Conhecimento das leis não falta. Mas muitos policiais são premiados por matar “suspeitos”; mas nenhum é agraciado por defender direitos dos cidadãos. Para enfrentar brutalidade, é preciso mudar cultura de “capitão do mato” da corporação
No mês de maio deste ano, dois eventos representaram o dilema da violência policial brasileira. No Rio de Janeiro, no Complexo da Penha, uma operação policial deixou o saldo de 25 mortes. Noutra situação, policiais rodoviários federais trancaram um homem no cubículo de uma viatura e lançaram gás lacrimogêneo ocasionando-lhe a morte. Tais casos se somam aos mais de 6 mil registros de mortes decorrentes de intervenção policial ocorridos em 2021. Esses números levam-nos a questionar a efetividade da temática direitos humanos nas polícias brasileiras.
Já se passaram mais de três décadas desde a promulgação da Constituição de 1988, a qual se fundamenta no princípio da dignidade humana. Além do tempo da norma constitucional, convém citar, por exemplo: promulgação da “Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1993)”; publicação da obra Direitos humanos: coisa de polícia (1998), de Ricardo Balestreri; construção da Matriz curricular nacional para ações formativas dos profissionais da área de segurança pública (2014). Esses documentos que versam sobre direitos são conhecidos e divulgados nas polícias; seja em programas de concursos para ingresso nas corporações ou em atividades formativas dos policiais.
Com isso, boa parte dos policiais já passou por conteúdos de direitos humanos, logo sabem da gravidade que é cometer injustificadamente agressões contra cidadãos. Sem contar que em muitas corporações hoje se exige formação em nível superior para o ingresso nas carreiras e parte considerável dos policiais possui formação em direito; assim, têm ciência de temas como estado de direito e legalidade. Com efeito, é pouco provável que um policial seja violento em suas funções por desconhecimento dos direitos humanos.
Portanto, o problema da violência policial, em especial a letal, não é a ignorância sobre direitos humanos. Em geral, uma das causas é a falta de direcionamento das corporações para efetivar direitos humanos como coisa de polícia em suas atividades práticas. É fato. Por mais que se amplie carga horária em direitos humanos, se essa disciplina não for estruturante das corporações e condicionante das carreiras, pouca relevância ela tem para os policiais. Na verdade, direitos humanos é algo secundário no âmbito das polícias brasileiras, sendo mais visto como exigência externa do que parte da natureza dessas instituições.
Destaca-se que a temática direitos humanos tem pouca relevância para os policiais porque ela dificilmente gera reconhecimentos na carreira. Por exemplo: um policial pode ser condecorado por um ato de bravura que leve à morte de suspeitos, mas dificilmente receberá alguma honraria da corporação por defender direitos dos suspeitos. Ou seja, supostos atos de heroísmos são mensuráveis, já os de direitos humanos ficam dispersos em rotinas desvalorizadas pelas corporações.
Não obstante, a violência policial, especialmente a letal, não é um problema generalizado nas polícias brasileiras. Por exemplo: em termos de mortes decorrentes de intervenção policial, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021), em 2020, cerca de 20% dos casos foram registrados no estado do Rio de Janeiro; ademais, verifica-se concentração de 80% dos casos em 9 estados. Desse modo, enquanto o Rio de Janeiro teve 1.245 registros, o Distrito Federal apresentou 11 registros. Será que essas disparidades estão relacionadas com a quantidade de formação e conhecimento de direitos humanos nas corporações?
Apesar das distinções dos números de letalidade policial entre as corporações, é pouco provável que isso se deva ao quantum de incursões de direitos humanos nos corpos policiais. Na verdade, as vicissitudes dos direitos humanos nas polícias brasileiras estão para além dos números da violência policial, pois têm a ver com fatores como: estrutura e cultura das corporações; dinâmicas da criminalidade; características dos suspeitos e políticas de segurança pública com ênfase na guerra ao crime. Nas polícias, esses fatores parecem agir independentemente da temática dos direitos humanos, gerando, assim, mais ou menos violência policial.
Diante disso, uma operação policial no Rio de Janeiro, com 25 mortes, e uma atividade rotineira da Polícia Rodoviária Federal, com uma morte, fazem parte do mesmo contexto. A compreensão desse contexto é importante para analisar inefetividade dos direitos humanos nas polícias; afinal, as causas da violência policial estão ambiguamente nas corporações e para além delas.
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