Ela permitiu a grupos paramilitares adentrar na política – de câmaras municipais ao Planalto. Suas redes são complexas e lucrativas e exploram a miséria das periferias. Premiado livro de Bruno Paes Manso expõe suas perversas engrenagens
Escrevo esta resenha ainda sob o choque de mais uma chacina que vitimou 19 pessoas na favela do Alemão no Rio de Janeiro, neste julho de 2022, mas também pelo acúmulo de execuções que vemos de norte a sul do país, e pelo crescente sentimento de impotência frente à criminalidade das chamadas forças da ordem. Em 2021, a polícia matou uma média de 17 pessoas por dia, a maioria jovens negros, neste país que não tem pena de morte. Falam em tiroteio, mas quando morrem dezenas e apenas raramente ocorre uma morte de policial, trata-se de execuções. E tem a ver também com a profunda indignação frente ao comportamento de um presidente que encoraja essa criminalidade, com a qual a sua família está diretamente conectada.
Vejo este livro – A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Todavia, São Paulo, 2020) de Bruno Paes Manso – bem como o mais antigo trabalho de Luiz Eduardo Soares, Meu Casaco de General, ou o recente A desigualdade social de Mário Theodoro, como aportes essenciais para entender que não se trata, nessa violência oficial generalizada, de “combate contra o crime”, mas de uma articulação complexa da criminalidade tradicional com as milícias e segmentos policiais e militares, além de redes mais tradicionais como a do jogo de bicho, e organizações mais amplas de compra e venda de drogas e armamentos por atacado, e as atividades bancárias correspondentes. Ao escolher o título “a república das milícias”, o autor claramente aponta para a dimensão de organização política do conjunto, que vai desde o controle da venda do botijão de gás até o apoio do mais alto escalão político.
Queria aqui focar em particular neste universo econômico, que hoje constitui um sistema, e não apenas comportamentos criminosos individuais. As pessoas são forçadas a entrar na lógica que utiliza violência sem dúvida, mas que subsiste e se multiplica pelos enormes lucros auferidos tanto por criminosos comuns como sobretudo pelas diversas forças policiais que travam uma guerra por territórios e pelo controle dos mecanismos de exploração econômica. Entre conflitos, alianças, “mineração”, “arregos” e assassinatos, o dinheiro flui em grande volume, e as pessoas que pagam contam-se em milhões. É realmente uma república, que não só gerou uma ampla base econômica, como a usa para entrar formalmente na política, elegendo inicialmente vereadores, depois deputados, senadores, e até um presidente.
A comunidade de Rio das Pedras é um dos exemplos: “Policiais assumiram o controle da associação de bairro, que já arrecadava mensalidades para mediar a compra de lotes e terrenos. Eles criaram novos negócios e passaram a influenciar não somente instituições, mas também corporações policiais. Profissional e organizado, o grupo assumiu o papel de governo terceirizado de Rio das Pedras, cobrando taxas dos moradores pela gestão da segurança” (página 85). A expressão “governo terceirizado” reflete bem a amplitude da organização, bem como o papel-chave desempenhado por policiais e militares.
“Uma das empresas de Rio das Pedras chegava a vender cerca de 3 mil botijões por dia, o que representava um faturamento mensal de 600 mil reais. Cobrava-se também pela instalação de sinais clandestinos de TV a cabo (de cinquenta a sessenta reais), internet (de dez a 35 reais), segurança de comércio (de trinta a trezentos reais) e de moradores (de quinze a setenta reais). O sargento Dalmir e o major Dilo também se tornaram sócios, na Areal Crédito Fomento Mercantil, que emprestava a juros aos comerciantes, entre outros empreendimentos. A nova composição, mais profissional e influente, abriu caminho para parcerias com a prefeitura” (página 86). A extorsão não só rende, como se enraíza.
O sistema hoje está organizado em inúmeras comunidades do estado do Rio e cobre um conjunto de atividades que o Estado normalmente asseguraria, e que hoje as milícias controlam, cobrando pedágios, por exemplo, sobre as vans que servem áreas menos acessíveis. Promovem grilagem em zonas protegidas por leis ambientais, venda de apartamentos ilegais, sempre “com uma narrativa moralista, herdada dos vigilantes nordestinos e policiais, que associavam o grupo ao modelo de autodefesa territorial” (página 241). O autor estuda as milícias cariocas, mas o exemplo já se multiplica.
O negócio das drogas, longe de ser combatido, na realidade constitui a base para uma participação nos lucros, por meio dos “arregos”. Na Cidade de Deus, “os policiais estavam aterrorizando a comunidade para forçar os integrantes do tráfico local a lhes pagar o ‘arrego’, outra palavra corrente nas conversas cotidianas sobre o crime no Rio de Janeiro. Pagar o arrego significa comprar a trégua com o batalhão ou o distrito local, que então passa a tolerar o movimento de vendas no território. O pagamento do arrego foi fundamental para consolidar o mercado de drogas nos anos 1990 no Rio, uma espécie de regulamentação informal do varejo de drogas estabelecida na ponta pelo policiamento” (página 41).
O sistema se expandiu para inúmeros bairros. Os policiais “assumiam cada vez mais a condição de subprefeitos informais, desempenhando nas favelas tarefas que cabiam ao Estado. Quanto mais fortes politicamente eles ficavam no bairro, mais possibilidades de lucro surgiam. O grupo também passou a reproduzir em seus territórios os negócios geradores de receita das milícias de Rio das Pedras – monopólio da venda de gás, instalação de gatonet, taxas de segurança, proteção para máquinas de caça-níquel, agiotagem, taxa para a regularização de imóveis – e a acumular dinheiro e poder” (página 91) A população fica presa no sistema: “De um lado, a mistura de consentimento e falta de alternativa dos moradores; de outro, a promessa de dinheiro e poder para policiais e paramilitares que participavam do esquema ou que queriam participar” (página 88).
Assim, o modelo econômico gera imensos lucros sem que a população tenha alternativas. O lado impopular desse modelo, segundo Bruno Manso, “é que a maior parte das receitas para bancar o negócio vem da extorsão dos habitantes” (página 77). A falta de alternativas resulta diretamente da violência exercida. “De 190 a 2019, mais de 200 mil pessoas foram assassinadas no Rio de Janeiro, – a maioria negros, homens, com menos de trinta anos, moradores de bairros pobres” (página 251). A violência também assegura mais controle político: “Entre novembro de 2015 e agosto de 2016, treze candidatos, vereadores e lideranças comunitárias foram assassinados” (página 236).
A relação com a família Bolsonaro é forte. O policial civil Rafael Luz Souza “foi preso pela operação Quarto Elemento quando estava em uma boate com dois carros roubados, cinco fuzis e uma metralhadora antiaérea .50, capaz de derrubar aeronaves. Nessa operação, também foram denunciados os irmãos gêmeos Alan e Alex Rodrigues de Oliveira, seguranças da campanha de Flávio Bolsonaro ao Senado em 2018. A irmã dos gêmeos, Valdenice, trabalhava no gabinete de Flávio e ficou encarregada de administrar os gastos da campanha de Flávio ao Senado. Alan e Alex eram sócios de um loteamento irregular e pagavam propinas aos policiais” (página 243).
As conexões são óbvias. “Como Jair vivia em Brasília, a aproximação com os grupos de policiais e paramilitares do Rio se deu por meio do sargento Fabrício de Queiroz, ex-colega de Bolsonaro no Exército e linha de frente do 18º Batalhão. Queiroz era cria da Praça Seca, em Jacarepaguá, e participava dos conflitos policiais com os integrantes do tráfico na Cidade de Deus, que sempre rendeu arrego, armas e uma ampla diversidade de receitas. Em 2003, Queiroz conheceu Adriano da Nóbrega, com quem atuou num homicídio na Cidade de Deus. A participação de policiais do 18º foi fundamental para que as milícias se espalhassem por Jacarepaguá, Recreio e Barra, principalmente depois de 2002, reinventando o modelo de Rio das Pedras. Queiroz era o principal articulador da base de aliados bolsonaristas no meio paramilitar” (página 273).
A República das Milícias gera assim um universo violento e corrupto, baseado na extorsão e nos assassinatos, e solidamente implantado em amplos territórios. Articulado com sistemas formais de exercício de violência, é próspero em termos econômicos e forte em termos políticos. Gerou um universo econômico e social que se expande com violência e assassinatos impunes. Até quando deixaremos que se expanda este câncer? Até quando toleraremos esta desigualdade que joga milhões no desespero, terreno fértil para a bandidagem oficial e o desgoverno crescente? E a desigualdade, como sabemos, tem responsáveis no sistema econômico e político mais amplo. A criminalidade se combate não matando mais gente, mas reduzindo o espaço de miséria no qual ela se enraíza.
Economia da extorsão? Sem dúvida, mas que prospera graças a uma economia de extorsão incomparavelmente mais ampla, que reduz a massa da população brasileira à miséria, amplia o apartheid social e racial, mas usa terno e gravata.
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