sábado, 26 de novembro de 2022

O Brasil na “guerra dos semicondutores”


Apostas de alto risco de Washington, com sanções a Pequim, ameaçam romper cadeias produtivas e podem prejudicar o próprio Ocidente. Diante da disputa, surge uma oportunidade para reconstruir indústria brasileira em atividade estratégica


Por Elaine Santos, no Jornal da USP

Neste espaço onde escrevo todos os meses tenho tentado estabelecer um fio condutor sobre as matérias-primas consideradas essenciais para as chamadas “tecnologias do futuro” e a forma como cada parte do globo vem delineando suas estratégias. Meu objetivo é introduzir no debate público o modo como estas políticas demonstram aspectos comerciais, industriais e tecnológicos que se entrecruzam com dinâmicas militares próprias deste sistema econômico. Portanto, nos últimos meses, escrevi sobre a liberalização do mercado do lítio no Brasil, sobre o projeto europeu de autonomia estratégica e acerca do pacote climático aprovado nos Estados Unidos, que exigirá um aumento na produção de minerais.

A indústria de semicondutores faz parte deste escopo e nos últimos meses podemos dizer que a escalada que tensiona China, Estados Unidos e Taiwan aprofundou-se um pouco mais. Nas últimas semanas de outubro, o governo de Biden publicou um conjunto de controles de exportações incluindo medidas para cortar o acesso da China a certos semicondutores fabricados em qualquer lugar do mundo que utilizem equipamentos norte-americanos. Além disto, também aprovaram a CHIPS and Science Act de 2022, cujo objetivo é aumentar a competitividade, a inovação e a segurança dos Estados Unidos no que tange aos semicondutores. Com investimento da ordem de 50 bilhões de dólares para esta área, o país pretende reconstruir suas cadeias de suprimentos de forma mais doméstica e menos dependente da economia chinesa. A política europeia segue a mesma toada e em 2021 publicou seu European Chips Act, que definiu a necessidade de criar um ecossistema europeu de semicondutores de última geração.

Este processo de redefinição das cadeias pode ser exemplificado através da indústria de microeletrônica e semicondutores e resumido em três pontos: liderança tecnológica para o país que possui os semicondutores mais avançados, integridade nas etapas de produção de semicondutores garantindo que as informações ali contidas na sua programação são confiáveis, e o suprimento, que assegura a manutenção do poderio militar para o país que o desenvolve.

Além disto, e em uma cultura altamente digitalizada como a nossa, os semicondutores são utilizados em praticamente tudo, sensores, chips, smarthphones, videogames, cafeteiras, lavadoras, computadores, veículos, etc. A utilização em veículos foi o que fez sua demanda crescer nos últimos anos e esta demanda deve aumentar ainda mais com a popularização dos veículos elétricos. Vale lembrar que a União Europeia pretende proibir a venda de veículos com motor de combustão a partir de 2035.

Todos estes temas estão visceralmente relacionados a uma nova configuração geopolítica chinesa frente à globalização. E as sanções aos semicondutores, peças fundamentais na construção das modernas tecnologias da informação e comunicação, evidenciam um perfil imperialista ofensivo de Washington, enquanto a China aparece com uma reação mais defensiva. As análises a partir da China são sempre reveladoras, pois demonstram um país extremamente avançado em termos tecnológicos, dentro de um processo de desenvolvimento em que o Estado se coloca como sujeito e objeto de uma nova construção geopolítica, como é demonstrado no livro A expansão econômica e geopolítica da China no século XXI, organizado pelo professor Javier Vadell.

Para ter dimensão do impacto global deste país, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, esteve na Argentina no último outubro e comentou que nos dias atuais todos os grandes debates passam pela China e que nenhum problema sério da humanidade, como é o que caso das mudanças climáticas, poderá ser decidido sem o compromisso desta grande potência. Segundo Josep Borrell, “a China é um sócio, é um competidor e é um rival”, um sócio porque para alguns países da Europa a China é um grande mercado, um competidor porque produz tudo de forma altamente competitiva e difícil de ser combatida, e é também um rival, porque representa um sistema político radicalmente diferente.

Neste sentido, pressionar a produção industrial de semicondutores altamente conectada em um padrão tecnológico dominado por poucas empresas poderá intensificar conflitos, fragilizar ou até paralisar esta cadeia e é certo que nenhum país conseguirá, a curto prazo, ser autossuficiente, como afirmou Mao Ning, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China.

No livro recém-lançado Chip War: The Fight for the World’s Most Critical Technology, Chris Miller comenta que ao realocar suas cadeias tecnológicas em outros países, os Estados Unidos perderam o controle dos seus principais componentes de semicondutores, contribuindo não só para uma possível escassez, como também para que seu adversário, a China, pudesse preencher esta lacuna e se impor. Para se ter uma ideia de como estas cadeias se alteraram nas últimas décadas, a fabricação de semicondutores modernos nos Estados Unidos passou de 37% em 1990 para 12% atualmente, demonstrando o tamanho da dificuldade para banir a China das relações comerciais, mesmo com elevados investimentos.

Neste cenário e longe de esgotar este debate, interessa ao Brasil se posicionar com uma política de Estado relacionada aos setores estratégicos, como venho demonstrando insistentemente no tema dos minerais críticos e que contempla também a produção de semicondutores. Temos o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), a única fabricante de semicondutores da América Latina em via de ser fechada dentro do programa de desestatização do atual Ministério da Economia; temos a Companhia Brasileira de Lítio (CBL), que vem desenvolvendo pesquisas importantes junto ao IPEN. Obviamente que dado o nosso caráter dependente não faremos frente à China, tampouco aos Estados Unidos, porém não podemos somente assistir ao jogo de xadrez sem sequer experimentar jogá-lo.


JORNAL DA USP

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