terça-feira, 19 de julho de 2022

Sachs: como o Ocidente fracassará na Ucrânia

Por Jeffrey D. Sachs | Tradução: Alice News, adaptada por Outras Palavras

Provocação à Rússia é ápice de um projeto malogrado de dominação global. Por que EUA já não podem executá-lo. Quem são os neocons, que o conceberam. Como ditam a política externa de Biden e podem abrir caminho para a volta de Trump
A guerra na Ucrânia é o ápice de um projeto de 30 anos do movimento neoconservador americano. O governo Biden está repleto dos mesmos neocons que defenderam as guerras de escolha dos EUA na Sérvia (1999), Afeganistão (2001), Iraque (2003), Síria (2011), Líbia (2011), e que tanto fizeram para provocar a Rússia a invadir a Ucrânia. O histórico dos neoconservadores é de um desastre absoluto, mesmo assim Biden formou sua equipe com neoconservadores. Como resultado, Biden está levando a Ucrânia, os EUA e a União Europeia a mais um desastre geopolítico. Se a Europa tiver alguma visão própria, ela se separará desses desastres da política externa dos EUA.

O movimento neocon surgiu na década de 1970 em torno de um grupo de intelectuais de atuação pública, vários dos quais foram influenciados pelo cientista político da Universidade de Chicago, Leo Strauss, e pelo classicista da Universidade de Yale, Donald Kagan. Os líderes neoconservadores incluíam Norman Podhoretz, Irving Kristol, Paul Wolfowitz, Robert Kagan (filho de Donald), Frederick Kagan (filho de Donald), Victoria Nuland (esposa de Robert), Elliott Cohen, Elliott Abrams e Kimberley Allen Kagan (esposa de Frederick).

A principal mensagem dos neocons é que os EUA devem predominar militarmente em todas as regiões do mundo e devem enfrentar as potências regionais em ascensão que um dia poderão desafiar o domínio global ou regional dos EUA, principalmente a Rússia e a China. Com este objetivo, a força militar dos EUA deve estar pré-posicionada em centenas de bases militares em todo o mundo e os EUA devem estar preparados para liderar guerras de escolha, conforme seja necessário. As Nações Unidas devem ser usadas pelos EUA somente quando for útil para fins dos EUA.

Essa abordagem foi explicada primeiro por Paul Wolfowitz em seu projeto de Orientação de Políticas de Defesa (DPG) escrito para o Departamento de Defesa em 2002. O projeto pedia a extensão da rede de segurança liderada pelos EUA para a Europa Central e Oriental, apesar da promessa explícita do ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Hans-Dietrich Genscher, em 1990, de que a unificação alemã não seria seguida pela expansão da OTAN para o leste. Wolfowitz também defendeu as guerras de escolha americanas, defendendo o direito dos Estados Unidos de agir de forma independente, mesmo solitária, em resposta a crises que preocupam os EUA. De acordo com o general Wesley Clark, Wolfowitz já havia deixado claro para Clark em maio de 1991 que os EUA liderariam operações de mudança de regime no Iraque, na Síria e em outros ex-aliados soviéticos.

Os neoconservadores defenderam a ampliação da OTAN para a Ucrânia antes mesmo que isso se tornasse a política oficial dos EUA sob George W. Bush Jr. em 2008. Eles viam a adesão da Ucrânia à OTAN como chave para o domínio regional e global dos EUA. Robert Kagan explicou a posição neocon para a ampliação da OTAN em abril de 2006:

“[Os] russos e chineses não veem nada natural [nas “revoluções coloridas” da antiga União Soviética], apenas golpes apoiados pelo Ocidente projetados para promover a influência ocidental em partes estrategicamente vitais do mundo. Eles estão tão errados assim? A liberalização bem-sucedida da Ucrânia, incitada e apoiada pelas democracias ocidentais, não poderia ser apenas o prelúdio da incorporação dessa nação à OTAN e à União Europeia – em suma, a expansão da hegemonia liberal do Ocidente?”

Kagan reconheceu a terrível consequência do alargamento da OTAN. Ele cita um especialista dizendo: “o Kremlin está se preparando para a ‘batalha pela Ucrânia’ com toda a seriedade”. Após a queda da União Soviética, tanto os EUA quanto a Rússia deveriam ter buscado uma Ucrânia neutra, como um amortecedor prudente e válvula de segurança. Em vez disso, os neocons queriam a “hegemonia” dos EUA, enquanto os russos assumiram a batalha parte como defesa e parte também por suas próprias pretensões imperiais. Sombras da Guerra da Crimeia (1853-6), quando a Grã-Bretanha e a França tentaram enfraquecer a Rússia no Mar Negro após as pressões russas sobre o Império Otomano.

Kagan escreveu o artigo como pessoa física, enquanto sua esposa Victoria Nuland era a embaixadora dos EUA na OTAN sob George W. Bush Jr. Nuland tem sido o quadro neoconservador por excelência. Além de servir como embaixadora de Bush na OTAN, Nuland foi Secretária de Estado Adjunta de Barack Obama para Assuntos Europeus e Eurasianos de 2013 a 2017, período em que participou da derrubada do presidente pró-Rússia da Ucrânia, Viktor Yanukovych, e agora atua como subsecretária de Estado de Biden, liderando a política dos EUA relativa à guerra na Ucrânia.

A perspectiva neocon se baseia em uma falsa premissa predominante: que a superioridade militar, financeira, tecnológica e econômica dos EUA permite que o país dite as regras em todas as regiões do mundo. É uma posição de notável arrogância e notável desdém pelas evidências. Desde a década de 1950, os EUA foram frustrados ou derrotados em quase todos os conflitos regionais em que participaram. No entanto, na “batalha pela Ucrânia”, os neocons estavam prontos a provocar um confronto militar com a Rússia, expandindo a OTAN contra todas as veementes objeções da Rússia, porque acreditavam fervorosamente que a Rússia seria derrotada pelas sanções financeiras dos EUA e pelo arsenal da OTAN.

O Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), um think tank neocon liderado por Kimberley Allen Kagan (e apoiado por grandes empresários do setor de armas como General Dynamics e Raytheon), continua a prometer uma vitória ucraniana. Sobre os avanços da Rússia, a ISW fez um comentário típico: “Independentemente de qual lado fique a cidade [de Sievierodonetsk], a ofensiva russa nos níveis operacional e estratégico provavelmente terá atingido seu ápice, dando à Ucrânia a chance de reiniciar sua contra-ofensivas no nível operacional para empurrar as forças russas de volta.”

Os fatos no território, no entanto, sugerem o contrário. As sanções econômicas do Ocidente tiveram pouco impacto adverso sobre a Rússia, enquanto seu efeito “bumerangue” no resto do mundo foi grande. Além disso, a capacidade dos EUA de reabastecer a Ucrânia com munição e armamentos está seriamente prejudicada pela limitada capacidade de produção norte-americanas e pela quebra das cadeias de suprimentos. A capacidade industrial da Rússia, é claro, supera a da Ucrânia. O PIB da Rússia era cerca de 10 vezes o da Ucrânia antes da guerra, e a Ucrânia agora perdeu grande parte de sua capacidade industrial na guerra.

O resultado mais provável da guerra atual é que a Rússia conquiste uma grande parte da Ucrânia, talvez deixando o país sem saída para o mar, ou quase. A frustração aumentará na Europa e nos EUA com as perdas militares e as consequências estagflacionárias da guerra e das sanções. Os efeitos indiretos podem ser devastadores, se um demagogo de direita nos EUA subir ao poder (ou, no caso de Trump, retornar ao poder) prometendo restaurar a glória militar desbotada dos EUA por meio de uma escalada perigosa.

Em vez de arriscar este desastre, a solução real é acabar com as fantasias neoconservadoras dos últimos 30 anos e deixar que a Ucrânia e a Rússia voltem à mesa de negociações, com a OTAN comprometendo-se a pôr fim ao seu plano de expansão para o leste da Ucrânia e da Geórgia, em troca de uma paz viável que respeite e proteja a soberania e a integridade territorial da Ucrânia.


JEFFREY D. SACHS

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