segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

A globalização arruinou nosso futebol

Em 2002, a maioria dos convocados jogava no país. Em 2006, apenas três. Na Copa do Mundo de 2010, pela primeira vez na história, o destaque da equipe foi a defesa. E na competição seguinte, o time tinha a dupla de defesa mais bem paga do mundo. Fotografia de Robert Michael / DPA


A última Copa do Mundo que o Brasil conquistou foi em 2002, quando a maioria dos jogadores jogava pelo seu país e ainda era possível ver Corinthians e Vasco enfrentar times como Manchester United e Real Madrid. Com o avanço da financeirização do futebol, o número de jogadores que jogam no Brasil diminuiu, assim como a competitividade de nossas seleções e seleções.

O Brasil foi eliminado da Copa do Mundo pela Croácia. Desde 2006, a seleção brasileira perde quando enfrenta uma seleção europeia na fase de mata-mata. A repetição de um padrão sugere que estamos lidando com um sintoma, que deve ser investigado. Culpar o treinador parece conveniente e superficial. O que essas derrotas tão parecidas podem nos dizer sobre o Brasil?

Meu ponto de partida é verificar que, apesar das derrotas, a Seleção continua fazendo as delícias dos brasileiros. Esse fascínio é intensificado na Copa do Mundo, que é um dos raros momentos em que o nacionalismo está à mostra no país.

No entanto, esse entusiasmo nacionalista parece ir contra processos sociais concretos. Com a globalização, a possibilidade de desenvolvimento nacional desapareceu. O neoliberalismo consagrou a competição como princípio organizador da vida social, produzindo uma sociabilidade autofágica. Mas, como fazer uma nação em uma sociedade em que todos lutam contra todos?

Essa forma social privilegia identidades que antagonizam seu "outro": nação cristã, hostil ao candomblé, homossexuais e outras heresias; moralidade policial, que transforma todo suspeito em vagabundo e todo vagabundo em criminoso; a irmandade do crime, que produz lealdades e procedimentos alheios ao Estado, enquanto fuzila os rivais.

A característica comum dessas e de outras identidades é que se alimentam de fraturas brasileiras. Correspondentemente, o nacionalismo que daí decorre não tem como “outro” o imperialismo, que exige unidade interna. Seu "outro" é feito de fissuras reais ou imaginárias que supostamente ameaçam essa unidade. É pela fratura que o bolsonarismo produz sua coesão.

Um investimento é feito. No século XX, a formação da nação assumiu processos de integração, nos quais a diferença se dilui ou se transforma. Como diziam os modernistas, "só o canibalismo nos une". No século 21, a antropofagia deu lugar à autofagia.

Como construir uma nação quando nossa sociabilidade é atravessada por lealdades reforçadas por fraturas? Neste mundo em que as pessoas não se encaixam, atravessado por identidades que se alimentam das exclusões que ele produz, o que ainda nos une como país?

Uma das coisas que nos une é o futebol

Minha hipótese é que o encanto que a seleção continua produzindo nos brasileiros na Copa do Mundo tem a ver com a aspiração latente a uma nação, que, no entanto, nunca se realiza. De alguma forma, os brasileiros projetam na formação de um time que não só vença, mas também enriqueça e embeleze o mundo, a aspiração de uma nação que tem uma valiosa e original contribuição civilizatória.

No entanto, esse encantamento é sempre frustrado da mesma forma. Desde 2006, o Brasil tem se revelado um time tecnicamente superior aos adversários que o derrotam, sempre com um futebol desprovido de nossa poesia. É como se o paradoxo de um país tão rico por natureza, mas malsucedido, se apresentasse em campo a cada quatro anos.

Como posso explicar isso? Não tenho a resposta, mas temos que pensar nisso. Culpar o treinador é uma forma de evitar a dor da crítica, mas também de se condenar à repetição. A europeização do futebol, a celebração dos jogadores e as expectativas projetadas na seleção fazem parte do problema.

A última Copa do Mundo que o Brasil conquistou foi em 2002, mesmo ano em que Lula foi eleito. Naquela época, ainda era possível que times como Corinthians e Vasco da Gama enfrentassem, em igualdade de condições e com vitória, times como Manchester United e Real Madrid. Desde então, isso é impossível.

O ponto de viragem foi a liberalização do mercado europeu do futebol, que até finais do século XX impôs quotas a jogadores estrangeiros que pudessem jogar em seleções nacionais. Com isso, em 2010 o Inter de Milão conquistou a Copa dos Campeões sem ter nenhum jogador italiano em campo. Difícil não associar esse processo à decadência do futebol italiano: o país que conquistou quatro Copas nem se classificou para as duas últimas.

Essa liberalização teve efeitos devastadores no futebol sul-americano, pois inviabilizou a formação de times. Qualquer time que se destaque é desmontado e seus jogadores são comercializados. Os clubes se tornaram vitrines para jogadores de exportação.

Como o futebol é um esporte coletivo, a impossibilidade de formação de times comprometia a própria existência do futebol brasileiro, entendido como um estilo associado ao refinamento técnico, criatividade e ofensiva. O Brasil não produz mais futebol, mas exporta a matéria-prima desse esporte.

A globalização "europeizou" o futebol mundial. Aplicação tática, força física e capacidade defensiva tornaram-se essenciais para vencer, mas não a criatividade. O jogo foi acelerado, mas também a ocupação do espaço em campo, limitando os dribles e os remates. Como consequência, os gols se tornaram raros. E as competições internacionais são dominadas por clubes e seleções europeias.

Este processo foi promovido pela FIFA. Voleibol, basquete e futsal mudaram suas regras para tornar o esporte mais dinâmico, e não menos. O futebol americano endurece as regras todos os anos para proteger os craques. Enquanto isso, a FIFA manda os juízes guardarem os cartões, de modo que na Copa do Mundo de 2006 foram 28 expulsões, mas no Catar, apenas 4, nenhuma delas antes dos 40 minutos (até as semifinais). Ao mesmo tempo, o VAR afastou vários gols na Copa, mas não criou nenhum. Os artistas da bola se machucam, enquanto o orgasmo do futebol, que são os gols, é escasso.

O futebol é o único esporte em que é possível vencer sem ter iniciativa no ataque. Mas também a única em que a corporação esportiva, que atua como “aparelho privado de hegemonia” do futebol europeu, inova para favorecer o jogo defensivo e violento.

Fama e fortuna seduzem, mas dispersam

Mas o Brasil se adaptou. Em 2002, a maioria do elenco jogou no país. Em 2006, apenas três. Na Copa do Mundo de 2010, pela primeira vez na história, a defesa do time foi o destaque. E na competição seguinte, o time teve a dupla de zagueiros mais bem paga do mundo. Um time de brasileiros jogando na Europa, resultou em um time brasileiro jogando no estilo europeu.

E, no entanto, nossos europeus parecem melhores que os deles. Mas desde 2002, eles nunca chegaram a uma final de Copa do Mundo. E sempre perdem do mesmo jeito: jogando melhor, contra um time europeu pior, na primeira vez que se enfrentam na Copa do Mundo. A exceção foi a Alemanha, um time melhor que o nosso. E nós vimos o que aconteceu.

Por que nossos europeus têm mais talento, mas perdem? A explicação é certamente complexa. Mas alguns fatores são dignos de nota.

A primeira é que a globalização teve efeitos econômicos no futebol, mas também culturais. Os jogadores viraram empresas: cada craque é um negócio que movimenta muito dinheiro. Mas essas empresas também são celebridades. Se a liberalização do mercado europeu impossibilitou a formação de times no Brasil, como transformar um grupo de celebridades em algo coletivo semelhante a um time? E o que é mais complicado: como fazer quando a CBF também faz da Seleção uma vitrine de negócios?

Dois exemplos da Copa do Mundo de 2006 ilustram essa inflexão. Nesse torneio, uma cidade suíça pagou para sediar os treinos da seleção brasileira, que contaram com a presença de milhares de torcedores que pagaram ingressos. A atmosfera de adulação era total e a concentração impossível.

No final do primeiro jogo contra a Croácia, um jogador rival procurou Ronaldinho para trocar de camisa, como de costume, mas o craque recusou. Questionado por um jornalista, ele explicou que guardaria a camisa para o museu que seu representante estava preparando sobre sua carreira. Não é à toa que naquela Copa do Mundo Roberto Carlos consertou o meia, enquanto Thierry Henry eliminou o Brasil.

É verdade que atletas de outras equipes são celebridades. Mas a peculiaridade do Brasil é que é um país que parece projetar nesses atletas as aspirações frustradas de uma nação que nunca se concretiza. Eles são a pátria saqueada, literalmente. E isso coloca uma pressão sobre os atletas sem paralelo em outras equipes. No Brasil, o futebol é mais do que um esporte. Para o bem ou para o mal.

O time encanta, mas também é atravessado pelas contradições da sociabilidade autofágica do Terceiro Mundo, que deu origem aos seus jogadores. A maioria é pobre e muitos vêm de famílias desfeitas. Como comentou o técnico Fernando Diniz, é muito difícil convencer esses lutadores de que o jogo coletivo os beneficiará.

E como jogar fora de campo? Para qualquer um, a fama e a fortuna são sedutoras, mas dispersivas. Ronaldinho não virou museu, e Neymar nunca se tornou o melhor do mundo. Será que o temperamento de Messi foi providencial para o seu futebol e para as equipas em que joga?

Qualquer técnico da Seleção Brasileira enfrentará um desafio fora de campo: como fazer de jogadores que são empresas e celebridades, além de portadores de aspirações muito superiores às suas, um coletivo? Montar um time focado na Copa do Mundo parece tão difícil quanto extrair a matéria-prima para um Brasil onde todos caibam da sociabilidade autofágica.

Enfrentar as contradições

Se o futebol tem futuro como expressão criativa, e o Brasil tem futuro como criação social, é também graças a talentos como Neymar. Deste ponto de vista, estamos do mesmo lado.

Mas uma sociedade que tem um ídolo como Neymar não pode ser uma nação. Portanto, ao mesmo tempo que precisamos do Neymar (sua arte), precisamos não querê-lo. Da mesma forma, podemos pensar que precisamos de evangélicos ou ladrões para fazer um país. Mas como fazer deles um país?

Em outras palavras, a matéria-prima para fazer dessa população algo coletivo é perpassada por valores e lealdades que inviabilizam a coletividade. Essas contradições vão muito além de uma questão de classe, como se viu nas eleições presidenciais. Atravessam a cultura, os nossos modos de vida e também o futebol.

São contradições dessa natureza que devem ser enfrentadas, para que um dia o Brasil se torne realidade. Talvez naquele dia o futebol volte a ter a dimensão de um esporte, por mais encantador que seja.

Quem sabe então se o time vencerá os europeus. Ou talvez isso não importe mais.


FÁBIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12