição” se quiserem continuar a ser bem vindos em nossas “democracias”.

ML: Eu concordo. A russofobia precisa ser rejeitada. É uma ideologia profundamente reacionária, como qualquer forma de chauvinismo nacionalista. Eu acrescentaria que é importante para a esquerda internacionalista, que apoia a resistência do povo ucraniano contra a invasão russa, mostrar também a sua solidariedade para com os muitos russos – indivíduos, jornais e organizações – que têm se oposto à guerra criminosa de Putin na Ucrânia. Esse é o caso de vários grupos e partidos políticos russos que, alegando ser de esquerda, publicaram recentemente uma declaração denunciando a guerra de agressão contra a Ucrânia.

MM: Vamos finalizar falando sobre como pensam que será o curso da guerra e quais cenários futuros possíveis.

EB: Só é possível ser terrivelmente pessimista sobre os desenvolvimentos que virão. Eu próprio acredito que as chances de se evitar desastres são muito remotas. Há pelo menos três razões para isso. Primeiro, a escalada é provável, especialmente se a resistência à invasão conseguir se manter; e pode não parar nas armas “convencionais” – cujo limite com “armas de destruição em massa” tem se tornado muito nebuloso. Segundo, se a guerra acabar num “resultado final” será desastroso de qualquer maneira. Naturalmente, será desastroso se Putin atingir seus objetivos esmagando o povo ucraniano e em razão do encorajamento que isso oferece para outros investimentos do tipo; ou também se for forçado a parar e retroceder, com um retorno à política de blocos na qual o mundo irá então se congelar. Qualquer um desses resultados provocará um surto de nacionalismo e ódio que permanecerá por muito tempo. Terceiro, a guerra, e suas sequelas, atrasam a mobilização do planeta contra a catástrofe climática – de fato, elas ajudarão a precipitá-la, e muito tempo terá sido desperdiçado.

ML: Eu compartilho dessas preocupações, especialmente em relação à demora na luta contra a mudança climática, que está sendo agora totalmente marginalizada pela corrida armamentista de todos os países preocupados com a guerra.

SF: Eu também estou pessimista. Os EUA e outros países da Otan não têm nenhuma intenção de garantir à Rússia que a Otan não irá expandir seu alcance até a fronteira russa. Portanto, a guerra irá continuar com consequências desastrosas para a Ucrânia, Rússia e outros países. Veremos, nos próximos meses, como outros países europeus serão afetados. Eu não consigo imaginar outros cenários futuros além da extensão do estado permanente de guerra que já é uma realidade em muitas partes do mundo e, mais uma vez, o desvio de recursos tão necessários para apoiar a reprodução social contra fins destrutivos. Dói saber que nós não temos um movimento feminista de massa que vá para as ruas, faça greves, determinado a por um fim a todas as guerras.

MM: Também sinto que a guerra não vai parar tão cedo. Uma paz “imperfeita”, mas imediata, seria certamente preferível ao prolongamento das hostilidades, mas demasiadas forças no campo estão trabalhando para um resultado diferente. Toda vez que um chefe de Estado faz um pronunciamento dizendo que “apoiaremos a Ucrânia até que seja vitoriosa”, a perspectiva de negociações recua ainda mais. Ainda assim penso que é mais provável que estejamos nos dirigindo para uma continuação indefinida da guerra, com as tropas russas confrontando o exército ucraniano reabastecido e indiretamente apoiado pela Otan. A esquerda deveria lutar arduamente por uma solução diplomática e contra os aumentos em gastos militares, cujo custo irá recair sobre o mundo do trabalho e levar ao agravamento da crise econômica e social. Se isso acontecer, os vencedores serão os partidos de extrema-direita que atualmente estão deixando suas marcas no debate político europeu de forma cada vez mais agressiva e reacionária.

EB: Para apresentar perspectivas positivas, nosso objetivo teria que ser a recomposição da Europa, no interesse dos povos russos, ucranianos e dos nossos, de tal forma que a questão das nações e nacionalidades seja completamente repensada. Um objetivo ainda mais ambicioso seria inventar e desenvolver uma grande Europa multicultural e multilinguística aberta para o mundo – ao invés de tornar a militarização da União Europeia, por mais inevitável que pareça ser a curto prazo, o sentido do nosso futuro. O objetivo seria evitar o “choque das civilizações” do qual, de outra forma, seremos o epicentro.

ML: Para propor um objetivo mais ambicioso, em termos positivos, eu diria que nós deveríamos imaginar outra Europa e outra Rússia, livres das suas oligarquias capitalistas parasitas. A máxima de Jaurès “o capitalismo carrega a guerra, assim como a nuvem carrega a tempestade” é mais relevante do que nunca. Somente em outra Europa, do Atlântico aos Urais – pós-capitalista, social e ecológica – podem a paz e a justiça serem asseguradas. Esse é um cenário possível? Depende de cada um de nós.


Texto enviado por Marcello Musto especialmente para o Blog da Boitempo, traduzido por Isadora França.

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Marcello Musto é professor de sociologia na Universidade de Toronto (Toronto, Canadá). Suas publicações, disponíveis em seu site, foram traduzidas em vinte e cinco línguas. Pela Boitempo publicou Trabalhadores, uni-vos!: antologia política da I Internacional e O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), além de colaborações com a revista Margem Esquerda.

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