Imagem: Baz Ratner/REUTERS
Há hipocrisia e supremacismo nos ataques contra a Rússia e a China, reconhece economista liberal. EUA manipulam opinião pública, omitem suas agressões e expõem mundo à guerra total – para manter a todo custo condição hegemônica
Por Jeffrey D. Sachs, no Other News | Tradução: Maurício Ayer
O mundo está à beira de uma catástrofe nuclear em grande parte por causa do fracasso dos líderes políticos ocidentais em serem honestos a respeito das causas da escalada dos conflitos globais. A incansável narrativa ocidental de que o Ocidente é nobre, enquanto Rússia e China são malévolas, é não apenas simplória como extraordinariamente perigosa. É uma tentativa de manipular a opinião pública para não encarar uma tarefa diplomática bastante real e urgente.
A narrativa essencial do Ocidente está embutida na estratégia de segurança nacional dos EUA . A ideia central dos EUA é que a China e a Rússia são oponentes implacáveis que “tentam carcomer a segurança e a prosperidade norte-americanas”. De acordo com os EUA, esses países estão “determinados a tornar as economias menos livres e menos justas, aumentar seu poderio militar e controlar informações e dados para reprimir suas sociedades e expandir sua influência”.
A ironia é que desde 1980 os EUA escolheram entrar em pelo menos 15 guerras contra outros países (Afeganistão, Iraque, Líbia, Panamá, Sérvia, Síria e Iêmen, para citar apenas alguns), enquanto a China não esteve em nenhuma e a Rússia apenas em uma (Síria) fora dos limites da antiga União Soviética. Os EUA têm bases militares em 85 países, a China em três e a Rússia em um (Síria) fora dos limites da antiga União Soviética.
O presidente Joe Biden promoveu essa narrativa, declarando que o maior desafio do nosso tempo é competir com as autocracias, que “procuram fazer avançar seu próprio poder, exportar e expandir sua influência ao redor do mundo e justificar suas políticas e práticas repressivas como um maneira mais eficiente de enfrentar os desafios de hoje”. A estratégia de segurança dos EUA não é obra de um único presidente, mas da burocracia de segurança dos EUA, que é amplamente autônoma e opera por trás de um muro de sigilo.
O medo exagerado em relação à China e à Rússia é vendido ao público ocidental por meio da manipulação dos fatos. Uma geração antes, George W. Bush Jr. vendeu ao público a ideia de que a maior ameaça contra os Estados Unidos era o fundamentalismo islâmico, sem mencionar que foi a CIA, com a Arábia Saudita e outros países, que criou, financiou e mobilizou os jihadistas no Afeganistão, Síria e outros lugares para lutar nas guerras ao lado dos Estados Unidos.
Ou considere a invasão do Afeganistão pela União Soviética em 1980, que foi retratada na mídia ocidental como um ato de perfídia não provocado. Anos depois, soubemos que a invasão soviética foi na verdade precedida por uma operação da CIA destinada a provocar a invasão soviética. A mesma desinformação ocorreu em relação à Síria. A imprensa ocidental está cheia de recriminações contra a assistência militar de Putin a Bashar al-Assad da Síria a partir de 2015, sem mencionar que os EUA apoiaram a derrubada de al-Assad a partir de 2011, com a CIA financiando uma grande operação (Timber Sycamore) para derrubar o governante anos antes da chegada da Rússia.
Ou, mais recentemente, quando a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan de forma totalmente irresponsável, desrespeitando as advertências da China — e nenhum ministro de Relações Exteriores do G7 criticou a provocação, mas os mesmos ministros criticaram duramente a “exagerada reação” da China à viagem de Pelosi.
A narrativa ocidental sobre a guerra na Ucrânia é de que se trata de um ataque não provocado de Putin na busca de recriar o império russo. No entanto, a história real começa com a promessa ocidental ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a OTAN não avançaria para o Leste, seguida por quatro ondas de expansão da OTAN: em 1999, incorporando três países da Europa Central; em 2004, incorporando mais sete, inclusive no Mar Negro e nos Estados Bálticos; em 2008, comprometendo-se a expandir-se à Ucrânia e à Geórgia; e em 2022, convidando quatro líderes da Ásia-Pacífico à OTAN para mirar na China.
A mídia ocidental também não menciona o papel dos EUA na derrubada, em 2014, do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, aliado da Rússia; o fracasso dos governos da França e da Alemanha, garantes do acordo de Minsk II, em pressionar a Ucrânia a cumprir seus compromissos; a vasta quantidade de armamentos dos EUA enviados para a Ucrânia durante os governos Trump e Biden no período que antecedeu a guerra; nem a recusa dos EUA em negociar com Putin a avanço da OTAN à Ucrânia.
É claro que a OTAN diz que isso é puramente defensivo, e Putin não tem nada a temer. Em outras palavras, Putin deve fingir que não existiram as operações da CIA no Afeganistão e na Síria; o bombardeio da OTAN à Sérvia em 1999; a derrubada de Muammar Kadafi pela OTAN em 2011; a ocupação do Afeganistão pela OTAN por 15 anos; nem a “gafe” de Biden pedindo a deposição de Putin (o que obviamente não foi uma gafe); nem a afirmação do secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, de que o objetivo de guerra dos EUA na Ucrânia é enfraquecer a Rússia .
No centro de tudo isso está a tentativa dos EUA de permanecer como a potência hegemônica do mundo, ampliando as alianças militares em todo o mundo para conter ou derrotar a China e a Rússia. É uma ideia perigosa, ilusória e ultrapassada. Os EUA têm apenas 4,2% da população mundial e agora apenas 16% do PIB mundial (medido a preços internacionais). De fato, o PIB combinado do G7 já é menor que o dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), enquanto a população do G7 é apenas 6% do mundo, em comparação com 41% dos BRICS.
Há apenas um país cuja fantasia autodeclarada é ser a potência dominante do mundo: os EUA. Já passou da hora de reconhecerem as verdadeiras fontes de segurança: coesão social interna e cooperação responsável com o resto do mundo, em vez da ilusão de hegemonia. Com essa política externa revisada, os EUA e seus aliados evitariam a guerra com a China e a Rússia e permitiriam que o mundo enfrentasse sua miríade de crises ambientais, energéticas, alimentares e sociais.
Acima de tudo, neste momento de extremo perigo, os líderes europeus devem buscar a verdadeira fonte de segurança para a Europa: não a hegemonia dos EUA, mas arranjos de segurança europeus que respeitem os interesses legítimos de segurança de todas as nações europeias, certamente incluindo a Ucrânia — mas também a Rússia, que continua a resistir às expansões da OTAN ao Mar Negro. A Europa deveria refletir sobre o fato de que o não alargamento da OTAN e a implementação dos acordos de Minsk II teriam evitado esta terrível guerra na Ucrânia. Nesta fase, é a diplomacia, não a escalada militar, que é o verdadeiro caminho para a segurança europeia e global.
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