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TRADUÇÃO: VALENTIN HUARTE
O linguista Noam Chomsky fala sobre os riscos da guerra na Ucrânia, a expansão da OTAN promovida por Joe Biden, a crise climática e as possíveis soluções para nossa situação atual em termos de luta social e cooperação. Também analisa a luta dos movimentos sindicais e de direitos civis nos Estados Unidos, celebra a política do MST e do MTST no Brasil e levanta a necessidade de organização territorial.
Entrevista com Hugo Albuquerque, José Guilherme Pereira Leite e Vanessa Nicolav
O linguista Noam Chomsky fala sobre os riscos da guerra na Ucrânia, a expansão da OTAN promovida por Joe Biden, a crise climática e as possíveis soluções para nossa situação atual em termos de luta social e cooperação. Também analisa a luta dos movimentos sindicais e de direitos civis nos Estados Unidos, celebra a política do MST e do MTST no Brasil e levanta a necessidade de organização territorial.
O linguista Noam Chomsky, um dos mais importantes intelectuais do século 20, está no Brasil, onde observa atentamente o desfecho de duas disputas políticas simultâneas e correlacionadas: o segundo turno das eleições brasileiras, onde Jair Bolsonaro busca a reeleição contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, nos Estados Unidos, a tentativa dos republicanos de retomar o Congresso com uma votação que acontecerá no dia 8 de novembro.
Nesse contexto , a Jacobin Brasil , sob a direção de Hugo Albuquerque, José Guilherme Pereira Leite e Vanessa Nicolav, o entrevistaram com o intuito de decifrar esse momento dramático que vivemos como humanidade e também pensar em possíveis caminhos de resistência e renovação. Mesmo em um mundo atordoado por catástrofes climáticas, o avanço do fascismo - no qual Bolsonaro desempenha um papel importante ao lado de Donald Trump e do líder húngaro Viktor Orbán - e um clima geral de belicismo, Chomsky enumera exemplos e faz recortes históricos das muitas vezes que os movimentos foram esmagados e depois renasceram, sempre deixando alguma conquista.
JB - Você se posicionou nas eleições brasileiras. Qual é a maior ameaça que Bolsonaro representa para o mundo, tanto em termos estratégicos quanto ideológicos? O ultraliberalismo destrutivo e radical de Bolsonaro antecipa um “novo normal”?
NC - Eu teria muito cuidado com a palavra ultraliberalismo aplicada a Bolsonaro. O termo se aplica bem ao seu ministro da Economia, Paulo Guedes, cujos slogans giram sempre em torno da privatização de tudo, deixando tudo nas mãos da esfera privada etc. Hoje isso é chamado de 'liberalismo', mas na realidade é autoritarismo. É entregar tudo aos centros de poder menos transparentes que existem. É, na verdade, o neoliberalismo , e há quarenta anos domina o cenário político, sob o disfarce de um discurso sobre os mercados (que quase sempre acaba sendo uma fraude).
Este neoliberalismo é uma guerra de classes selvagem , um capitalismo desenfreado. Quais são suas consequências? Vejamos o caso dos Estados Unidos. Até a Rand Corporation estima que cerca de 50 bilhões de dólares foram distribuídos entre o 1% mais rico da população nos últimos quarenta anos, desde o início da presidência de Ronald Reagan em 1981. As consequências são visíveis em múltiplos aspectos.
Na década de 1970, os Estados Unidos não eram muito diferentes de qualquer outro país desenvolvido em termos de saúde, taxas de mortalidade, população carcerária etc. agora está tudo fora de controle. Hoje a população carcerária dos Estados Unidos, que não superava a média geral na década de 1970, representa quase dez vezes a de outros países desenvolvidos. O custo dos cuidados de saúde nos Estados Unidos é quase o dobro dos países da sua categoria, embora a qualidade do serviço esteja entre as piores.
Quando Margaret Thatcher se tornou primeira-ministra do Reino Unido em 1979, na mesma época que Reagan nos Estados Unidos, seu primeiro movimento foi enfraquecer e desarmar os sindicatos. Isso abriu a porta para grandes empresas usarem meios ilegais, como sabotagem de greve, para impedir que seus funcionários se organizassem. Tudo isso era ilegal, mas quando o Estado é criminoso, não importa. Houve situações semelhantes em todo o mundo.
Uma das consequências é o crescimento da raiva, do ressentimento e da indiferença na população. O terreno fértil ideal para demagogos como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria e outros. Esses personagens chegam e prometem uma salvação contra a angústia e o sofrimento dos trabalhadores. E, na verdade, eles só aprofundam a situação, porque essas pessoas como Bolsonaro e Orbán estão trabalhando para os opressores.
Veja a agenda legislativa de Donald Trump nos Estados Unidos. Basicamente, o objetivo principal era cortar impostos sobre o setor mais rico e empresarial, ou seja, aumentar a carga sobre o restante da população e posteriormente promover o corte dos direitos da classe trabalhadora. Mas, ao mesmo tempo, Trump tem esse discurso de “eu sou o salvador, não é minha agenda; os culpados são imigrantes, negros, etc. Cuide deles!".
A propósito, antes de passar para Bolsonaro, deixe-me acrescentar que nos Estados Unidos haverá outra eleição, uma semana depois das brasileiras, em 8 de novembro. Uma semana terrível nos espera. Estamos falando das duas maiores sociedades do Hemisfério Ocidental, o colosso do Norte e o colosso do Sul, que fizeram enormes esforços para desenvolver seu potencial, tanto em termos de desenvolvimento quanto em termos de voz, especialmente entre os anos 1950 e 1960, sob a presidência de Juscelino Kubitschek. Na verdade, foi a oposição de John Kennedy a esse processo que abriu caminho para o golpe militar no Brasil, uma das primeiras pragas de tendências neonazistas a eclodir na América Latina, um fedor terrível de retrocesso.
Com o governo Lula, o Brasil rapidamente se tornou um dos países mais influentes e respeitados do mundo, a voz do Sul Global, com imensa redução da pobreza e aumento da inclusão. Mas aí vieram os golpes sutis que levaram Bolsonaro ao governo e provocaram o atual revés. Se Bolsonaro conseguir se manter no poder, seja por meio de eleições ou por meio de algum tipo de golpe, e, uma semana depois, o Partido Republicano dos Estados Unidos —que é protofascista— assumir o Congresso —lembre-se que já tem o do Supremo Tribunal—, circundará o Poder Executivo. Nesse caso, o que resta de democracia nos dois maiores países do continente estará em risco.
Por sua vez, na Europa, Viktor Orbán lidera a Hungria na consolidação de uma democracia intolerante, na qual o Estado aumenta seu poder coercitivo limitando instituições acadêmicas, instrumentos de imprensa independentes e partidos políticos. Orbán projeta uma sociedade fundamentalmente racista, cristã, nacionalista, ou seja, compartilha o ideal e os fundamentos do Partido Republicano. Orbán, aliás, foi a principal atração da Conferência Política da Ação Conservadora , o principal evento da direita norte-americana e do Partido Republicano. Donald Trump não se cansa de fazer discursos mencionando Orbán e vice-versa. É o ideal que eles buscam, e muitos estados republicanos estão adotando políticas que levam nessa direção.
Agora, em 8 de novembro, os republicanos podem assumir o Congresso e preparar o caminho para o próximo passo. Que significa? Isso significa que no Hemisfério Ocidental, as duas grandes potências, uma das quais atua como governo mundial, estariam essencialmente nas mãos de forças fascistas. Isso terá efeitos catastróficos em outros países do hemisfério.
Republicanos e bolsonaristas impedirão esforços moderados de reforma que possam ser aplicados em seus países. E isso terá um impacto cruel e brutal em nível global, dado o imenso tamanho dos Estados Unidos e do Brasil. Nesse sentido, a situação pode ser o verdadeiro pontapé para o crescimento de forças profundamente reacionárias em todo o mundo. Forças que encontram bases populares devido à fratura da ordem social gerada pela selvagem luta de classes dos últimos quarenta anos.
JB - Depois de Bolsonaro, o Brasil é mais violento. Não só a polícia, mas muitos indivíduos e famílias estão armados. Há uma militarização em escala molecular, além dos milhares de soldados do governo federal. Que consequências isso tem na base organizada da extrema direita?
NC - Na outra noite estávamos assistindo ao noticiário brasileiro com minha esposa, que é brasileira. Você provavelmente também viu. Um dos segmentos era uma peça fantástica, mostrando a polícia federal executando um programa para crianças de três, quatro e cinco anos, ensinando-as a manusear fuzis militares.
Eles ensinam essas criaturas a desfilar com capacetes e rifles. Em uma cena as crianças estavam treinando! Estamos falando de crianças que manejam todo tipo de armamento militar e recebem instrução para a guerra. É bastante chocante.
Bolsonaro, você sabe melhor, inundou a sociedade brasileira com armas. O Brasil costumava ser bastante rigoroso com o acesso a armas, mas Bolsonaro simplesmente removeu essas restrições. É por isso que as milícias têm armas. Tudo isso é a base de um eventual golpe. Pode não ser como 1964, mas também não poderia ser muito diferente.
A crítica de Bolsonaro aponta que os generais da ditadura brasileira não foram brutais como seus colegas na Argentina, que executaram trinta mil pessoas. Bolsonaro deixou suas intenções claras de diferentes maneiras. Nem preciso mencioná-los aqui. Quando Bolsonaro votou a favor do impeachment fraudulento de Dilma Roussef, ele dedicou seu voto ao torturador dela, um horror impossível de descrever em palavras. Essas armas devem estar sob controle, senão o Brasil vai acabar sendo algo parecido com a Alemanha nazista.
JB - No Brasil, Lula é a figura mais importante da esquerda há décadas. A classe trabalhadora acabou abraçando-o como um personagem messiânico . Há poucos líderes de esquerda proeminentes. O que podemos esperar dessa última batalha e do cenário pós-Lula?
NC - No Brasil, como geralmente acontece, as lideranças políticas surgem como porta-vozes dos movimentos sociais. Martin Luther King foi uma figura central, mas ele não teria se tornado um, e acho que ele concordaria, se não fosse pelos jovens do Student Nonviolent Coordinating Committee , que estavam dirigindo ônibus pela liberdade pelo Alabama e pela Geórgia, colocando em risco sua vida. vida na tentativa de encorajar os trabalhadores agrícolas negros a votar. Estamos falando de ativistas reais, jovens ativistas que lideravam essas ações de base. Foram eles que geraram a onda da qual King conseguiu se tornar um representante eloquente.
O Brasil tem o que considero o movimento popular mais importante do mundo, o MST. É um movimento enorme, muito corajoso, que faz coisas importantes e que tem representantes impressionantes e até obteve resultados relevantes nas últimas eleições (assim como o MTST). Se olharmos atentamente para esses movimentos, veremos que novos líderes estão surgindo.
Devo dizer que um dos defeitos do PT, do meu ponto de vista, foi a falta de organização territorial efetiva. É chocante observar tantas pessoas que se beneficiaram dos programas sociais dos governos petistas - muitos que eram então crianças e jovens que puderam ir à escola e à universidade graças aos programas de inclusão, ou pelo Bolsa Família, que promovia a criação de pequenas empresas etc. — e eles não reconhecem de onde veio toda essa ajuda. Acredito que um intenso compromisso com a organização territorial teria resolvido esse problema de criação de lideranças.
JB - Partidos e sindicatos perderam muita força no Brasil nas últimas décadas, assim como os movimentos sociais, se tomarmos a década de 1980 como ponto de comparação. Até que ponto as práticas anarquistas ou anarco-sindicalistas — que o senhor defendeu em diversas ocasiões — podem ser uma possibilidade de renovação da esquerda ou de combate a essa ascensão da direita?
NC - Acho que o MST é um bom exemplo. Muito do que eles fazem é desenvolver uma sociedade cooperativa, propriedade cooperativa, participação. É uma construção fundamentalmente voltada para uma indústria de base agropecuária, como a indústria de laticínios e outras, que realmente circulam por toda a sociedade.
É assim que os verdadeiros movimentos populares se desenvolvem: trabalhando para uma economia participativa cooperativa, em escala bastante significativa. Mas é preciso expandir cada vez mais e integrar-se às áreas urbanas com o crescente movimento de moradores de rua.
Vejamos movimentos anarquistas relevantes, como o espanhol, e como ele cresceu ao longo das décadas. No entanto, quando chegou o momento em que eles não conseguiram avançar na direção de uma verdadeira revolução anarquista, eles sucumbiram sob a pressão de uma combinação de fascistas, comunistas e democratas liberais. A pressão foi demais.
Podemos observar esse tipo de desenvolvimento com bastante frequência.
Veja o caso dos Estados Unidos. Hoje temos uma coisa chamada populismo, que nada tem a ver com a versão popular tradicional. O populismo tradicional foi um movimento radical de produtores rurais independentes tentando desenvolver o que eles chamavam de regras cooperativas comuns que os libertariam dos Estados Unidos. Banqueiros do norte e leste do país e agentes do mercado organizaram a destruição desse movimento operário, um dos mais importantes do final do século XIX. Teriam construído a base de um país bem diferente, mas perderam na relação de forças.
A elite capitalista dos EUA está bem organizada, bastante consciente de sua natureza de classe e lutando arduamente. É capaz de mobilizar recursos estatais e destruir tudo em seu caminho. Mas isso aconteceu muitas vezes em muitos países. E é isso que o MST resiste aqui no Brasil.
Antes da década de 1920, o movimento trabalhista foi quase completamente destruído pelas medidas profundamente repressivas do presidente Woodrow Wilson, que liderou a pior repressão da história americana. Milhares de radicais foram deportados, o pensamento independente desapareceu, a desigualdade cresceu, quase como agora, e o movimento sindical foi praticamente aniquilado.
Nos anos que se seguiram, dos quais já me lembro, começou a criação do CIO [Congresso de Organizações Industriais, fundado em 1935], uma grande central sindical que promoveu grandes atos militantes dos trabalhadores e modificou a política dos Estados Unidos. Então tivemos um governo razoável que estabeleceu as bases de uma social-democracia moderna e que, embora tenha tido muitas falhas e recebido muitas críticas, promoveu enormes avanços nas políticas assistenciais e de direitos humanos. Esse crescimento de movimentos nos Estados Unidos foi um imenso desafio para os líderes da economia e do sistema político americano, que pretendiam desmantelá-lo novamente.
Mas me parece que pode renascer, e acho que também pode renascer no Brasil e em outros lugares. Há sinais: os casos da Colômbia e do Chile poderiam se repetir no Brasil, e seria muito diferente dado o tamanho do país e a influência que tem no Sul Global.
JB - Você fala muito sobre a destruição da Amazônia. Mas além de Bolsonaro, que a promove, tem a cumplicidade do mercado mundial e da comunidade internacional, que não apoia diretamente a devastação, mas também não toma medidas concretas contra o atual governo. A Amazônia é a última fronteira do capitalismo?
NC - Pode ser a fronteira final da sociedade organizada na Terra, não apenas a do capitalismo. Já sabemos há algum tempo que, se as tendências atuais continuarem seu curso, a Amazônia, cuja maior parte é território brasileiro, desaparecerá. Da mesma forma, chegará um ponto em que a umidade produzida será insuficiente para sustentar a floresta e ela se tornará uma savana: de maior reserva de carbono, passará a ser um grande emissor de carbono.
Isso é um desastre para o Brasil, uma catástrofe que o mundo não conseguirá superar. Era algo que esperávamos acontecer em algumas décadas, mas recentemente, cientistas brasileiros descobriram que o crescimento da extração ilegal de madeira, mineração e agronegócios financiados pelo governo Bolsonaro começou a ocupar áreas da Amazônia que já estavam em estado crítico.
Uma das piores consequências das eleições de duas semanas atrás foi a vitória de pessoas como Ricardo Salles. Salles lidera uma verdadeira campanha para destruir a vida humana na Terra. Parece exagerado, mas não é. Esse é o significado da destruição da Amazônia, é uma das principais formas de comprometer a vida humana.
Agora, vamos voltar a 8 de novembro nos Estados Unidos. O Partido Republicano pode tomar o Congresso. É um partido completamente negacionista, eles negam que a mudança climática esteja acontecendo. Eles dizem: "Quem se importa?" Trump foi o mais explícito nesse sentido, mas o resto do partido também não tem interesse no assunto, porque está enriquecendo as empresas de combustíveis fósseis cujo lucro é cada vez maior.
Há muitas outras coisas acontecendo no mundo que são tão assustadoras quanto a destruição da Amazônia: o Ártico está aquecendo mais rápido do que os cientistas esperavam, e uma das consequências é que o permafrost, que armazena uma quantidade astronômica de carbono, está derretendo e que está começando a liberar gases tóxicos na atmosfera.
Uma grande empresa de energia, a ConocoPhillips, acaba de anunciar uma grande descoberta científica. Eles encontraram uma maneira de retardar o degelo do permafrost no Alasca, onde exploram petróleo, introduzindo hastes de metal no gelo. Porque é que eles estão a fazer isto? Para endurecer a superfície e extrair o óleo mantendo os níveis de produtividade. Não estamos diante de uma forma selvagem de capitalismo, estamos diante de uma forma brutal. Vamos atrasar o degelo do permafrost precisamente para que possamos extrair o material que destrói o mundo a um ritmo mais rápido.
Coisas assim estão acontecendo em todos os lugares. Muitos estavam bastante motivados pela incrível façanha do acordo entre Israel e Líbano sobre sua longa disputa territorial no Mediterrâneo, anunciado há poucos dias. Mas, na realidade, tem a ver com o compartilhamento de áreas de gás subaquático e pode acabar sendo um golpe de misericórdia mais rápido contra países que têm costas mediterrâneas.
Alguns cientistas descobriram que as estimativas do aumento do nível do mar no Mediterrâneo eram muito conservadoras. Agora a previsão é que até o final do século o aumento chegue a dois metros e meio. Imagine isso: oito pés de elevação do nível do mar!
Enquanto isso, Israel e Líbano discutem quem vai enfiar a adaga no coração de todas essas sociedades. É isso que eles estão comemorando. Quando se viaja para o sul da Ásia, vê-se coisas semelhantes. É como se aqueles que Adam Smith chamou de donos da humanidade tivessem feito uma aposta para ver quem nos destruirá primeiro.
Há poucos dias, a Associação Meteorológica Mundial publicou sua análise da situação climática global e disse que devemos dobrar o investimento no desenvolvimento de tecnologias sustentáveis antes de 2030 – ou seja, alguns anos – se quisermos continuar tendo esperança de sobreviver de forma organizada. Mas na Ucrânia as potências mundiais estão despejando recursos escassos na destruição em massa, revertendo esforços limitados que deveriam ter como objetivo lidar com a crise climática e condenando a Arábia Saudita por não produzir petróleo suficiente para a destruição.
Se alguém visse tudo isso do espaço, pensaria que a espécie enlouqueceu, que a luta de classes está se tornando absolutamente brutal.
JB - Seu trabalho nos ensina que há uma conexão entre os assuntos internos e os assuntos externos de todos os países. Agora, Biden iniciou uma política de expansão da OTAN excessivamente agressiva. Este é um assunto que não foi suficientemente discutido. Até personagens como Kissinger notaram o problema. O que você pensa sobre isso? Como o mundo está dividido hoje? Qual é a "ordem" por trás da "desordem" superficial?
NC - Vamos voltar um pouco. As advertências de Henry Kissinger são as mesmas dos mais altos níveis da diplomacia nos últimos trinta anos, pelo menos aqueles que têm alguma familiaridade com a situação na Rússia e na Europa. Notavelmente, George Kennan, na década de 1990, alertou Bill Clinton para não iniciar um processo de expansão da OTAN; Jack Matlock Jr., um dos principais diplomatas dos Estados Unidos e embaixador de Ronald Reagan na União Soviética, diz a mesma coisa; Alguns líderes da CIA, incluindo seu atual chefe, William Burns, também ex-embaixador russo, alertaram que tudo isso era extremamente perigoso.
Robert Gates, o belicoso segundo secretário de Defesa de Bush, foi irresponsável e provocador quando tentou integrar a Ucrânia à OTAN. Nenhum líder russo aceitaria isso em termos estratégicos. Nem Gorbachev, nem Yeltsin. Nenhum.
Isso acontece há trinta anos, e desde 2014 os Estados Unidos mal mencionam a integração da Ucrânia e da Rússia no comando da OTAN, mas estão fazendo isso de fato, e realizaram essa política antes do governo Biden, por meio de ações que envolveram uma integração efectiva da Ucrânia. A ponto de os jornais do exército descreverem literalmente a Ucrânia como um membro de fato da OTAN, com interoperabilidade de armas e cooperação em ações militares. A Ucrânia se beneficia da disponibilidade de armas da OTAN e os russos fazem o mesmo com a China.
Depois que Biden assumiu o cargo, ele expandiu tudo isso. Especialmente a partir de setembro de 2021, com a decisão oficial de expandir as operações na Ucrânia e avançar para sua adesão à OTAN. Foi o Departamento de Estado que declarou publicamente que não estava levando em conta as preocupações de segurança da Rússia.
Agora este é o pano de fundo da invasão. Não é uma justificativa e, na realidade, todas as invasões tendem a ser uma agressão imperialista brutal. Mas eles também são inconcebivelmente estúpidos.
Temos o exemplo das transcrições das discussões entre o presidente francês Emmanuel Macron e Putin, que estavam disponíveis até poucos dias antes da invasão. Macron ofereceu outra alternativa para satisfazer os interesses russos sem a necessidade de uma invasão.
Putin se desculpou, mas não pôde continuar a conversa porque tinha que – literalmente – esquiar no fim de semana. O que Putin fez foi o melhor que a OTAN poderia esperar: colocou a Europa no bolso dos Estados Unidos, é o melhor presente que Washington poderia receber. E neste ponto temos que voltar um pouco e pensar sobre o que está acontecendo com nosso exército.
Quando a União Soviética entrou em colapso, houve muita discussão sobre o tipo de organização global que surgiria. Estamos diante de dois cenários diferentes que têm raízes bastante fortes. Um deles é o chamado "Atlanticismo", baseado na necessidade de os Estados Unidos dominarem o mundo e subjugarem a Europa. Nessa perspectiva, os Estados Unidos mantêm sua posição global como a conhecemos.
Mikhail Gorbachev ofereceu uma posição alternativa na época do protocolo de Lisboa , uma enorme aliança europeia, sem alianças militares, sem vencedores e perdedores, cooperativa e que trabalharia em conjunto na construção de um tipo de sociedade democrática em toda a região da Eurásia.
Mas os Estados Unidos – incluindo Kissinger – se opuseram a essa proposta e exigiram que os Estados Unidos mantivessem seu papel dominante na estrutura atlantista. Do meu ponto de vista, Putin acabou empurrando a Europa nessa direção.
A colaboração entre a Europa e a Rússia é bastante natural. Eles se complementam de muitas maneiras. O sistema industrial europeu, especialmente o alemão, baseia-se na necessidade de proximidade dos valiosos minerais da Rússia e na oportunidade de se deslocar para o leste, com a iniciativa chinesa da Rota da Seda.
Portanto, estamos hoje diante de um conflito que definirá se vivemos em um mundo unipolar, dominado pelos Estados Unidos e com a Europa subjugada, ou um mundo multipolar, com inúmeros centros de poder que cooperam entre si. Na ordem unipolar, o Hemisfério Ocidental também estaria sujeito ao poder dos Estados Unidos, especialmente com um governo Bolsonaro. O Sul Global tenta ficar de fora, mas não é uma força majoritária e acho que deveríamos estar cooperando.
O aquecimento global não conhece fronteiras. Se houvesse uma guerra nuclear, tudo seria destruído. A pandemia não tinha fronteiras. Caso a caso, estamos todos juntos, ou nos salvamos ou afundamos todos juntos. E não há muito tempo para resolver esses problemas. Devemos lidar com eles nas próximas duas décadas para chegar a um ponto de ruptura. A recuperação não é mais possível. Estamos enfrentando um momento único na história da humanidade, e como resolvemos essas questões de unipolaridade e multipolaridade é o elemento central.
O Brasil teve um papel muito significativo nesse sentido, principalmente com o governo Lula, que revitalizou instituições do Sul Global como a UNASUL, por exemplo, ou os BRICS, dos quais o Brasil foi a base — e pode ser uma força importante em alguns anos — ou, ainda, gerando notáveis avanços no Banco Mundial, que não é uma instituição particularmente progressista. A voz do Brasil ganhava peso, o país ganhava importância no Sul Global. Era um país muito respeitado e pode voltar a ser com um novo governo Lula, e com seus ministros há muito mais espaço para um grupo internacional bastante eficaz e construtivo emergir novamente. Ou podemos ter Trump e Bolsonaro unindo forças reacionárias e destrutivas, tanto em relação à questão climática quanto às políticas sociais.
JB - Há dez anos estávamos celebrando as promessas e o potencial da internet e da cultura digital, da democracia digital etc. Tudo isso supostamente nos levaria a novas formas de participação, debate, compromisso etc. Hoje esse mundo paradisíaco tornou-se um inferno: um inferno de mentiras, falsificações, adulterações, antitransparências, em uma palavra, uma "falha babélica de comunicação". Você concorda com esse diagnóstico? O que você poderia nos dizer sobre isso?
NC - A linguagem não responde a essas perguntas. O que aconteceu com a internet é o que acontece com qualquer tecnologia. A maioria das tecnologias são neutras, como um martelo, que pode ser usado para construir uma casa, ou pode ser usado por um torturador para esmagar a cabeça de alguém; o martelo não mata, e quase qualquer tecnologia, mesmo coisas como a tecnologia nuclear, mesmo que sejam projetadas para destruir e devastar, talvez para acabar com toda a vida humana na Terra, podem, em princípio, ser usadas para outras coisas.
Algumas semanas atrás tivemos um exemplo disso, que foi o experimento para desviar a órbita de um asteroide. Foi um pouco experimental, mas a ideia é que quando um asteroide ameaçar nos atingir poderemos desviá-lo, mesmo usando armas nucleares. Poderíamos também desenvolver a fusão nuclear e produzir energia limpa.
O que quer que escolhamos, praticamente qualquer coisa, pode ser usado para destruir ou construir. E aqui vem o questionamento do esforço humano. As estruturas e instituições sociais que organizam a distribuição do poder implicam diretamente em atritos, lutas de classes, lutas sociais. Então, como podemos usar a internet?
Podemos usar a internet para diferentes formas de organização. De fato, muitas formas de ativismo acontecem por meio da internet.
Esta é a razão pela qual as autoridades fecharam a internet. Certamente haverá questões políticas, mas em princípio pode ser usado para fins libertadores e a favor do conhecimento. Vinte anos atrás, se você quisesse ler algo da imprensa internacional, tinha que encontrar uma grande livraria que pudesse ter mídia estrangeira. Agora usamos nosso teclado e podemos ler. Eu posso ler Al Jazeera, tenho acesso à imprensa brasileira, etc. Hoje temos muitas possibilidades para investigar. No entanto, a internet também pode ser usada, como você diz, para separar as pessoas em pequenos grupos de extremismo ideológico e auto-reforçador que se comunicam e se contatam, e para distribuir mentiras e promover a destruição. Um exemplo memorável foi o das eleições de 2018 no Brasil, o material que circulou no WhatsApp, que foi a fonte mais utilizada.
Essa definição provavelmente se aplica a quase metade dos que se identificam com o Partido Republicano nos Estados Unidos, que neste momento divulga a acusação de que os democratas estão engajados em seduzir crianças para torná-las vítimas de abuso sexual. Portanto, a tecnologia depende de nós. Como vamos usá-lo? Usamos tecnologias para construir ou destruir, e o mesmo se aplica neste caso.
É uma questão de intenção, escolha, compromisso, organização e ativismo.
JB - Ao ouvi-lo, ficamos com a impressão de que existe uma espécie de liderança política internacional que poderia fazer algo para deter esse processo destrutivo, mas não o faz e até se recusa a fazê-lo. Por quê? Por que nossos líderes são tão cegos?
NC - Os líderes projetam a distribuição e o caráter das forças sociais nas sociedades em que vivemos, que são altamente desiguais, especialmente na América Latina, onde a praga da desigualdade é muito antiga. É uma desigualdade radical, que implica diretamente na natureza das instituições políticas.
É uma luta constante. Nada novo. Vejamos os primeiros dias do capitalismo. Quando lemos Adam Smith, um astuto comentarista, vemos que o que ele chamava de donos da humanidade, que eram os comerciantes e fabricantes da Inglaterra, dominavam e controlavam o Estado e eram os principais arquitetos do poder. Eles fizeram política para que seus próprios interesses fossem levados em consideração, não importa quão terrível fosse o efeito que isso tivesse sobre os outros. Eles viveram pela máxima do egoísmo duzentos e cinquenta anos atrás, e ainda é o mesmo hoje. A questão é se os ativistas organizados podem lutar contra isso.
É assim onde quer que olhemos. Veja a Constituição dos Estados Unidos, que é do século 18 e representou um avanço que assustou os líderes europeus, que temiam que a ameaça subversiva da democracia, chamada republicanismo, pudesse crescer e minar sua autoridade. Mas também sabemos que a Constituição foi reacionária, foi um golpe contra a democracia, um golpe dos agricultores contra a democracia.
Era um instrumento com mecanismos para exercer o controle, e entre eles o mais importante, o dos meios de produção e distribuição. E é assim que o mundo continua a se desenvolver. O poder está nas mãos da população em geral e eles só precisam tomá-lo. Se nos acomodarmos, só garantimos que o pior aconteça.
Por exemplo, lembro quando há vinte anos participei do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, com muito entusiasmo, com centenas de pessoas interessantes. Outro mundo é possível se trabalharmos coletivamente. No fórum estávamos todos juntos, havia agricultores e mulheres de todos os países. Estávamos todos procurando uma maneira de trabalhar para o bem comum. E todos esses movimentos tiveram seu impacto, um grande impacto. As chamas sempre podem ser acesas e transmitidas novamente.
NOAM CHOMSKY
Professor Emérito de Linguística do Massachusetts Institute of Technology.
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